Série 'Dahmer' não conta apenas a história de um serial killer, mas de uma sociedade racista
Série de maior sucesso na Netflix atualmente denuncia como a polícia ignorou os diversos apelos de uma vizinha negra de Dahmer para que interviesse. A origem racial da denunciante, das vítimas e do assassino foi determinante para a omissão da polícia. Afinal, numa sociedade racista e homofóbica, a palavra de uma negra e vidas negras importam muito pouco. Dahmer, um homem branco e loiro, não apresentava o "estereótipo de criminoso"
por Danilo Cymrot*, na Folha Ilustrada
O que a história de um serial killer canibal pode nos contar sobre o Brasil de hoje? A série “Dahmer: Um Canibal Americano”, atualmente uma das mais assistidas na plataforma de streaming Netflix, narra a vida do serial killer americano Jeffrey Dahmer, condenado por 15 assassinatos e acusado de mais dois, cometidos entre 1978 e 1991.
Os crimes envolviam ainda estupro, necrofilia e canibalismo e vitimaram principalmente jovens gays não brancos, majoritariamente negros. A série denuncia como a polícia ignorou os diversos apelos de uma vizinha negra de Dahmer para que interviesse, diante de indícios de que Dahmer cometia assassinatos em seu apartamento, como o cheiro dos corpos em decomposição.
A origem racial da denunciante, das vítimas e do assassino parece ter sido determinante para a omissão da polícia. Afinal, numa sociedade racista e homofóbica, a palavra de uma negra, vidas negras e LGBTs importam muito pouco. Dahmer, um homem branco e loiro, não apresentava o “estereótipo de criminoso”. O mérito da série está, portanto, em politizar o caso, mostrando que o assassino não era o único responsável pelas mortes.
A cidade de São Paulo viveu, entre 1986 e 1989, uma onda de assassinatos de homossexuais, narrada no livro “Dias de Ira: Uma História de Assassinatos Autorizados”, de Roldão Arruda (Editora Globo, 2001). Na época, os crimes foram atribuídos ao michê Fortunato Botton Neto, conhecido como Maníaco do Trianon, pois seria nas redondezas desse parque, ponto de prostituição masculina, que atraía suas vítimas.
A tese de que todas as mortes foram produto de um único serial killer, no entanto, é refutada pelo autor do livro, que as contextualiza historicamente, lembrando assassinatos de homossexuais cometidos em outras cidades, por outras pessoas, na mesma época, com o mesmo modus operandi. Citou ainda que as mortes ocorreram em um ambiente de pânico moral causado pela epidemia de Aids, em que homossexuais eram demonizados e suas mortes celebradas por amplos setores da população.
Fortunato foi, desta forma, uma espécie de bode expiatório bastante conveniente. Acusado de 13 assassinatos, confessou sete e foi condenado por três, embora só houvesse provas contundentes de que havia cometido um. Enquanto os casos envolvendo vítimas de classe alta mereceram uma investigação mais apurada, os casos envolvendo vítimas pobres tiveram muito menos atenção da polícia e da mídia. Afinal, como dito no livro, em um país em que a minoria dos casos de homicídio é solucionada (três em cada dez em 2020, segundo o Instituto Sou da Paz) todos os cadáveres fedem, mas “alguns fedem mais do que outros”.
Na mesma semana de estreia de “Dahmer: Um Canibal Americano”, estreou na Globoplay a série “Rota 66”, baseada no livro de Caco Barcellos, “Rota 66: A História da Polícia que Mata” (editora Globo, 1992). O livro narra as execuções extrajudiciais cometidas por integrantes das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, de 1970 a 1992, quando, segundo a apuração de Caco Barcellos, de 4.200 mortes, pelo menos 2.000 foram de vítimas inocentes.
“Rota 66” e “Dahmer: Um Canibal Americano” possuem alguns pontos de semelhança que merecem destaque. Assim como no caso americano, o perfil social e racial das vítimas de execuções extrajudiciais por parte de integrantes da Rota –jovens pobres e negros— fez com que essas mortes fossem invisibilizadas.
O pontapé inicial da investigação de Caco Barcellos foi justamente uma exceção, um episódio em que dois jovens brancos de classe alta foram executados pelos policiais militares em pleno Jardim América, bairro nobre de São Paulo, em 1975. Assim como no caso do suposto serial killer Maníaco do Trianon, as mortes provocadas por integrantes da Rota eram tratadas com indiferença ou até celebradas por amplos setores da população.
Orlando Zaccone, em “Indignos de Vida: A Forma Jurídica da Política de Extermínio de Inimigos na Cidade do Rio de Janeiro” (Revan, 2015), mostra como a polícia, quando atira para matar pessoas consideradas “matáveis”, pelo simples fato de serem apontadas como “bandidos” ou “traficantes” —sob o pretexto de agir em legítima defesa—, não aperta o gatilho sozinha.
Muitas vezes conta com o respaldo do Ministério Público, do poder Judiciário, do poder político e da grande mídia. Quando um policial é punido pelo “excesso”, um bode expiatório é oferecido à sociedade como uma “maçã podre” e a estrutura que gera e naturaliza tantas mortes continua inalterada.
