Precisamos ensinar eufemismo nas escolas
Parece básico e facilmente perceptível. Contudo, se usado ardilosamente, seu efeito pode ser perigosamente ilusório. E, de fato, estamos diariamente iludidos pelos eufemismos.
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Professor de História, é com algum desgosto que reconheço: embora a minha disciplina seja a mais importante, eu não ensino o conteúdo específico mais útil nos últimos tempos, a figura de linguagem eufemismo.
A princípio cabem aos professores de português fazê-lo, claro. Mas o tema é tão relevante, que acho que as outras disciplinas devam trabalhá-lo transversal e/ou interdisciplinarmente.
Não estou com isso menosprezando os outros assuntos. É importante saber dos climas, por exemplo, sobretudo os brasileiros. Munidos dessa sapiência, saberemos da importância do horário de verão pra economia de energia e fomento ao comércio; nem falo do sistema reprodutor do corpo humano e sexualidade. Com as informações passadas nas aulas de ciências, se evitam gravidezes indesejadas e DSTs; e trigonometria? Trigonometria é de suma relevância pra formação estudantil. Não me ocorre agora alguma aplicação prática dela, mas tenho certeza de que é importante.
Mas o eufemismo atualmente é disparado o assunto que mais se usa no nosso quotidiano.
O eufemismo, embora não seja minha área, vou minimamente tentar explicar para quem faltou a essa importantíssima aula (ou estava presente, mas absorto no sorriso daquela colega que lhe despertava interesse), é usar termos agradáveis para descrever, qualificar e mesmo conceituar situações, pessoas, fatos ou outro. Ele é um prévio conforto da informação que vem a seguir.
Parece básico e facilmente perceptível. Contudo, se usado ardilosamente, seu efeito pode ser perigosamente ilusório. E, de fato, estamos diariamente iludidos pelos eufemismos. Como fomos iludidos por aquela que nos roubou a atenção nas aulas de português do ensino médio. Resultado do amor estudantil não correspondido: ficamos sem ela e sem perceber os eufemismos diários. Iludidos antes por um amor; iludidos agora pela retórica.
Quase sempre que o governo ou outros mentores do sistema capitalista a que estamos submetidos querem prejudicar a nós trabalhadores, a adjetivação (a professora de português também ensinou o que é isso) é recheada de eufemismos.
Quando a previdência foi modificada, retirando direitos dos trabalhadores, adiando o repouso que há décadas alguns esperavam, descontando salários entre outras maldades, o governo apresentou a medida como sendo uma “reforma”. Uma reforma é por definição algo cujo objetivo final é bom. Não se reforma uma casa, um imóvel, um carro ou o que for para que fiquem piores. Se faz para que melhorem! Mas, com licença poética, o governo, apoiado por congressistas ricos e representantes dos empregadores, não dos empregados, aprovou as mudanças.
Outro eufemismo muito utilizado é o verbo modernizar. Quando os políticos representantes dos empresários querem cortar direitos dos empregados públicos ou privados, falam em “modernização da legislação trabalhista” ou “modernização do serviço público.” Ora, quem não quer se modernizar? Modernizar nos remete a algo indubitavelmente bom, que vai no mínimo facilitar e melhorar nossas vidas. Nos casos em tela, não é o que ocorre nem com os empregados e nem com os usuários dos serviços. O que moderniza mesmo, no sentido de melhorar, são os lucros do empresariado.
Há uma propaganda de serviço de aplicativo de carro que, pra chamar novos “parceiros” (outro eufemismo que designa funcionário sem nenhum vínculo empregatício) usaram o slogan “dirija quando quiser”. Perspicaz. Se o sujeito não quiser trabalhar e aproveitar o domingo em família, ele pode; se a mulher está em trabalho de parto, ele não precisa avisar ninguém. Vá para o hospital imediatamente; e ele pode ficar doente, quase morrer, e não terá necessidade de apresentar atestado médico ou laudo. Basta não ir trabalhar! A propaganda só não informa que, ao não ir trabalhar, não interessa o motivo, o sujeito não recebe nada.
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Aliás, esses e outros trabalhadores, que antes eram chamados pelo inóspito termo “autônomo”, agora, para compensar os ganhos baixos, foram elevados à categoria de “empreendedores”. O cara não consegue pagar as contas em dia. Mas pode gabar-se de, ao preencher uma ficha, colocar que é empreendedor.
É que as relações trabalhistas “se modernizaram”. Direitos trabalhistas como férias e décimo terceiro são démodé. Mais antiquado que pagar FGTS só mesmo usar o termo démodé. Por isso, os empregados, que demorarão mais tempo para se aposentar e receberão menos, ganharam uma promoção: não são mais empregados. São “colaboradores”. Eles colaboram para as empresas lucrarem. Em troca, ao invés de valorização salarial, recebem um eufemismo.
São catorze milhões de pessoas não ocupadas; seiscentas mil pessoas que, em decorrência do covid, estão morando com Papai do Céu; pessoas com deficit calórico pegam rejeitos alimentícios no caminhão que recolhe resíduos; pedaços não-nobres de carnes que antes eram doados, hoje são vendidos… a situação não está muito boa.
Mas, pelo menos, temos os eufemismos.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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