Arquétipos: Lula é o Batman e Bolsonaro é o Coringa
Na história escrita por Grant Morrison, Asilo Arkan, o Coringa passa a mão da bunda do Batman. A irreverência toca profundamente a seriedade e faz com que o mundo mítico se torne por um momento tão imprevisível que tudo pode acontecer. Esses dois seres tangíveis da nossa farra política estão também assim
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
É preciso explicar por que existem tantos ricos de esquerda e tantos pobres de direita?
Por vezes, os arquétipos da cultura pop podem servir para que entendamos um pouco mais o cipoal da política institucional.
O neoliberalismo no Brasil fez surgir um tipo de política que parecia ter sido já superada pelos constrangimentos históricos: o populismo.
Lula encarnou esse populismo de um modo particular e provocou uma espécie singular de populismo aos moldes Bolsonaro.
No populismo o líder encarna valores que as pessoas consideram hagiológicos. E os aspectos da santidade podem variar, mas varia bem pouco. O que torna os políticos populistas, do ponto de vista da análise socio política, muito parecidos. Talvez por conta disso precisamos de tintas ideológicas que gritam mais a esquerda ou mais a direita.
Mais a esquerda entoam aqueles que se julgam moralmente superiores por desejar o bem social progressista. Mais a direita entoa aqueles que se julgam mais tradicionais, valorizando a família e a pátria.
Essas edulcorações servem bem para matizar diferenças que, do ponto de vista político, são irrelevantes, pois no mundo neoliberal, o papel do líder é entronizar no cotidiano das sociedades os princípios e os fundamentos neoliberais, que são o individualismo, o consumismo, o cartão de crédito, o endividamento, isolamento, as cargas privadas que cada um deve carregar sozinho, criando um universo meritocrático indiscutível. De público mesmo apenas uma educação cansativa, uma segurança de extermínio, uma saúde medicamentosa.
Mas as idiossincrasias de cada líder populista são bem particulares e podem ser evidenciadas pelo bem geral da compreensão que deve superar os limites ideológicos.
Tais idiossincrasias oferecem uma oportunidade para análises sociológicas e psicológicas interessantes num mundo construído por aparências.
Lula criou uma figura pública marcada pelo jeito gentil em relação aos pobres, desvalidos, inserindo mais de vinte milhões deles no universo contributivo da classe média. E isso tem implicações importantes.
Tomo aqui dois exemplos paradigmáticos dessa inclusão. O primeiro diz respeito aos modos como seus governos lidaram com os movimentos sociais. Considerando apenas o MST, as concessões ininterruptas acalmaram o movimento, mas também eliminou toda uma geração de militantes que nunca tiveram que vivenciar as lutas pelas ocupações. Jovens ineptos para o conflito, pois tiveram tudo de mão beijada por esses governos gentis.
Quanto à grande inserção na classe média dos pobres, sua inserção foi possível justamente pela concessão de crédito via cartões. O endividamento de milhões de pessoas gerou duas coisas importantes. A primeira, escravidão por dívida e a segunda uma lucratividade bancária jamais igualada em nenhum outro tempo da história desse país. Nesse quesito específico seus governos ofereceram a possibilidade voluntarista da holocracia, a igualdade radical pela via do consumo: ter o que os ricos têm. Não é contraditório que exatamente essa prática enriqueça ainda mais os ricos.
Num sentido sociológico, Lula se parece muito com o Batman. O personagem é rico durante o dia, mas a noite se traveste de morcego e sai descendo porrada nos delinquentes. A metáfora da porrada como dívida não é pouca coisa.
Um sujeito endividado, um consumista obsessivo, entupido pela falta perpétua é um delinquente rendido e patologicamente disposto a qualquer sacrifício.
Moralmente é visto como responsável social que atenua as desigualdades, mas de fato conduz um país inteiro para as teias da ilusão e do engodo, para uma vida vazia preenchida por porcarias. E no final das contas preenchida por medicamentos e toda sorte de drogas para ampliar a euforia do consumo. As pessoas veem isso como melhoria social e aplaudem a justiça batmaniana.
