Crise para quem?
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Quinhentos mil reais é suficiente pra comprar no mínimo uma excelente casa pra uma família de quatro habitantes em qualquer lugar do Brasil, vamos convir.
Pois bem, a propaganda na rádio anunciava casas em Porto Alegre. Estava por quinhentos mil. Quinhentos mil de desconto! Tratava-se de imóveis de alto padrão, segundo dizer do locutor. Quanto custa uma casa cujo somente o desconto da promoção é de quinhentos mil?
A grande maioria dos brasileiros não tem condições de comprar um imóvel nem por um terço do valor de desconto do pedante imóvel de “alto padrão”. Mesmo que financiado. E isso sem considerar o cenário de crise que estamos.
Eis o ponto.
A crise é pra quem? Certamente não para o público-alvo do comercial em tela.
Divago: será possível que não só a crise não é para essas pessoas como só é possível que elas comprem um imóvel milionário justamente por causa dessa nomeada recessão?
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Acho que não estou muito longe da realidade (ao contrário do preço do imóvel): pesquisas apontam que o número de bilionários e milionários aumentaram durante a pandemia. Enquanto isso, aumentou também o número de pobres, de miseráveis e de pessoas que literalmente passam fome.
Não precisa ter estudado Economia na Universidade de Chicago pra entender que a quantidade de dinheiro dum País é praticamente imutável. O que muda são os lugares, as pessoas que estão com ele. Sendo assim, é lógica a conclusão perversa: o dinheiro para comprar um imóvel cujo valor não consigo nem imaginar advém da cesta básica não comprada de quem passa fome. Sim, aqueles que não têm onde morar, pagam as mansões de quem mora bem, come bem e ainda manda remessas de dinheiro para paraísos fiscais no estrangeiro, visando a não pagar impostos que ajudariam justamente os mais necessitados.
Talvez esses que vão visitar o apartamento (palácio) decorado são os mesmos que possuem dividendos a receber da Petrobras. Enquanto somos sufocados com a gasolina a quase sete reais, encarecendo não só nosso transporte como todos os produtos, os especuladores do (deus) mercado financeiro ganham dinheiro sem produzir uma gota de combustível. Sem produzir absolutamente nada, na verdade. Ganham dinheiro com a pobreza alheia e, dependendo do caso, até com as besteiras que o Presidente fala. Cada vez que o Bolsonaro solta uma pérola de tio bêbado, aumentando o chamado “risco Brasil”, as ações caem. Os investidores compram-nas para vendê-las quando o Guedes, num discurso batido mas sempre em voga, promete privatizar alguma estatal.
Compra e venda de ações é o passatempo da elite econômica do Brasil. Literalmente, se divertem com a desgraça alheia.
Não vi o imóvel. Sequer falava o bairro em que está localizado. Mas achei de péssimo gosto a propaganda. Ela não se dirigia à maioria dos ouvintes. Talvez não chegue nem a 1% da audiência que teria condições de comprar uma residência dessas.
Mas, talvez, outros ouvintes tenham feito a mesma relação evidente que eu: a tal crise que estamos é dos pobres, não dos ricos. Vou além: é dos pobres para os ricos.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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