Como a construção mais antiga da história mudou conceitos sobre a origem das civilizações
O mistério da construção mais antiga da história que mudou ideias sobre a origem da civilização humana. Mais de 25 anos após as primeiras escavações, ainda não há evidências de plantas ou animais domesticados por lá
Andrew Curry, BBC
Quando o arqueólogo alemão Klaus Schmidt começou a escavar no topo de uma montanha turca, há 25 anos, ele estava convencido de que as construções que descobriu eram fora do comum, até mesmo únicas.
No topo de um planalto de calcário perto de Urfa chamado Göbekli Tepe, que em turco significa “monte com barriga“, Schmidt encontrou mais de 20 cercados circulares de pedra.
O maior tinha 20 m de diâmetro, um círculo de pedra com dois pilares de 5,5 m de altura esculpidos primorosamente no centro.
As colunas de pedra — figuras humanas estilizadas com as mãos juntas, um tanto sinistras, e cintos de pele de raposa — pesavam até 10 toneladas.
Esculpir e erguer estes pilares deve ter sido um tremendo desafio técnico para pessoas que ainda não haviam domesticado animais ou inventado a cerâmica, muito menos ferramentas de metal.
As construções tinham 11 mil anos ou mais, fazendo delas as mais antigas estruturas monumentais conhecidas da humanidade, erguidas não para servir de abrigo, mas para algum outro propósito.
Após uma década de trabalho, Schmidt chegou a uma conclusão surpreendente.
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Quando visitei a escavação na cidade velha de Urfa em 2007, ele — que trabalhava na época para o Instituto Arqueológico Alemão — me disse que Göbekli Tepe poderia ajudar a reescrever a história da civilização, explicando o motivo pelo qual os humanos começaram a desenvolver a agricultura e viver em assentamentos permanentes.
As ferramentas de pedra e outras evidências que Schmidt e sua equipe encontraram no local revelaram que os cercados circulares haviam sido construídos por caçadores-coletores.
Dezenas de milhares de ossos de animais que foram descobertos eram de espécies selvagens e não havia evidências de grãos ou outras plantas cultivadas.
Schmidt achou que esses caçadores-coletores haviam se reunido 11,5 mil anos atrás para esculpir os pilares em forma de T de Göbekli Tepe com ferramentas de pedra, usando a rocha calcária da colina sob seus pés como uma pedreira.
Esculpir e transportar as colunas teria sido uma tarefa hercúlea, mas talvez não tão difícil quanto parece à primeira vista.
Os pilares são esculpidos a partir das camadas naturais de calcário da base do monte.
O calcário é macio o suficiente para ser trabalhado com uma pedra ou até mesmo com as ferramentas de madeira disponíveis na época, com treino e paciência.
E como as formações de calcário da colina eram camadas horizontais com entre 0,6 m e 1,5 m de espessura, os arqueólogos que trabalham no sítio arqueológico acreditam que os antigos construtores tiveram que cortar o excesso das laterais, mais do que da parte de baixo.
Uma vez que um pilar era esculpido, eles o deslocavam algumas centenas de metros em direção ao topo da colina, usando cordas, vigas de madeira e vasta mão de obra.
Schmidt acreditava que pequenos bandos nômades de toda a região eram motivados por suas crenças a unir forças no topo da colina para projetos de construção periódicos, realizar grandes festas e depois se dispersar novamente.
O sítio arqueológico, argumentava Schmidt, era um centro de rituais, talvez algum tipo de cemitério ou complexo de culto à morte, em vez de um assentamento.
Era uma afirmação e tanto.
Os arqueólogos há muito tempo acreditavam que rituais complexos e religiões organizadas eram luxos que as sociedades desenvolveram apenas quando começaram a domesticar animais e cultivar plantações, uma transição conhecida como período Neolítico.
A ideia era que, uma vez que tivessem um excedente de comida, eles poderiam dedicar seus recursos extras a rituais e monumentos.
Göbekli Tepe, Schmidt me disse, virou essa linha do tempo de pernas para o ar. As ferramentas de pedra no local, respaldadas por datação por radiocarbono, colocaram o sítio arqueológico firmemente na era pré-neolítica.
