Vem morena!
Pena que Amado Batista é declaradamente apoiador do Bolsonaro, pois estes versos me lembraram de outra morena
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Era um desses dias que a gente chama de bonito: seco e ensolarado. Temperatura agradável se insinuando a chegar nos trinta, mas parado nos vinte e cinco graus.
A manhã há pouco se findara. Passava alguns minutos do meio-dia e a cidade já se encaminhava pra calmaria do sábado de interior.
Eu emborcava a segunda dose duma de alambique, prometendo ser a última. O companheiro da mesa ao lado, ele e eu únicos no bar, tomava também o seu aperitivo de antes do almoço, no copo pequeno de pila e meio.
E foi nisso que ela entrou, costeando as cadeiras de lado. Decerto que não foi tomar trago. Especulo que foi ter com a filha do dono. As idades regulavam, parece. Ambas beirando os trinta bem aparentados, que a filha do bodegueiro também é de despertar interesses.
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Entrou, mas não se demorou. Entregou ou pegou alguma encomenda, trocou dois ou três “como vai?” com a amiga e fez retorno pelo mesmo trajeto de pouco antes.
Era uma morena cor de chocolate setenta por cento cacau. As pernas grossas e as panturrilhas seguindo a mesma proporcionalidade. Tava de saia florida, como a homenagear a primavera, que viria semana que vem. O cabelo encaracolado lhe abraçava o meio das costas largas. Pensem numa mulher sem abreviaturas.
Tinha o sorriso persistente. Sabem essas molecas que exalam simpatia intrínseca? Pois ei-la.
Ato contínuo ao desaparecimento dela no dobrar da esquina (eita bar mal posicionado ao flerte. Fica na esquina, onde as passantes logo desaparecem), o colega ao lado começa o batuque compassado na sebenta mesa de plástico. Enquanto batia na mesa, balbuciava frases ininteligíveis. Ao meu olhar, explicou: Amado Batista.
Estava enferrujado. Tinha tempo que não o pegava, mas tocava violão. Lamentava ter perdido os papeis em que anotara os acordes e notas de vários artistas. Seus sessenta anos e seu ofício de calceteiro lhe mantiveram afastado das tecnologias. Não dava conta de imprimir as músicas pegadas numa rápida busca na internet.
Não conhecia a dita música. Fui pesquisar. Ouvir. De fato, é boa, com uma letra despretensiosa e sensível. Lembrei da morena que dobrou a esquina e não mais vi. “Vem, morena, vem, vem amar (me amar) / Este jovem que está sempre a te esperar (te esperar) / Vem, morena, é noite de luar (de luar) / Só você, só você quero beijar”.
Pena que Amado Batista é declaradamente apoiador do Bolsonaro, pois estes versos me lembraram de outra morena, essa de cabelos lisos: “Eu tenho medo de um dia te perder / Pois se isso acontecer / Eu sei que vou sofrer / Não quero nem pensar em solidão / Pois meu pobre coração, só chama por você”.
Quando o Presidente(?) cair, apesar do equivocado apoio que recebe dalguns artistas, comemorarei tomando uma ou duas doses no bar mal posicionado. Torcendo para que a morena vire a esquina. Vou imprimir as cifras para que meu colega de copo toque enquanto eu, embriagado mais de alegria do que da pinga (com uma rodela de limão, por favor), vou puxar, desafinado, a paródia não autorizada: “Vem, democracia, vem, vem amar (me amar) / Este jovem que está sempre a te esperar (te esperar)”.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”.