Exploração da maior jazida de urânio do Brasil pode provocar desastre ambiental
Comunidades do Ceará temem desastre ambiental com exploração da maior jazida de urânio do país. Especialistas apontam riscos de escassez hídrica e contaminação radioativa
Gabriela Moncau, Brasil de Fato
Um consórcio de duas empresas está a poucos passos de abrir a maior mina de urânio e fosfato do Brasil. Os relatos, no entanto, indicam que grande parte das comunidades próximas a ela é contrária à abertura da mina. O projeto prevê uma instalação nuclear, um complexo mineroindustrial e uma pilha de fosfogesso e cal onde serão depositados os rejeitos do processo.
A jazida Itataia, localizada no município de Santa Quitéria, na caatinga cearense, é cobiçada pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e pela empresa privada Fosnor – Fosfatados do Norte-Nordeste S.A, detentora da marca Galvani Fertilizantes.
Ao seu redor, há três bacias hidrográficas e vivem 156 povoados, em sua maioria de agricultores que tiram da terra o sustento. Entre eles, comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e assentamentos da reforma agrária.
Ouvidos pelo Brasil de Fato, moradores da região relatam que há quem veja com bons olhos as promessas de empregos e “desenvolvimento” feitas por representantes das empresas. De acordo com o chamado Consórcio Santa Quitéria, serão gerados 538 empregos diretos na fase de operação do complexo.
“Se a jazida for minerada, eu não sei qual o nosso futuro. Só sei que bom não é“, avalia Maria Joselenes Sena. Mais conhecida como Josy, ela integra a Cooperativa Sertaneja Cearense – Fape e vive em Lagoa do Mato. É por essa comunidade que passa a estrada CE-366, que dá acesso à jazida.
O fato de ser um empreendimento que usa grande quantidade de água no semiárido nordestino, bem como os perigos da contaminação radioativa das águas, do solo e da dispersão de poeira e gases com metais pesados pela região, estão entre os principais argumentos de moradores e movimentos populares que lutam para barrar o empreendimento, batizado de Projeto Santa Quitéria (PSQ).
O novo capítulo dessa queda de braço será a decisão do Ibama. Depois de ter o licenciamento ambiental arquivado pelo órgão em 2019 por sua “inviabilidade ambiental”, o Consórcio entrou com novo pedido e apresentou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA RIMA), documento obrigatório, no final de 2021.
No comando do Ibama, Eduardo Fortunato Bim foi indicado pelo então ministro do Ambiente Ricardo Salles. Durante as eleições de 2018, Bim assinou um manifesto em defesa de Jair Bolsonaro.
Em 2021, o presidente do Ibama ficou três meses afastado do cargo por determinação do STF, por ser um dos alvos do inquérito da Polícia Federal que investiga favorecimento do órgão em um suposto esquema ilegal de exportação de madeira.
“Eu tenho medo, sinceramente, que seja um jogo de cartas marcadas”, afirma o professor de história e agricultor familiar Luís Paulo Santos Sousa, a respeito da probabilidade do licenciamento ambiental ser expedido.
Paulo é morador de Morrinhos, comunidade de 54 famílias que está a 2 km da jazida. Ele vive em um dos 34 assentamentos rurais de reforma agrária que estão próximos à Fazenda Itataia.
“Já chamaram quatro pessoas da comunidade para trabalhar na sondagem do terreno e na perfuração de quatro poços. Como que estão fazendo esse investimento se o Ibama ainda não liberou?“, questiona Paulo.
Em entrevista à Associação Brasileira de Energia Nuclear, o diretor de Recursos Minerais da INB, Rogério Mendes, disse que se for para resumir o Projeto Santa Quitéria em uma palavra, é “sinergia”.
“Queremos implementar toda a engenharia e a construção de forma muito rápida. 2023 é o ano de construção do projeto, então terminaríamos a engenharia em 2022. Na metade de 2024, a unidade entraria em produção: a planta de fertilizantes em maio e a de urânio, em junho“, afirma o diretor da INB.
O plano para Santa Quitéria
O plano nuclear brasileiro, vocalizado como prioritário pelo governo Bolsonaro, tem a exploração do urânio em Santa Quitéria como central. A previsão é de que ela produza três vezes mais do que a única outra mina em operação no Brasil, localizada em Caetité (BA).
O minério em Itataia é o colofinato, onde o urânio e o fosfato estão associados. As empresas pretendem desenvolver no Ceará a lavra, a separação e o beneficiamento do minério.
A Fosnor produzirá, a partir do fosfato, fertilizantes que servirão de adubo químico para a agricultura e ração animal.
A INB fará o concentrado de urânio, um produto radioativo que será usado na geração de energia nas Usinas Nucleares de Angra 1 e 2 e, eventualmente, Angra 3. A estimativa é de que a mina seja explorada por duas décadas e produza 2.300 toneladas de concentrado de urânio por ano.
Escassez hídrica
A alta demanda de água para a mineração no meio do sertão semiárido nordestino é apontada por organizações como o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a Articulação Antinuclear Brasileira e o Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas) da Universidade Federal do Ceará (UFC), como um dos principais argumentos contrários ao empreendimento.
No entorno da jazida de Itataia, a maioria das comunidades não tem acesso à água encanada e se abastece por meio de caminhões pipa e cisternas.
De acordo com o Relatório de Impacto Ambiental das empresas, a mineração vai usar 855 m³ de água por hora. A solução apresentada por elas e assinada em um memorando com o Governo do Estado do Ceará é que o poder público construa uma adutora que saia do reservatório Edson Queiroz e, percorrendo 64 km, abasteça o Projeto Santa Quitéria.
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Ainda segundo o relatório, serão puxados do açude 1.036 m³ de água por hora, com o objetivo de abastecer, além da mineração, o distrito de Riacho das Pedras e os assentamentos Morrinhos e Queimadas.
A pedido do Brasil de Fato, o engenheiro hidráulico e professor da UFC José Carlos de Araújo fez uma estimativa da disponibilidade hídrica do açude Edson Queiroz com os números prospectados pelas empresas mineradoras.
Conforme explica o engenheiro, o uso da água dos reservatórios deve ser feito associado à garantia de que haja água disponível nos anos seguintes.
Quando se trata de abastecimento humano, é preciso usar a água com a garantia mínima de 99% de que haverá fornecimento para a população no ano seguinte. Essa taxa diminui paulatinamente de acordo com usos menos prioritários, como indústrias e mineração, entre outros.
O professor fez os cálculos da disponibilidade hídrica do açude Edson Queiroz em dois cenários. O primeiro é o proposto pelo Consórcio: o que retira 1.036 m³ de água por hora do reservatório. O segundo cenário é um em que a água não fosse usada para a mineração e apenas para abastecer essas três comunidades.
“De acordo com a simulação, a mineração aumenta o risco de escassez por década em 13 vezes para a população ser abastecida“, constata José Carlos de Araújo.
Para que a água do açude seja usada com 99% de garantia de que a oferta hídrica vai seguir existindo, Araújo diz que o uso deveria ser de 500 m³ por hora. Em sua visão, é preciso verificar quais comunidades do entorno precisam desse abastecimento e, a partir daí, calcular o quanto poderia ser usado pelas mineradoras.
Quando houver crise, qual torneira vai ser fechada?
O problema, alerta Araújo, “aparece durante os inúmeros momentos de seca que temos no Ceará. Qual vai ser a proposta de racionamento?“, questiona.
“Na hora da crise, se mantiver o abastecimento da mineradora, não vai sobrar água para a população“, avalia, ao lembrar que o Ceará passou por um período de seca entre 2012 e 2017.
Durante esses anos, o açude Edson Queiroz chegou a 10% de sua capacidade, ou seja, no seu volume morto. No período, critica Araújo, “não foi feito um racionamento para as indústrias em nenhuma parte do estado do Ceará“.
O engenheiro hidráulico salienta, ainda, que não é a primeira situação em que observa empresas fazendo propostas de fornecimento de água associando o abastecimento industrial com o humano.
“Se misturam duas coisas diferentes. Quando o reservatório está baixo, a mineração precisa fazer racionamento, às vezes até corte total. O mesmo não pode acontecer com a população. Mas colocam no mesmo pacote. Aí a coisa fica difícil“, ressalta Araújo.
Erivan Silva, do MAM do Ceará, questiona a prioridade dada pelo poder público para abastecer a exploração mineral frente à histórica dificuldade de acesso à água por parte das comunidades camponesas.
O Brasil de Fato entrou em contato com o governo do Estado do Ceará, por telefone e e-mail, com uma série de perguntas que não foram respondidas até o fechamento dessa reportagem.
A única nota recebida foi da Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará, que se limitou a informar que concedeu, em junho de 2021, uma “outorga preventiva” para disponibilizar para a INB uma vazão contínua de 287,87 litros por segundo, por 22h por dia, com o intuito de “reservar ao potencial investidor o volume requerido para assegurar o planejamento e a execução do empreendimento“.
“Se houver uma disputa pela água entre a mineração e as comunidades”, salienta Erivan, “estaremos diante de uma injustiça hídrica sem tamanho“.
O Painel Acadêmico, um grupo formado por pesquisadores do Núcleo Tramas e de outras instituições, analisou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) apresentado ao Ibama pelas empresas.
Os pesquisadores destacam que “o projeto também pode afetar, com contaminantes radioativos e metais pesados, a qualidade das águas de diferentes bacias hidrográficas, como as bacias dos Rios Acaraú, Curu e Banabuiú“.
Já o Consórcio Santa Quitéria afirma que “o lençol freático não será contaminado”, pois “a água de chuva de toda área será captada pelos sistemas de drenagem que serão instalados no entorno da mina e da área industrial, sendo tratados juntamente aos efluentes industriais e reutilizados nos processos industriais“.
