Como os EUA usaram o neonazismo na Ucrânia para isolar a Rússia
A história é antiga, mas demonstra o quanto os grupos neonazistas e de extrema direta nacionalista continuam tendo poderosa influência sob o governo do presidente Zelensky. O Batalhão de Azov foi incorporado à Guarda Nacional Ucraniana e está sob o comando do ministro do Interior
Texto publicado em 13 de maio de 2021
Giovanny Simon, Brasil de Fato
As memórias da Segunda Guerra Mundial ainda seguem extremamente vivas no leste da Europa. Por um lado, a Rússia celebra vitória contra o nazi-fascismo, em que as forças alemãs assinaram a rendição diante do Exército Vermelho soviético, pondo fim ao enfrentamento no continente europeu. Por outro, a tensão militar na fronteira russa com a Ucrânia, além de reacender o conflito na região, também conta com a presença de discursos nazistas.
Em um jogo arriscado que mescla envio de tropas com declarações dos presidentes russo e estadunidense, a atenção mundial foi direcionada, a partir de março, para a região do Mar Negro e da Ucrânia, onde membros do Exército russo e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foram posicionadas, em uma medição de forças.
Guerra Civil na Ucrânia é mais do que militar
Acabam de completar-se sete anos do atentado a uma sede sindical em Odessa, na Ucrânia. No dia 2 de maio de 2014, um incêndio no edifício de cinco andares da Federação Regional de Sindicatos de Odessa deixou 42 pessoas mortas, sendo 32 sufocadas e outras 10 que faleceram ao pular do edifício. O fogo foi iniciado por militantes do chamado Euromaidan, movimento de extrema direita composto por diversas organizações, inclusive algumas abertamente inspiradas no nazismo.
De lá pra cá, o conflito no interior da Ucrânia escalou até o ponto de se tornar uma guerra civil aberta e territorialmente localizada. Ao leste do país se formaram a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk, ambas na região de Donbass. Há exatos sete anos, em 12 de maio de 2014, veio a independência dessas repúblicas, após referendo em que mais de 80% da população local afirmou sua intenção de não fazer mais parte da Ucrânia. Ainda que setores da mídia insistam em reduzir esses movimentos como pró-Rússia, assim como no caso dos sindicalistas de Odessa, eles são muito mais do que isso.
No final de março e início de abril deste ano, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, intensificou as provocações militares na região de Donbass, empregando ataques por drones, que inclusive vitimaram um garoto de cinco anos, Vladik Shikov, residente de Donetsk.
Mas além do conflito militar, é na economia e na questão social que também podem ser encontradas respostas. “A Ucrânia atravessa uma forte crise econômica, que gera problemas sociais”, afirmou Alexey Albu, um sobrevivente do incêndio do sindicato de Odessa, que atualmente vive na República Popular de Lugansk.
Segundo Albu, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros credores demandam a aplicação de uma fórmula já conhecida do público brasileiro: as contrarreformas neoliberais. “Como resultado desta política econômica, as tarifas de gás e eletricidade aumentaram significativamente, conduzindo ao aumento dos preços e ao empobrecimento da população”, afirmou Albu, que também é membro da organização política Borotba, que organizou movimentos anti-Maidan – como ficaram conhecidas as manifestações contra a extrema direita em 2014.
Quando se olha para alguns dados econômicos, isso parece ser plausível. De 2013 a 2021, a taxa de crescimento do PIB ucraniano passou por uma curva negativa que superou a marca de -15% durante o ápice da guerra, voltou a crescer entre os anos de 2017 e 2019, e afundou novamente no início da pandemia, em meados de 2020. O índice de desemprego também é bastante cruel. Mesmo durante o período de recuperação, a taxa da população empregada no país atingia 69%, em 2019, e caiu para 64,8% em janeiro de 2021. O salário médio, apesar de ter crescido este ano comparado ao ano passado, ainda não chegou aos patamares de 2017-2018, na época de recuperação.
Nicholas Rackers, analista político sobre questões do Leste Europeu e da Eurásia, graduado pela Miami University, dos Estados Unidos, argumenta que, na prática, o conflito entre Ucrânia e as repúblicas independentes nunca foi interrompido, e as recentes ofensivas do governo ucraniano na região de Donbass são apenas um reaquecimento da guerra em andamento.