A história de Lula é uma pista dessa disposição consumista como substituto da ascensão social. Foi operário num tempo em que essa profissão era a elite do universo do trabalho desenvolvimentista. Se fez nos acordos por privilégios. E privilégios no desenvolvimento significa exclusão de uns e valorização endógena do grupo.
Desenvolvimento como quebra do envolvimento, união como desunião.
Nada a fazer quanto a isso, senão envergonhar-se da morte do pensamento crítico.
Em contrapartida, o outro lado do populismo social é o tradicional. A família, a segurança, a pátria são convocadas para o palco da política. Seria uma conta fácil de fazer nessa balança populista bem simplória, mas a figura que emergiu ancorada nesses valores tradicionais é um anarquista de alma.
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Ofereceu aos militantes do MST a propriedade de seus lotes e com isso colocou um dos movimentos sociais mais importantes dos últimos trinta anos em cheque de difícil solução. O liberalismo do militante percebeu o valor monetário do seu lote e vislumbrou agora o mundo cintilante do consumo e do “progresso”.
Diante da crise imposta pelo coronavirus, defendeu e estimulou a permanência no trabalho recusando o isolamento social. Quando teve que explicar aos jornalista o baixo desempenho da economia sob seu governo, levou um humorista que oferecia bananas à plateia.
A história de Bolsonaro é uma peça de ações derivativas contra todas as instituições que invadiu. No exército, na família, na legislatura, na política, ele sempre disseminou o caos por onde passou. A ponto de constranger cada aliado com suas atitudes imprevisíveis. É um cultivador da desordem, plantando furacões e tempestades sem nenhum critério, arbitrariamente, inclusive contra si mesmo.
Sua persona desfigurada tem mais que mera semelhança com o personagem do Coringa. Também ele queima bilhões de dólares na fogueira contagiosa do poder. Sem nenhum constrangimento ou remorso. Está sempre cagando e andando para o poder da mídia, que agride sem pudor ou cuidado. Ameaça poderosos de todas as cores e cria vórtices que geram confusão. Se alia a religiosos para atacar a religião, a negros para atacar os racistas e antirracistas, a mulheres para atacar as feministas, a homossexuais para provocar os anti homofóbicos.
Inunda as redes sociais de fake News numa chuva de mentiras e verdades que se confundem na seriedade e na pilhéria.
Detona partidos políticos aliados a ponto de passarem também a criticar suas atitudes e a se arrependerem do apoio oferecido.
Força os defensores de uma saúde mais natural a optarem publicamente pelos remédios da medicina mercantilista que até há pouco condenavam.
É um homem bomba a se explodir diante das câmeras. Considerando todas as suas atitudes sem nenhum sentido ou propósito, precisamos avaliar sua mente como uma caixa de ressonância não magnética. Os neurônios pulam de um lado a outro quanticamente, desordenadamente, freneticamente. E ordenam que ele faça toda sorte de impropérios para no dia seguinte modificar toda a lógica anterior.
Se Lula é uma força ordenadora da natureza, Bolsonaro é uma força caótica. Ambos replicam as dinâmicas cósmicas com tamanha sincronia que a guerra eterna entre o bem e o mal é continuamente reencenada. É a guerra entre Krishna e Arjuna no teatro político da contemporaneidade. Sua derivação entre esquerda e direita é pífia diante disso. Desse ponto de vista é um espetáculo maravilhoso em que a vaidade bate de frente com a insanidade e resulta numa pirotecnia grandiosa.
Na história escrita por Grant Morrison, Asilo Arkan, o Coringa passa a mão da bunda do Batman. A irreverência toca profundamente a seriedade e faz com que o mundo mítico se torne por um momento tão imprevisível que tudo pode acontecer. Esses dois seres tangíveis da nossa farra política estão também assim, ligados por um desejo, por uma vontade e por gestos consensuais no palco do presente. Na plateia, seus seguidores ofendidos gritam, vociferam, aplaudem, e tudo parece prestes a mudar, mas tudo continua a mesma coisa e o cosmos estelar continua a produzir o brilho de sempre.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor