Luzes proverbiais e maldição divina
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Meu avô Plácido teve lepra num tempo de perseguições e preconceitos. Foi caçado e encarcerado e não pode sustentar a família por conta de preconceitos e ignorâncias.
Minha mãe herdou sua genética e teve que se ocultar por muito tempo, inclusive de mim, sobre a herança e seus apanágios.
Uma doença como a lepra carrega consigo uma situação importante ao permear seu paciente de camadas de significados quase impossíveis de serem descobertos. Desde significados bíblicos até higiênicos, soterrados por significados simbólicos de julgamento e as vezes nem tão prosaicos como os leprosários guarnecidos de toda sorte de arames, dos que prendem e dos que cortam. Há ainda o significado da amputação. Que, aliado ao da exclusão, marca toda uma história familiar, pois o isolamento se estende a todos, por gerações.
A força do julgamento é ainda mais pesada quando soterra os filhos, os netos. Pouco importa se a lepra é seca ou não.
Ela deforma.
Ela deforma o olhar dos saudáveis.
Outras doenças apareceram depois que meu avô morreu. A AIDS parece ter herdado a deformidade dos saudáveis. O câncer também herdou.
É importante reconhecer que os saudáveis ocultam patologias diversas camufladas pelo preconceito.
O preconceito é um estado de isolamento, pois ele existe na resistência da privação do outro. É um estado resoluto de colonização, uma forma pronta e acabada que garante a seus usuários uma precária proteção contra o diferente. Pois a colonização precisa reconhecer no diferente o desigual e naturalizar sua condição de exilado.
Claro que existem outras condições muito mais claras em que o preconceito exila. A vilania da raça, do gênero, do sexo, são ideários fictícios da cultura do preconceito. E esse ideário diz a seus usuários que estão em situação infinitamente melhor do que aqueles que degradam. Mas não se dão conta da emulação que praticam. Gostariam da ilusória perfeição dos colonizadores e se enfeitam de aparências rudimentares que acreditam enaltecer quem as possui. Toda emulação é preconcebida, pois imagina ser suficiente para recriar os senhorios. Mas a indignidade dos emuladores é um peso sempre crescente. Vão carregando nos ombros impressões danosas, cicatrizes alheias, profundas crenças de autoridades e franjas de poder descartadas e esse peso, com o tempo, passa aos filhos, aos netos. Pois o empoderamento que sugerem não é exatamente poder, senão é apenas o saco vazio da emulação, com suas micagens de preconceitos. E isso adoece. Não dá pra viver a farsa de se parecer com o outro sem certos custos e cansaços.
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A cada novo ciclo de empoderamento, o enfraquecimento aderido aumenta e algumas patologias vão crescendo na mesma sutil medida da semelhança.
A primeira dessas heranças silenciosas é a ansiedade, pois o empoderamento vive da promessa feita pelo poder de se concretizar como poder, mas nunca acontece, já que o poder, o verdadeiro poder não é pra todos e seus herdeiros não negociam com os fracos.
A medida que esse poder se oculta no interior do fraco, uma espécie de vergonha acompanha sua arrogância. Se é verdade que ele se torna cruel com os que julgam ainda mais fracos que ele, a ansiedade que isso provoca reduz seu sentimento de vitória.
A ansiedade é uma doença vergonhosa, por isso poucas vezes é reconhecida, exceto atualmente. Mas isso é devido a um modismo contagioso do sofrimento coletivo, já que muitos gostam do reconhecimento que isso produz. Como se uma patologia da esperança fosse justa. Mas diante de doenças poderosas, verdadeiramente poderosas, essa finura da emulação se encolhe, vergonhosamente.
Curiosamente, a doença da esperança recupera outra patologia igualmente vergonhosa, a do arrependimento. E o arrependimento se coagula como depressão, um buraco no passado dos emuladores. Pois se arrependem do que não fizeram, das possibilidades de se tornarem autônomos ao invés de aceitarem a colonização sem apelos ou resistências. No mesmo momento em que aceitaram o empoderamento como paga da colonização, também aceitaram se metamorfosear em colonizadores ordinários.
Essa também é uma patologia social que se encolhe diante das doenças fatais e já consagradas dos exilados. Pois os colonizadores não admitem a possibilidade recente de morte e tudo que está pra morrer não pode ser saudado.
Não digo isso de modo inocente ou leviano. Recentemente descobri que um dos meus muitos cânceres venceu a batalha com os dois mecanismos doados por Deus a todas as criaturas: a homeostase e a autopoiese. A primeira função aqui reequilibra as células desequilibradas e diante de ameaças constantes, torna o organismo a seu estado saudável. A segunda substitui as células danificadas também na recomposição do organismo e que estão presentes em todos os seres vivos. Mas por vezes a entropia avança sobre o organismo com certa imprudência, com certa impaciência.
O câncer é uma dessas doenças simbólicas e fatalistas. Ainda que já não seja mais como há tempos, carrega ainda um desconforto para os usuários das patologias da colonização.
Posso sentir o desconforto deles diante de mim. Parece que o tempo, além do incômodo usual, trás com a sentença de morte um velho poder presencial, que é muito maior que a esperança ou o arrependimento.
É como se com a doença, o usuário tivesse conquistado um lugar no panteão daqueles que devem ser saudados, justamente porque vão morrer. Tipo: os que vão morrer te saúdam. E imediatamente ocupam um lugar superior na ordem colonial, consagrados que foram pela sentença que carregam.
As duas reações normais a essa situação são bem pouco discretas. A primeira é desqualificar a morte e o doente, como se isso não fosse nada. É o sintoma do avestruz, que acredita que enfiando a cabeça na terra não verá passar ao seu lado o predador faminto. A segunda e de pesar e solene silêncio. A cabeça pende na despedida e a voz se torna gutural. Nunca a alegria e a festividade são consideradas, afinal deveria ter alguma importância a gente ir primeiro aonde todos vão.
Parece que a felicidade só retorna ao seio da convivência se o doente se salva e retorna ao molho insosso das patologias da colonização. Ufa, quase.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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