Segundo ele, enquanto os acordos de Minsk e Minsk II reduziram a intensidade do conflito em 2014 e 2015, as provocações diárias não cessaram. O Protocolo de Minsk foi um acordo assinado por Ucrânia, Rússia e as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk para pôr fim à guerra no leste ucraniano, em 2014. Já o Minsk foi celebrado em 2015 entre Ucrânia, Rússia, França e Alemanha para implementar um pacote de medidas de alívio à Guerra Civil ucraniana.
“Os confrontos e bombardeios periódicos, inclusive em áreas civis, têm continuado desde então. A Ucrânia efetivamente sabotou a implementação de Minsk II, uma das razões é que a extrema direita, bem organizada e bem armada, ameaça outro Maidan [protestos pró-Europa em Kiev, entre 2013 e 2014, que derrubaram o presidente ucraniano Viktor Yanukovtich] se o governo implementar os acordos”, afirma Rackers.
Para além das recentes operações militares que resultaram na morte do menino Vladik, o povo da região de Donbass tem de conviver com ataques do governo da Ucrânia, que frequentemente alvejam áreas civis. Mas se mesmo o presidente Zelensky inicialmente se propôs a procurar soluções ao confronto, há uma pressão interna e externa para dar continuidade à guerra.
A pressão externa vem dos Estados Unidos e da União Europeia e a interna é vinda de grupos neonazistas e de extrema direita nacionalista, que patrocinam ideológica e militarmente essa guerra.
Quem é a extrema direita ucraniana
No dia 28 de abril de 2021, militantes de extrema direita marcharam na capital ucraniana, Kiev, em memória da 14ª Divisão de Grenadeiros da SS, ou a 1ª Divisão Galícia. Essa divisão composta de voluntários colaboracionistas com a invasão nazista na União Soviética lutou ao lado do 3º Reich na Segunda Guerra Mundial e foi eventualmente derrotada e desarmada pelos Aliados.
De acordo com Alexey Albu, da organização política Borotba, “slogans antissemitas e russofóbicos foram tradicionalmente proferidos na marcha. Símbolos de organizações neonazistas modernas e de organizações reconhecidas como colaboradoras durante a Segunda Guerra Mundial também foram empunhados”.
O analista político Nicholas Rackers ressaltou que, ainda no governo de Petro Poroshenko (2014-2019), uma lei proibindo tanto símbolos nazistas quanto comunistas foi aprovada, mas enquanto ela serve para demolir o que resta dos monumentos e do legado simbólico soviético, as organizações neonazistas seguem impunes.
A história é antiga, mas demonstra o quanto os grupos neonazistas e de extrema direta nacionalista continuam tendo poderosa influência sob o governo do atual presidente Volodymyr Zelensky. Inclusive, o ex-primeiro-ministro de sua equipe, Alexey Goncharuk, participou e discursou ativamente num evento político e em um show de rock de uma banda de extrema direita. Isso prova, de acordo com Albu, que a “promessa eleitoral de acabar com a guerra feita por Zelensky não passou de uma mentira”.
O fato de que o governo Donald Trump se envolveu em um escândalo que levou ao seu fracassado impeachment de 2019, motivado pelo intercâmbio de fechar um acordo militar de 40 milhões de dólares em troca da colaboração de Zelensky nas investigações contra o filho de Joe Biden, indica que o presidente ucraniano já não tinha intenções reais de encerrar a guerra.
Um dos mais importantes grupos neofascistas da Ucrânia e que participou ativamente dos eventos de 2014, inclusive atuando como força paramilitar, é o chamado Batalhão de Azov. Segundo Rackers, eles utilizam o símbolo wolfsangel e o sol negro, o primeiro em referência 2ª SS Divisão Das Reich e o segundo largamente empregado por grupos nazistas modernos. Especialistas afirmam que hoje o Batalhão de Azov não só é um braço armado do neonazismo na Ucrânia, mas possui uma gangue de vigilantes, chamada Milícia Nacional, um partido político próprio, editoras e inclusive acampamentos de formação para crianças.
