Explosão da Ômicron produz pandemias paralelas: a dos vacinados e dos não vacinados
O mundo comprova na ascensão meteórica da Ômicron o que a vacinação prometeu fazer desde o início: reduzir o número de mortes e infecções sérias. Com isso, a Ômicron produz também pandemias paralelas: a dos vacinados e a dos não vacinados. 90% dos pacientes graves e mortos não tomaram a vacina
A humanidade enfrenta a maior explosão de um vírus já registrada. Pandemia dentro da pandemia, a variante Ômicron do novo coronavírus varre o planeta, com estimativas de que se espalha mais depressa do que o sarampo, o mais contagioso vírus conhecido até então. Ela também propaga dúvidas. Entre as poucas certezas está o fato de que é quase sempre branda em pessoas totalmente vacinadas.
O mundo comprova na escala de milhões de novos casos de Covid-19 gerada pela Ômicron o que a vacinação prometeu fazer desde o início: reduzir o número de casos graves e mortes.
Com isso, a Ômicron produz também pandemias paralelas: a dos vacinados e a dos não vacinados. A diretora do Departamento de Imunização da Organização Mundial de Saúde (OMS), Kate O’Brien, disse na semana passada que os não vacinados representam entre 80% a 90% dos pacientes graves e mortos pela Ômicron.
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— Kate OBrien (@Kate_L_OBrien) January 4, 2022
Por escapar parcialmente dos anticorpos, a nova variante do coronavírus pode causar reinfecção em vacinados, mas eles raramente adoecem com gravidade. Isso, em geral, só ocorre em pessoas com comorbidades, caso do homem de 68 anos morto em Goiás na quinta-feira (6), que sofria de um quadro grave de doença pulmonar obstrutiva crônica e hipertensão e que se tornou o primeiro óbito oficial de Ômicron no Brasil.
A Ômicron tem apenas dois meses e não é possível projetar seu impacto com precisão, mas dados preliminares de África do Sul, Reino Unido e Dinamarca indicam que ela é mais branda. E ela pode sobrecarregar o sistema de saúde devido à avalanche de casos leves.
A nova cepa do Sars-CoV-2 assombra pela eficiência em se espalhar. Ela não apenas parece, ela está em toda parte. O virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Corona-ômica, que sequencia e analisa o genoma do coronavírus em todo o Brasil, afirma que tudo indica que ela já é dominante no país.
“Ela já representa mais de 90% das amostras de estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Estamos concluindo as análises, mas a Ômicron deve estar perto dos 100%, com alguns casos residuais de Delta”, diz Spilki.
E isso ocorreu na primeira semana do ano, após as festas de fim de ano que, como advertido, facilitaram a transmissão.
“Nunca vimos nada como isso. Temos visto desde segunda-feira uma avalanche de casos. Este será um janeiro difícil”, frisa Spilki.
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A Ômicron, ao que tudo indica, é menos letal que a Delta. Não faz adoecer com gravidade. Mas adoece tanta gente que causa a sobrecarga dos sistemas de saúde.
O apagão de dados que o Ministério da Saúde não consegue resolver desde 10 de dezembro aprofunda a escuridão da pandemia. Mas, mesmo com os estados enfrentando dificuldades para colocar seus dados na plataforma do ministério, não tem sido observado aumento nas internações e mortes de vacinados. Segundo Spilki, a estimativa é que, de cada seis casos de internação, cinco sejam de não vacinados ou de gente com a vacinação incompleta.
Mutações
A Ômicron é recordista e tem 50, 32 delas na proteína S, alvo do sistema imunológico e, por isso, da maioria das vacinas. Ela escapa parcialmente do ataque dos anticorpos, mas não a ponto de fazer as vacinas perderem totalmente a efetividade. A terceira dose, de reforço, restabelece a eficácia das vacinas a patamares superiores a 80%.
Um estudo liderado por Corine Geurtsvan Kessel, da Universidade Erasmus, na Holanda, mostrou que as vacinas continuam a evitar a doença grave. E há países, entre os quais Israel é o mais avançado, que já planejam uma quarta dose.
Vacinação
Ao se vacinar toda a população, é possível bloquear a maioria dos casos que poderiam se agravar, explica o virologista Amílcar Tanuri, coordenador do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Se menos gente estivesse vacinada, a Ômicron encontraria ainda mais pessoas suscetíveis — principalmente, idosos e pessoas com comorbidades — que poderiam morrer.
Gravidade
Os dados são preliminares porque a Ômicron emergiu há cerca de dois meses. Mas um relatório do governo britânico apresentado em 31 de dezembro mostrou que pessoas infectadas pela Ômicron correm risco 50% menor de precisar de atendimento de emergência ou hospitalização em comparação com a Delta.
Na Inglaterra, o primeiro mês de Ômicron teve um terço das internações da Delta. A Ômicron parece mais branda por dois motivos. O primeiro deles é que mais pessoas estão mais protegidas do agravamento da doença, devido, principalmente, à vacinação. A pessoa até adoece, mas os sintomas não se agravam, e esse é o objetivo das vacinas. O outro fator tem a ver com a própria Ômicron. Estudos em animais sugerem que ela não se multiplica com a facilidade das variantes anteriores do novo coronavírus nas células do pulmão. Ela prolifera nas vias aéreas superiores.