Mais de 25 anos após as primeiras escavações, ainda não há evidências de plantas ou animais domesticados por lá.
E Schmidt achava que ninguém morava lá em tempo integral. Ele chamava o local de “catedral em uma colina”.
Se fosse realmente verdade, revelaria que os rituais complexos e a organização social teriam vindo, na verdade, antes dos assentamentos e da agricultura.
Ao longo de 1 mil anos, a necessidade de reunir bandos nômades em um único lugar para esculpir e mover enormes pilares em T e construir cercados circulares, teria levado as pessoas a dar o próximo passo.
Para organizar regularmente grandes reuniões, elas precisariam ter suprimentos de comida mais previsíveis e confiáveis, domesticando plantas e animais.
Os rituais e a religião, ao que parecia, teriam lançado a Revolução Neolítica.
No dia seguinte, dirigi com Schmidt até o topo da colina antes do amanhecer.
Vaguei perplexo e boquiaberto por entre os pilares enquanto Schmidt, com a cabeça envolta em um lenço branco para protegê-lo do sol escaldante, supervisionava uma pequena equipe de arqueólogos alemães e trabalhadores de um pequeno vilarejo na estrada.
Schmidt tinha acabado de publicar seus primeiros relatórios sobre Göbekli Tepe no ano anterior, deixando o pequeno mundo dos especialistas em arqueologia do Neolítico em alvoroço.
Mas o sítio arqueológico ainda passava uma sensação de adormecimento e abandono, com áreas de escavação cobertas por telhados improvisados de aço corrugado e estradas de terra esburacadas serpenteando até o local de escavação no topo da montanha.
As teorias de Schmidt sobre os impressionantes pilares em T e as enormes “estruturas especiais” circulares do sítio arqueológico fascinaram seus colegas e jornalistas, quando foram publicadas pela primeira vez em meados dos anos 2000.
Reportagens de tirar o fôlego chamavam o sítio arqueológico de local de nascimento da religião; a revista alemã Der Spiegel comparou as pastagens férteis ao redor com o Jardim do Éden.
Logo, pessoas de todo o mundo estavam se aglomerando para ver Göbekli Tepe pessoalmente.
Em uma década, o topo da colina foi totalmente transformado.
Até a guerra civil na vizinha Síria que interrompeu o turismo na região em 2011, o trabalho no sítio arqueológico muitas vezes entrava em marcha lenta, à medida que ônibus lotados de turistas curiosos se aglomeravam em torno das escavações para ver o que alguns chamavam de “o primeiro templo do mundo”, tornando impossível manobrar os carrinhos de mão pelas vielas estreitas.
Nos últimos cinco anos, o topo da montanha nos arredores de Urfa foi transformado mais uma vez.
Hoje, estradas, estacionamentos e um centro de visitantes podem acomodar viajantes curiosos de todo o mundo.
Em 2017, os galpões de aço corrugado foram substituídos por galpões de tela e aço de última geração, cobrindo as construções monumentais centrais.
O Museu de Arqueologia e Mosaico de Şanlıurfa, construído em 2015 no centro de Urfa, é um dos maiores museus da Turquia; ele apresenta uma réplica em tamanho real do maior cercado do sítio arqueológico e seus imponentes pilares em T, permitindo que os visitantes tenham uma ideia das colunas monumentais e examinem suas esculturas de perto.
Em 2018, Göbekli Tepe foi adicionado à lista de Patrimônio Mundial da Unesco, e as autoridades de turismo turcas declararam 2019 como o “Ano de Göbekli Tepe”, fazendo do antigo sítio arqueológico o rosto de sua campanha de promoção global.
“Ainda me lembro do sítio arqueológico como um lugar remoto no topo de uma montanha“, diz Jens Notroff, arqueólogo do Instituto Arqueológico Alemão que começou a trabalhar no local como estudante em meados dos anos 2000.
“Mudou completamente.”
Schmidt, que faleceu em 2014, não viveu para ver a transformação do sítio arqueológico — que de uma escavação empoeirada no topo da montanha virou uma grande atração turística.