O Batalhão de Azov foi incorporado à Guarda Nacional Ucraniana e está sob o comando do ministro do Interior, Arsen Avakov, o mais antigo oficial em posto desde que o movimento Maidan também nomeou membros do Batalhão para a chefia da polícia de Kiev e outras instituições. “Eles também têm conexões com nacionalistas brancos e neofascistas em vários países da Europa e das Américas”, denuncia Rackers.
O que está em jogo na Ucrânia e no Leste Europeu
A mobilização militar iniciada pela Ucrânia entre os meses de março e abril acendeu um novo alerta. Quando a Rússia passou a transferir tropas e equipamentos para a fronteira com a Ucrânia, alegando o descumprimento dos tratados de paz anteriores, e a necessidade de proteger os cidadãos de nacionalidade russa de uma possível agressão, os EUA não esconderam a sua predileção pela Ucrânia, infestada de nazistas. Afirmaram sua disposição em defender a “integridade territorial ucraniana”.
Do ponto de vista geopolítico, ambos os governos, dos EUA e da Ucrânia, têm um interesse comum: impedir a finalização do gasoduto Nord Stream 2. Esse gasoduto é um projeto com parceria entre Rússia e Alemanha para levar o gás russo para aquecimento doméstico e industrial na Europa. Washington se opõe abertamente, inclusive ameaçando a Alemanha com sanções, se não se retirar do projeto. Ao mesmo tempo em que querem isolar os russos, os estadunidenses também querem prover a Europa com o seu caro gás natural líquido, o shale gas, o gás de xisto.
Como o gasoduto se torna um atalho entre Rússia e Alemanha, cruzando o Mar Báltico, e desviando da Ucrânia, ele significaria uma perda de receita econômica para os ucranianos, bem como para a Polônia e os países bálticos (Estônia, Lituânia, Letônia), com a drástica redução do preço de venda para o Ocidente. Estima-se que a Ucrânia poderia perder até US$ 3 bilhões por ano, isso adicionando as perdas com a criação do TurkStream, que passou a enviar gás russo para a Turquia e Bulgária.
Agora que o projeto está em suas fases finais, começam a aparecer novas tensões no Leste Europeu. Não apenas na Ucrânia, mas também a longa onda de protestos na Bielorrússia, em 2020, reabriu algumas suspeitas.
O presidente Lukashenko afirmou ter registros do serviço de inteligência indicando que o envenenamento de Alexey Navalny, principal nome da oposição liberal a Putin, tinha sido obra estadunidense para sabotar as relações entre Rússia e Alemanha e, em consequência, o Nord Stream 2. A verdade por trás disso provavelmente ficará somente nos corredores da Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA) e o Serviço Federal de Segurança russo (FSB).
Após a recente mobilização de tropas ucranianas e russas na fronteira, também se presencia um novo momento de choques diplomáticos entre a República Tcheca, Rússia e os países bálticos, com a expulsão mútua de funcionários e embaixadores. O conflito se originou na denúncia do governo tcheco de que Moscou estaria por trás de uma explosão em território tcheco, em 2014.
Analistas avaliam que a aproximação da conclusão do Nord Stream 2 e o crescimento da demanda por vacinas, que poderiam ser providos pela Rússia com a Sputnik V, novos conflitos e atos desesperados devem surgir para atacar e isolar a Rússia do ponto de vista geopolítico.
Enquanto isso, a Europa Ocidental, especialmente a Alemanha, permanece dividida em algumas questões importantes. Ainda que algumas de suas lideranças possam ter genuínas preocupações com o crescimento da extrema direita, principalmente dentro de casa, isso não se reflete na sua política externa. A explicação mais comum para os especialistas é que eles não gostam do governo russo, mas gostam do seu gás barato e da sua oferta de vacinas. Para conseguir os dois, utilizam de todos os artifícios possíveis para combater o soft power russo e isolá-los geopoliticamente, inclusive apoiando organizações e governos abertamente neonazistas para os seus fins.
Por enquanto, ainda que os russos estejam dispostos a responder à altura, eles não caíram nas provocações: retiraram as tropas e encerraram os exercícios na Crimeia, mas não sem o alerta verbal de Putin em seu discurso sobre o Estado da nação no dia 21 de abril, em que afirmou esperar que “ninguém ouse cruzar a linha vermelha com a Rússia”, o que poderia levar a uma resposta “rápida e dura”.