Militantes do MBL admitem farsa para tentar incriminar padre Julio Lancellotti
"Foi criado um perfil falso de um adolescente para tentar trocar mensagens de cunho sexual com o padre com o objetivo de incriminá-lo por pedofilia". Ex-membros do MBL revelam a engrenagem do movimento para moer reputações e impulsionar a candidatura de Arthur Do Val
João Batista Jr., da revista Piauí
O youtuber Arthur do Val renunciou ao mandato de deputado estadual em abril, depois do vazamento do áudio em dizia que “as ucranianas são fáceis porque são pobres”, mas sua desgraça parece não ter se encerrado. Agora, dois ex-integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), o grupo que projetou Do Val politicamente, afirmam que o ex-deputado paulista tentou se beneficiar de uma armação criminosa contra o padre Julio Lancellotti, ocorrida em setembro de 2020. Na época, um denunciante anônimo enviou à polícia um vídeo em que um suposto adolescente de 16 anos trocava mensagens de cunho sexual com um suposto perfil do padre. O objetivo da fabricação do vídeo era incriminar o pároco no crime de pedofilia. Agora, sabe-se que era uma armação, crime que, a depender do enquadramento, pode render de 6 meses a 1 ano de prisão.
O engenheiro Fernando Dainese e o relações-públicas Lucas Studart, ambos ex-MBL, garantem que o adolescente de 16 anos chamado “Matheus Rocha Nunes” era na verdade Guto Zacarias, então assessor parlamentar de Do Val na Assembleia Legislativa de São Paulo. Na época, Zacarias tinha 21 anos e trabalhava para a campanha eleitoral de Do Val, então candidato a prefeito de São Paulo pelo Patriota. Segundo Dainese e Studart, Zacarias abriu a conta falsa em nome de “Matheus Rocha Nunes” no Facebook, inventou que o personagem tinha 16 anos e entrou em contato com um perfil que supostamente pertencia ao padre Lancellotti. (O padre sempre negou que tivesse trocado as mensagens. Seu advogado, Luiz Eduardo Greenhalgh, disse na época, e voltou a dizer agora que “todo esse conteúdo foi alvo de manipulações”.)
O golpe era parte da estratégia de impulsionar a candidatura de Do Val. “O vídeo do padre foi produzido pelo MBL na época da campanha do Arthur”, afirma Fernando Dainese. “O Guto se passou por um menor de idade. Eu não estava à frente dessa situação. Mas eu vi ele fazer essa operação contra o padre.” Lucas Studart confirma: “Foi armado todo um suspense para mobilizar a militância do MBL”, diz ele, que na época era um dos coordenadores cariocas do MBL. A conta falsa foi criada no dia 2 de setembro de 2020, e “Matheus Rocha Nunes” manteve contato com a suposta conta do padre até o dia 14 de setembro. Nesse meio-tempo, no dia 10, enquanto transcorria a farsa, Do Val deu entrevista à rádio Jovem Pan, dizendo o seguinte: “Não pode falar do padre Julio Lancellotti, aquele tranqueira lá. Eu vou desmascarar esse padre, inclusive. Pode cortar esse trecho e guardar: eu vou desmascarar esse padre.”
No dia 15 de setembro – um dia depois de a conta de “Matheus” e o suposto perfil do padre terem parado de interagir –, Do Val postou em seu perfil no Twitter: “O que o padre Julio Lancellotti faz é DEPLORÁVEL”, escreveu, usando letras maiúsculas. “A Igreja Católica tem uma linda histórica [sic] e não pode ficar à mercê de um cafetão da miséria. Nunca ameacei ninguém, nem ele. Ele é uma das maiores farsas do Brasil, em breve vocês saberão! Vou desmascarar esse padre.” Concluída a armação, a Delegacia de Capturas de São Paulo recebeu – por “vias hierárquicas”, segundo diz o inquérito – um vídeo de 14 minutos no qual apareciam conversas por escrito de conteúdo sexual entre, supostamente, o adolescente e o padre.
Em 13 de outubro, Arthur do Val veio a público para denunciar o padre com base no vídeo. Numa entrevista ao TV Democracia, canal do YouTube do jornalista Fabio Pannunzio, disse: “Vou revelar a vocês em primeira mão. Eu recebi, e confesso que fiquei atônito, uma denúncia muito grave sobre o Julio Lancellotti, uma denúncia de pedofilia. E é uma denúncia que consta inclusive com vídeos, não estou falando algo da boca para fora.” Na verdade, pela lei, o crime nem seria de pedofilia – mas de exploração sexual. Do Val afirmou ter recebido o vídeo de forma anônima e, então, levado o material para o Ministério Público fazer uma investigação. Era lorota, conforme contam os ex-integrantes do MBL, tanto que Do Val já ameaçava “desmascarar” o padre quando as conversas entre os dois perfis ainda estavam em curso. Dainese confirma a cronologia: “O Arthur dava entrevistas durante o processo em que o Guto estava colhendo materiais.”