Mas suas descobertas despertaram o interesse global pela transição neolítica — e nos últimos anos, novas descobertas em Göbekli Tepe e análises mais detalhadas dos resultados de escavações anteriores começaram a alterar as interpretações iniciais de Schmidt sobre o sítio arqueológico.
As obras para erguer as fundações necessárias para dar suporte à nova cobertura do sítio arqueológico exigiu que os arqueólogos cavassem mais fundo do que Schmidt já havia feito.
Sob a direção de Lee Clare, sucessor de Schmidt, uma equipe do Instituto Arqueológico Alemão cavou uma série de buracos até o alicerce rochoso do sítio arqueológico, vários metros abaixo do piso das enormes construções.
“Tivemos uma chance única”, afirmou Clare, “de examinar as camadas e depósitos mais baixos do sítio arqueológico.”
O que Clare e seus colegas encontraram pode reescrever a pré-história mais uma vez.
As escavações revelaram evidências de casas e assentamentos, sugerindo que Göbekli Tepe não era um templo isolado visitado em ocasiões especiais, mas uma vila próspera com grandes construções especiais em seu centro.
A equipe também identificou uma grande cisterna e canais para coletar água da chuva, fundamentais para oferecer suporte a um assentamento no topo seco da montanha, e milhares de ferramentas de moagem para processar grãos para preparar mingau e fazer cerveja.
“Göbekli Tepe ainda é um sítio arqueológico único e especial, mas os novos conhecimentos se encaixam melhor com o que sabemos de outros sítios históricos“, afirmou Clare.
“Era um verdadeiro assentamento com ocupação permanente. Mudou todo o nosso entendimento do sítio arqueológico.”
Enquanto isso, os arqueólogos turcos que trabalham na zona rural acidentada ao redor de Urfa identificaram pelo menos uma dúzia de outros lugares no topo da colina com pilares em T semelhantes — embora menores, que datam aproximadamente do mesmo período.
“Não é um templo único“, disse a pesquisadora Barbara Horejs, do Instituto Arqueológico Austríaco, especialista em Neolítico que não fez parte das iniciativas de pesquisa recentes.
“Isso torna a história muito mais interessante e emocionante.”
O ministro da Cultura e Turismo da Turquia, Mehmet Nuri Ersoy, foi mais longe ao dizer que esta área poderia ser chamada de “pirâmides do sudeste da Turquia“.
Em vez de um projeto de construção de séculos que inspirou a transição para a agricultura, Clare e outros especialistas agora acreditam que Göbekli Tepe foi uma tentativa de caçadores-coletores se agarrarem a um estilo de vida que desaparecia à medida que o mundo mudava ao seu redor.
Evidências da região no entorno mostram que pessoas em outros lugares estavam fazendo experimentações com animais e plantas domesticados — uma tendência à qual as pessoas do “monte com barriga” poderiam estar resistindo.
Clare argumenta que as esculturas em pedra do sítio arqueológico são uma pista importante. Esculturas elaboradas de raposas, leopardos, serpentes e abutres cobrindo os pilares e as paredes de Gobekli Tepe “não são animais que você vê todos os dias”, diz ele.
“São mais do que apenas imagens, são narrativas, que são muito importantes para manter os grupos unidos e criar uma identidade compartilhada.”
Quando vaguei pelo local pela primeira vez, há mais de 15 anos, me lembro de uma sensação de grande distância.
Göbekli Tepe foi construída 6 mil anos antes de Stonehenge, e o significado exato de suas esculturas — assim como o mundo que as pessoas ali habitavam — é impossível de entender.
Isso, é claro, faz parte do tremendo magnetismo de Göbekli Tepe.
Enquanto milhares de visitantes se maravilham com um lugar que a maioria das pessoas nunca tinha ouvido falar uma década atrás, os pesquisadores continuarão tentando entender por que ele foi construído.
E cada nova descoberta promete mudar o que sabemos agora sobre o sítio arqueológico e a história da civilização humana.
“O novo trabalho não está destruindo a tese de Klaus Schmidt; ele existe graças a ele“, diz Horejs.
“Houve um grande ganho de conhecimento, na minha opinião. A interpretação está mudando, mas é disso que se trata a ciência.”