Segundo um estudo da Universidade de Hong Kong, ela se replica 70 vezes mais depressa do que a Delta nas células das vias superiores. Porém, é dez vezes menos eficiente em infectar os pulmões. Isso seria devido a uma proteína chamada TMPRSS2, uma das portas de entrada do coronavírus nas células, abundante na superfície das células pulmonares e na qual a Ômicron tem dificuldade para se ligar. A diferença é de vida e morte porque os pulmões, ao serem terrivelmente atacados pelo coronavírus, deflagram um processo inflamatório que se espalha pelo corpo. Menos células pulmonares infectadas pode significar doença mais branda, disse à revista Nature Michael Diamond, da Universidade de Washington e autor de um dos estudos sobre a gravidade da Ômicron.
Transmissão
Uma combinação de motivos pode explicar por que a Ômicron tem uma avassaladora transmissibilidade. Primeiro, ela gera uma maior carga viral nas células das vias aéreas superiores justamente porque se multiplica mais nelas do que as variantes anteriores do Sars-CoV-2. E, por causar infecção mais leve ou até assintomática, mas ainda assim com alta carga viral gerada em pouco tempo, circula com enorme facilidade, apontou um estudo liderado pelo Ravindra Gupta, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
Velocidade de contágio
A Ômicron tem se mostrado capaz de se espalhar mais depressa que o sarampo, até agora considerado o mais contagioso dos vírus. Mantido o ritmo observado no mundo desde novembro, ela se torna o vírus mais transmissível já registrado. A hipertransmissibilidade não tem a ver apenas com o R0, ou número básico de transmissão do vírus, que estima quantas pessoas um infectado pode contagiar. O R0 da Ômicron foi estimado entre 6 e 10 por Martin Hibberd, da London School of Hygiene & Tropical Medicine.
A título de comparação, o da variante original do coronavírus, a de Wuhan, era 2,5 e o da Delta, abaixo de 7. Já o do sarampo oscila entre 12 e 18. Assim, em média, uma pessoa com sarampo passaria a doença para outras 15. E uma com Ômicron para outras seis, sendo esta a conta mais conservadora.
Mortes
Embora o número de casos aumente de forma sem precedentes, o de mortes continua a cair, em ritmo menor. Segundo o Worldometer, houve uma redução de 2% nos óbitos globais na semana passada em relação à anterior. Ainda é cedo para saber se essa tendência se manterá ou se haverá aumento em função do espalhamento da nova variante. Um sinal de alerta vem dos EUA, onde as hospitalizações estão em alta.
O presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Flavio Guimarães da Fonseca, observa que mesmo que a taxa de letalidade seja menor, devido ao enorme número de casos, haverá muitos mortos. E, devido ao apagão de dados do Ministério da Saúde, diz ele, essas mortes podem não ser devidamente registradas, ocultando o verdadeiro dano da Ômicron .
Crianças
Autora de estudos sobre a Covid-19 em crianças, a imunologista Cristina Bonorino, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e da Sociedade Brasileira de Imunologia, é categórica em defender a vacinação de crianças de 5 a 11 anos não apenas para evitar que adoeçam mas também para impedir que se tornem reservatórios de vírus, dificultando o controle da pandemia.
Enquanto houver crianças não vacinadas, o coronavírus continuará a grassar entre nós, destaca Bonorino, acentuando que a vacina não bloqueia, mas reduz a transmissão. Ela frisa que, devido ao apagão de dados do Ministério da Saúde, nem sequer se sabe quantas crianças estão adoecendo e morrendo de Covid-19 no Brasil desde dezembro. Bonorino reforça ainda que, mesmo que uma criança não adoeça com gravidade, não significa que estará livre de sequelas da Covid-19. Ela lembra que isso ocorre com o HPV, hoje prevenível com vacina. Um indivíduo pode ser infectado na infância, ser assintomático e só vir a desenvolver câncer por HPV quando adulto.
Outras variantes
O número de mutações, por si só, não determina a periculosidade de uma variante. No Brasil, a variante que mais matou foi a Gamma, originada em Manaus e que causou a segunda e mais devastadora onda de Covid-19. Mas a Gamma, diz Fernando Spilki, pegou uma população não vacinada.
A Delta, mais contagiosa, não causou tantas mortes e a Ômicron, mais transmissível que a Delta, ao que se espera, é ainda menos letal. Os vírus, porém, estão sempre buscando formas de se espalhar e, por isso, especialistas são unânimes em salientar a necessidade de vacinar toda a população, incluindo as crianças, e manter cuidados como o uso de máscara e evitar aglomerações enquanto a pandemia perdurar.
O futuro
Na África Sul, entre a identificação dos primeiros casos e a queda dos índices após um aumento explosivo, foram necessárias cinco semanas. A Ômicron parece ter um surto meteórico e, por isso, fevereiro será decisivo para saber o futuro da pandemia no Brasil, se o apagão do Ministério da Saúde permitir, diz Fernando Spilki.
Ana Lúcia Azevedo, Extra
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