Bolsonaro teve ampla vantagem em bairros dominados pela milícia, mostra levantamento
No 1º turno do Rio de Janeiro, mapa das eleições mostra que Bolsonaro obteve maior apoio em bairros dominados pela milícia. Lula venceu nos bairros onde o crime organizado possui menor penetração
Lucas Neiva, Congresso em Foco
Na capital fluminense, o mapa das eleições presidenciais reflete o da violência. Conforme aponta um cruzamento de dados realizado pelo Congresso em Foco, o perfil da violência na cidade do Rio de Janeiro coincide com a escolha dos eleitores: nos bairros com maior incidência do poder das milícias, o presidente Jair Bolsonaro (PL) obteve vantagem. Nos bairros onde o crime organizado possui menor penetração, a vitória já foi do ex-presidente Lula (PT).
Os dados referentes à incidência das milícias foram obtidos a partir do Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, desenvolvido pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em parceria com a ONG Fogo Cruzado. Os dados eleitorais já são separados conforme suas respectivas zonas do Tribunal Superior Eleitoral, com alguns bairros possuindo mais de uma e algumas sendo compartilhadas entre dois ou mais bairros.
Centro-sul de Lula
No total de zonas eleitorais, Lula obteve a vantagem na capital fluminense, onde obteve maioria em 33 zonas, contra 16 de Bolsonaro. Geograficamente, tratam-se quase todas de zonas pequenas e densamente povoadas, concentradas ao redor do centro da cidade, acrescentando também toda a zona sul e bairros próximos na zona norte.
Essa região é formada por bairros majoritariamente de elevado poder aquisitivo, como Leblon e Botafogo na zona sul, com algumas exceções, em especial na zona norte. Em comum, tratam-se de bairros com baixa capilaridade do crime organizado, com atividade de facções criminosas (vermelho) restrita em maior parte aos arredores dos centros urbanos, e apenas pequenos enclaves da milícia (azul), em especial no Morro de Santo Antônio.
Fora dessa zona está um enclave na zona oeste de maior incidência a votos em Lula. Ao contrário dos demais bairros de maioria lulista, essa zona eleitoral engloba o bairro de Rio das Pedras, um dos principais redutos da milícia no Rio de Janeiro. A região ganhou maior relevância a partir de 2018, quando uma milícia local orquestrou o assassinato da vereadora Marielle Franco.
Oeste bolsonarista
Na zona oeste, os três bairros com maior concentração de milícias são também onde houve maior direcionamento de votos ao atual presidente. Campo Grande, com quatro zonas eleitorais e com intensa atividade de milícias, atingiu uma média de 57,49% de votos em favor de Jair Bolsonaro. Bangu, que é palco de confrontos entre milicianos e facções criminosas e contabiliza três zonas eleitorais, obteve 54,2% para Bolsonaro.
Santa Cruz, no extremo oeste da capital fluminense, também possui largas porções de seu território controlado por milícias. O padrão foi o mesmo: Bolsonaro obteve mais ao menos 53% dos votos. O mesmo aconteceu na vizinha Guaratiba, ao sul: o bairro de grande área verde e baixa densidade demográfica conta com concentrações de milícias em seus bolsões populacionais, e o atual presidente obteve 57,2% dos votos.
Outro tradicional reduto das milícias na cidade é Jacarepaguá, onde as zonas eleitorais contam com dois resultados distintos: na região com menor atividade da milícia, que divide a zona eleitoral com Rio das Pedras, o resultado foi pró-Lula. Na parte oriental do bairro, onde a presença das milícias se encontra cristalizada, o resultado já foi majoritariamente pró-Bolsonaro.
Estrutura de voto
Uma das pessoas que acompanhou o comportamento das milícias da capital fluminense durante as eleições foi o sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador do comportamento das milícias. De acordo com ele, a tendência de apoio a Bolsonaro nos bairros tomados pela milícia não se dá por acaso. Uma série de fatores se somam nessas regiões, onde o poder desses grupos criminosos acaba por determinar o resultado eleitoral de suas zonas de controle.
O especialista conta que, ao contrário das facções criminosas ligadas ao tráfico, as milícias possuem um elevado poder de penetração política. “Milicianos articulam. Eles dialogam com deputados, dialogam com líderes religiosos, dialogam com empresas”, descreve. Com isso, conseguem ao mesmo tempo estabelecer redes de apoio político no Rio de Janeiro e identificar os principais interesses das populações locais.
Essa capacidade de articulação foi utilizada por muitos anos por milicianos para fortalecer seus próprios projetos políticos, promovendo candidatos que ajudem a preservar o poder de suas respectivas milícias. A proporção, porém, mudou nos últimos anos. “Até por volta de 2019, as milícias eram em grande parte o fruto de iniciativas de indivíduos ou de pequenos grupos. A partir de então, passaram a expandir a operação e agir de forma cada vez mais coordenada, chegando a desenvolver projetos para o governo estadual ou até mesmo para a presidência da república”, conta o sociólogo.
Em um cenário de milícias mais interessadas na política e com estrutura fortalecida, o professor alerta para a transformação desses grupos em “superpalanques”. Exercendo controle absoluto sobre uma vasta população, a articulação de políticos com a milícia se tornou, para muitas candidaturas, uma exigência: o eleitor local vai necessariamente votar conforme a indicação da milícia, que impõe os interesses em comum com esses moradores aos candidatos que tentam obter seu apoio.
Mesmos palanques de Cláudio Castro
Bolsonaro, na avaliação do professor, acabou capitalizando votos com esse cenário, onde grande parte dos acordos das milícias declararam apoio a candidatos de sua base aliada. Exemplo disso se dá no pleito para o governo estadual: os bairros que votaram em Bolsonaro foram os mesmos que garantiram a vitória de Cláudio Castro, governador reeleito do Rio de Janeiro e aliado do presidente.
Da parte dos moradores, José Cláudio explica que sequer há a necessidade de controle do voto por parte dos milicianos. “Antigamente, os milicianos controlavam o voto pela região, vendo o total de votos daquela zona eleitoral. Hoje não precisam disso. O poder deles é absoluto, e com o tempo eles aprenderam a atender a certos interesses dos moradores: muitos preferem pagar a taxa a sofrer um assalto, outros não votam contra porque querem manter o preço do gás como está, outros porque compraram um imóvel ilegal com a milícia e querem manter como está”.
Outra parcela dos eleitores dessas regiões já enxerga a milícia como um problema, mas não enxergaram a oposição a Bolsonaro como uma alternativa a nível estadual e nem federal. “De um lado, Marcelo Freixo (PSB) se afastou do discurso do combate à milícia em sua campanha para governador. Do outro, o PT buscou apoio a Lula em políticos da baixada fluminense, onde os municípios também foram tomados pela milícia. Para o eleitor, pareceu mais seguro continuar como estava”, apontou.