Política, castração e prazer
A política do momento está se esbaldando nessa forma violenta de genocídio cultural. Imaginando que sabem o que é ser de esquerda ou de direita, os contendores inflamados acusam seus rivais de alimentadores do ódio
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
As mulheres foram castradas pela moral e pelos bons costumes; os homens pela prostituição e pela pornografia; as crianças pela psicologia e pela educação; os velhos pela ilegalidade e pelo cansaço.
A castração deixa as pessoas amarguradas e a amargura facilita que o pensamento dicotômico, uma das formas mais elementares de ver o mundo, prevaleça sobre outras mais encantadoras.
Desencantadas, amarguradas, a energia que deveria servir para emancipar a vida se contorce num pano de chão puído que retorce toda a solidariedade. E justamente as formas mais frágeis de hostilidade vão assumindo o lugar dos afetos. Religião, futebol, sexualidade, racismo, política, dentre outros dispositivos dicotômicos afetam mais que o amor.
Estamos no coração mesmo da dicotomia atualmente. E a dicotomia existe para o rancor, a discórdia, o confronto, a descarada objetificação do outro. Sem pudor, podemos afrontar a ignorância com a nossa ignorância soberba.
Castrados podemos tranquilamente castrar nossos próximos sem pudor.
A política do momento está se esbaldando nessa forma violenta de genocídio cultural. Imaginando que sabem o que é ser de esquerda ou de direita, os contendores inflamados acusam seus rivais de alimentadores do ódio.
Ao afirmarem o ódio alheio querem isentar o ódio próprio, como se a reação fosse justificada.
Recentemente perguntei a uma pessoa de esquerda, o que era ser de esquerda e o que era ser de direita na opinião dela. A resposta não me surpreendeu: segundo ela, ser de esquerda é querer o bem comum e ser de direita é querer a desigualdade.
Não é de estranhar que a autoimagem de alguém de esquerda seja moralmente válida e superior. E isto basta para garantir seu certificado de validade. O outro é fascista e poderia ser erradicado da face da terra, pois trás em si uma história de autoritarismo.
Se a mesma pergunta for feita para alguém que se julga de direita, a resposta será similarmente oposta: a esquerda quer implantar o comunismo aqui e acabar com todo liberalismo. Vão entrar na sua casa e te expulsar de lá com o rabo entre as pernas. E te mandar para uma fábrica cinzenta.
Então temos em disputa duas ignorâncias: quem é de esquerda não sabe o que é esquerda e quem é de direita não sabe o que é comunismo.
Na prosa que tive com a pessoa em questão, depois de sentir que ela fazia parte de uma totalidade de ignorâncias em que não escapam sequer os ideólogos desse tempo com seus discursos volumosos de besteiras, resolvi simplificar o máximo que pude para que a mentalidade de urgências que as redes formataram assimilasse se quisesse.
Se nos afastarmos das palavras e, portanto, das ideologias, ser de esquerda é considerar ações coletivas como ferramentas políticas. Nesse sentido, as favelas operam muitas vezes dessa maneira. Como as demandas são comuns numa forma societária construída como exclusão, a colaboração é um ato consideravelmente mais importante que o cálculo individual. Não agem assim porque são melhores ou piores, agem assim porque as condições materiais exigem determinadas posturas não egoístas em detrimento de louvação à escassez da farinha (farinha pouca meu pirão primeiro). A enchente, a polícia, a denúncia, a distância, as aflições comuns são tantas que o individual se dissolve diante das calamidades.
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Quem vive a experiência coletiva nesse nível sabe desde muito pequeno que a ausência de pai e mãe precisa ser compensada pela solidariedade comunal. Não há trabalho que chegue pra todos. Dividir o pão é a única maneira de sobreviver, pois amanhã outro irá dividir também o seu, já que não existe esperança numa vida que é só presente. Só o hoje conta e a vida deve ser vivida na urgência do agora até que isso se mostre natural e eficaz.
O único apelo que pode ser considerado é pelo socorro de Deus e do próximo, que a enchente também ameaça com sua democrática manifestação de lixo e água.
Geralmente órfãos de linhagem, esses seres de esquerda se aproximam para usufruir melhor calor humano. Essa proximidade é inata a eles como os gravetos que individualmente são frágeis, mas juntos são inquebrantáveis.
Do outro lado do espectro, a direita, cujo núcleo é a família. Seu caráter liberal ensinou que a proteção sobre a família é o único movimento que importa, pois imaginam sempre a geração de heranças. Filhos e casamentos implicam em propriedades, casas, veículos. São apreciadores dos objetos que definem sua ascensão social. São definidos pelo cartão de crédito que permite a acumulação capitalista de modo indefinido. Seu endividamento será permanente, pois é ele quem garante seu lugar social em que a família e cada um de seus membros habitam com distinção.
Até uma classe social foi consumida para sua exclusividade. Chamada de classe média, pois viverão uma vida inteira no meio, no entre lugar. E orgulham-se de aí conviver, com exceção dos ideólogos que condenam esse entre lugar com um gosto amargo de pertencimento e exílio.
Realizam-se nos filhos como garantia de futuro, pois o futuro é seu lugar de conforto e ambição. Sofrem das patologias futuristas como se fossem normais, daí que muitos chamam esses sofrimentos de normose, pois a normalidade já se tornou doentia.
Se a família é o lócus preferencial da direita, então proteção, endividamento, diploma, trabalho são os valores mais insidiosos que guarda. Precisam dar aos filhos os mesmo valores. O reino da classe média é o reino do consumo e esse é o aprendizado mais importante.
Essas caracterizações da direita podem ofender alguns puristas mais humanitários que ali habitam, mas a ambição, a proteção, a reprodução fazem da classe média um universo inteiro e é justamente nesse universo que se fundamentam a dicotomia e todos ali digladiam, uns acreditando que são melhores que os outros e se chamam esquerda e outros achando que são melhores que os uns. E como não sabem o que é o prazer, em sua castração histórica vivem ardidos de ódio e carentes de desafetos.
A polarização exercida pelo pensamento dicotômico vem carregada de luz, desse iluminismo que a vivência colonial está sempre a divulgar e o sentimento que promove é de atuação, de responsabilidade pelos destinos humanos, tornando cada um agente de sentido, sentido de tempo, de desenvolvimento, de progresso, de evolução, participantes da jornada humana rumo ao bem comum, à fraternidade geral e ao nome no pergaminho digital que fará toda diferença quando a vitória chegar. A isso se contenta o prazer dos pensadores, a edificar o futuro e a sociedade.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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