Em relação às bacias que armazenarão a água puxada pelo açude, a empresa informou que “serão impermeabilizadas para impedir a infiltração dos efluentes“.
Radioatividade
Apesar de serem as preocupações principais dos movimentos e moradores ouvidos pela reportagem, os temas da água e dos riscos de contaminação foram separados do processo de licenciamento ambiental.
O primeiro teve a responsabilidade transferida ao estado do Ceará. Para o Painel Acadêmico, a fragmentação do licenciamento que transferiu a questão da água para o órgão ambiental estadual, o Semace, é “indevida” e viola a Lei Complementar 140/2011, “segundo a qual empreendimentos devem ser licenciados ambientalmente por um único ente federativo“.
Já a questão da radiação passa por um processo em separado: o licenciamento nuclear, a cargo da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Uma autarquia federal, a CNEN detém 99,99% das ações da INB.
Ao Brasil de Fato a CNEN afirmou que o “licenciamento nuclear formal ainda não foi iniciado, sendo assim, encontra-se em seu estágio inicial“.
“Seremos cobaia dessa tecnologia de separação entre o fosfato e o urânio. Imagine você, nesse adubo químico que vai para o solo do Piauí, da Bahia, se for junto alguma partícula radioativa?“, destaca Erivan Silva.
Questionado, o Consórcio disse que esse processo vai ser feito “a partir do uso de tecnologias mundialmente consolidadas“.
De acordo com a empresa, o minério será retirado e, “depois de britado e moído, será conduzido por correias transportadoras até os fornos de calcinação, onde será aquecido a altas temperaturas dando origem ao concentrado fosfático. A este concentrado, será acrescentado o ácido sulfúrico para a produção do ácido fosfórico. Nesta etapa, o urânio e as impurezas do ácido fosfórico serão filtrados e removidos“.
Entre as questões enviadas pelo Brasil de Fato para o Consórcio Santa Quitéria, foi perguntado se esse processo de separação já foi feito alguma vez por alguma das duas empresas. Essa questão não foi respondida.
A ameaça à produção agrícola e aos modos de vida da região
Josy Sena, moradora de Lagoa do Mato (a 18km da jazida) e ativista do MAM, relata que os produtos de agricultura familiar feitos por sua Cooperativa são comercializados em Itatira e outros cinco municípios da região.
“E qual o nosso medo? Com a mina sendo explorada, nós vamos perder o nosso mercado”, conta. “Estamos em contato com pessoas em Caetité que nos falam como houve esse impacto com a mineração lá na Bahia. As pessoas têm medo de consumir alimentos contaminados“.
Na cidade baiana de Caetité, a INB fez extração e beneficiamento de urânio entre 2000 e 2015. Depois de cinco anos inativa, a lavra foi retomada no fim de 2020.
Na região se acumulam denúncias de vazamentos de material radioativo, acidentes, contaminação de terra e de lençóis freáticos, adoecimento da população e falta de transparência por parte da estatal.
Em reunião com um representante da Galvani Fertilizantes, Josy trouxe o tema do impacto nos modos de vida dos agricultores familiares.
“Sabe o que ele disse? Que a empresa ia comprar toda a nossa produção. Segundo ele, para fazer comida no restaurante do complexo“, narra.
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Também ao Brasil de Fato, o Consórcio afirmou que “será um cliente para a compra de produtos agrícolas que são produzidos na região“.
“Eu falei ‘ah é?”, conta Josy: “‘E o que você vai fazer com 60 toneladas de mel’?“.
Paulo, que integra a Associação Comunitária de Morrinhos e coordena o grupo de jovens Sementes do Sertão, expõe que pessoas já comentam que, caso comece a lavra da jazida, vão embora.
“Se a gente produzir e não puder consumir nem vender… fazemos o quê? É das coisas que mais apavoram: a gente ter que sair por obrigação“.
“Estamos na luta”
No início de janeiro, entidades da sociedade civil e associações comunitárias entregaram uma solicitação ao Ibama.
Nela reivindicam “a realização de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas, às comunidades quilombolas e às comunidades tradicionais que podem ser afetadas pelo empreendimento“; a complementação do EIA-RIMA incluindo, entre outras, as informações sobre o licenciamento nuclear; e a realização de audiências públicas.
“Foi só o começo, estamos na luta“, garante Josy. E Paulo fala o mesmo, ao lembrar que Morrinhos foi titularizado como terra da reforma agrária em 1994, e como gosta de ouvir as histórias dos mais velhos.
“Aqui pertencia antes a um coronel, que cobrava renda de todos os moradores. Para conquistar o direito à terra, o povo teve de se organizar sem que o dono descobrisse, porque aqui antes tinha que ser de acordo com as leis dele, é a história do coronelismo mesmo“, narra o agricultor e professor de história.
“As pessoas eram ameaçadas, tinham de se esconder, mas venceram”, conta Paulo: “É… cada geração com a luta que lhe cabe“.