Segundo os dois ex-integrantes do MBL, no entanto, não era Arthur do Val quem comandava o esquema. “Era uma estratégia eleitoral do Renan”, diz Dainese, referindo-se a Renan Santos, fundador do MBL. (No mesmo áudio sexista de Do Val sobre as ucranianas, ele diz que o próprio Renan Santos viajava por países europeus “só pra pegar loira”, fazendo o que chamavam de “tour du blond”.) “O Guto foi o catfish, se passou por outra pessoa para prejudicar o padre Lancellotti”, afirma Studart. Dainese reafirma o papel de Zacarias. “O Guto foi a ferramenta do Renan”, diz ele, que era então coordenador do MBL na cidade de São Paulo e um dos dirigentes da campanha de Rubinho Nunes, do MBL, que disputava uma vaga de vereador pelo Patriota. “Guto fez essa operação dentro do escritório de advocacia do Rubinho, que também era onde funcionava o comitê de campanha”, completa Dainese. Nunes foi eleito.
Zacarias confirma que o perfil do “adolescente de 16 anos” era realmente falso, mas diz que não foi obra sua. “Quem criou esse perfil foi a Guarda Civil Metropolitana, não tem nada a ver com o Guto Zacarias”, diz Zacarias, que não identifica quem, dentro da GCM, teria feito o serviço sujo. Na época, um integrante da guarda metropolitana circulava publicamente com Do Val e disputava uma vaga para vereador pela mesma coligação. Chama-se “comandante Braga”. Braga negou ter sido o criador do perfil falso. Indagado se o autor foi Zacarias, respondeu: “Isso, isso!” Na mesma conversa com a revista, no entanto, Braga se ofereceu para criar um perfil falso e montar uma nova armadilha contra o padre Lancellotti. “Fazemos um novo, na hora”, propôs.
Acionada em setembro de 2020, a polícia começou a investigar o caso com base no vídeo. Não demorou a descobrir que o perfil de “Matheus Rocha Nunes” tinha apenas três fotos, uma das quais estava salva com o nome “Gu”. O inquérito aponta que o apelido é “incompatível com o nome Matheus” – mas, sabe-se agora, é compatível com o nome “Guto”. Depois de acionar o Facebook, a polícia foi informada de que o perfil do suposto adolescente usava um servidor localizado em Montevidéu, no Uruguai – uma forma de fugir a investigações no Brasil. Como o tal adolescente nunca foi localizado, o Ministério Público arquivou a investigação por “falta de materialidade”, em agosto de 2021.
Dainese e Studart deixaram o MBL em dezembro de 2020, um mês depois da eleição municipal, dizendo-se decepcionados com as táticas do movimento. “O escritório do MBL tem quase um departamento para vídeo manipulado parecer limpo”, diz Studart. Nenhum dos dois, no entanto, tomou a iniciativa de denunciar a fraude na época. Dainese, que teve contato com a armação, alega que não tinha responsabilidade pela trama, mas não esconde sua mágoa de não ter ocupado o cargo que lhe prometeram no gabinete do vereador Rubinho Nunes. “Disseram que tinham um cargo para mim, de 12 ou 15 mil por mês, que era o que eu queria.”
A direção do MBL rebate a versão de que os dois saíram porque se desapontaram com as táticas do MBL. O fato é que, em dezembro de 2020, mais de duzentos militantes deixaram o MBL. Sem citar nomes, Renan Santos disse, na época, que militantes teriam gravado conversas de dirigentes com o objetivo de prejudicar algumas campanhas políticas. (Dainese diz que, de fato, tentou gravar uma reunião, mas quando já sabia que seria expulso do MBL. Foi flagrado gravando a reunião em seu celular e obrigado a deletar o conteúdo, sob risco de ser fisicamente agredido. “Foi um dos dias mais traumáticos da minha vida”, diz.)
Dainese fundou o Instituto de Mídias Avançadas, cujo lema é “produzir conteúdo de qualidade com objetivo de trazer informações relevantes”. Aberto no ano passado, o canal do YouTube da entidade tem audiência pífia. Studart é o diretor de comunicação do instituto e trabalha na assessoria de imprensa da Secretaria de Turismo do governo de Cláudio Castro, no Rio de Janeiro. Dainese chamou mais a atenção quando, ao lado do pré-candidato a deputado Caique Matos, invadiu um evento organizado pela chapa Lula e Geraldo Alckmin, em junho, em um hotel de São Paulo. Os dois não têm mais nenhuma ligação – política ou de amizade – com Renan Santos, Arthur do Val e Guto Zacarias.
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