Para amplos setores da população, os policiais que matam dezenas de pessoas, diferentemente de Dahmer e Botton, sequer são vistos como assassinos, muito menos como potenciais psicopatas.
Pesquisa Datafolha realizada seis dias após o massacre do Carandiru revelou que 29% dos entrevistados consideraram correta a ação da polícia. Dos entrevistados, 39% declararam acreditar na versão dos policiais de que agiram em legítima defesa. A responsabilidade direta pelo massacre foi imputada por 36% aos presos. No dia 15 de novembro de 1992, um mês após o massacre, o candidato Paulo Maluf saiu vitorioso nas eleições municipais.
Embora Maluf tenha oficialmente condenado o massacre, todos os deputados que defenderam publicamente a polícia no episódio eram seus correligionários ou apoiadores, como o radialista Afanásio Jazadji e o capitão da Rota Conte Lopes, ambos personagens do livro “Rota 66” e campeões de votos nas eleições para deputado estadual na década de 1990.
No banco de dados organizado por Caco Barcellos, Conte Lopes é o terceiro maior matador da história da Polícia Militar. O próprio capitão costumava afirmar com orgulho, em entrevistas à imprensa, que matou entre cem e 150 “criminosos”. Perseguia o sonho de ser reconhecido como o maior de todos os matadores.
Alguns colegas afirmavam que havia uma disputa pelo título, que representava vantagens na carreira, como promoções e homenagens. Foram identificadas 36 das 42 vítimas de Conte Lopes registradas no banco de dados de Caco Barcellos. Em muitos casos a morte poderia ter sido evitada, sem nenhum prejuízo à sociedade ou risco a pessoas inocentes.
Uma forte evidência da intenção do deputado de matar os suspeitos é o grande número de vítimas mortas com tiros na cabeça. Das 25 vítimas mortas por Conte Lopes que Caco Barcellos conseguiu identificar e cujo passado criminal foi informado pela Justiça, 13 nunca haviam praticado nenhum crime e possuíam ficha limpa e 12 já tinham estado envolvidas em algum tipo de crime, a maioria furto e roubo.
Dessas, apenas duas eram assaltantes que já haviam matado uma pessoa. Nas eleições de 2022, 30 anos após o massacre do Carandiru e a publicação de “Rota 66”, Conte Lopes obteve 192.454 votos para deputado estadual pelo PL, partido do presidente Bolsonaro, sendo o décimo quarto mais votado.
“Rota 66” não foi vendida como uma série sobre serial killers, diferentemente de “Dahmer: Um Canibal Americano”. O conceito de serial killer de fato é problemático e controverso. Entre as características comumente apontadas no serial killer estão a compulsão em matar, a forma ritualística como os assassinatos são cometidos, o prazer sexual obtido, sadismo, psicopatia ou psicose, a presença de abusos físicos, psicológicos ou sexuais na infância, narcisismo, baixa autoestima, QI acima ou abaixo da média etc.
Esses traços, no entanto, alguns deles contraditórios, não estão presentes necessariamente em todas as pessoas rotuladas como serial killers. Da mesma forma, podem passar despercebidos quando “matar” se torna a profissão legal do assassino, legitimado pelo Estado, ou seja, quando “matar” se torna “cumprir um dever”. Um perfil específico apontado de serial killer é justamente o do “justiceiro”, que acredita que mata para limpar o mundo do mal ou do pecado. No terreno da ficção, pode-se citar a série “Dexter”, que retrata um policial que atua nas horas vagas como um “serial killer de serial killers”.
Deve-se ter em conta que o perfil do serial killer foi traçado de forma enviesada, com base naqueles que foram pegos, ou seja, nos mais vulneráveis à seletividade do sistema penal, o mesmo erro metodológico em que incorreu Cesare Lombroso, o pai da criminologia, quando traçou o perfil do delinquente estudando a população presa.
Os casos mostrados em “Rota 66” falam de policiais que matavam dezenas de pessoas usando o mesmo modus operandi: executando o “suspeito” desarmado ou já rendido, simulando uma troca de tiros e levando as vítimas já mortas para o hospital, alterando a cena do crime e prejudicando a perícia.
Não se deve, porém, patologizar os policiais. Se a força policial, em virtude da natureza do seu trabalho, pode atrair personalidades autoritárias e violentas, deve-se ter em mente também que os recrutas compartilham os valores dos grupos sociais dos quais se originam.
Há evidências, ademais, segundo Robert Reiner, de que tais atitudes autoritárias se acentuam com a experiência no trabalho, após um efeito liberalizante temporário durante o treinamento, o que é mostrado no filme “Tropa de Elite”. Nem todos os grandes matadores da polícia são necessariamente psicopatas, mas pessoas que foram socializadas para seguir este padrão de conduta, sendo convencidos de que estavam “matando bandidos”, embora na realidade pudessem ser inocentes desarmados. Foram incentivados e pressionados a aderir a essa cultura profissional, institucional, sob pena de serem perseguidos.
O controverso experimento da prisão de Stanford de 1971, em que a referida universidade simulou uma prisão com voluntários, mostrou como pessoas pacatas rapidamente se transformaram em guardas sádicos, diante da sensação de poder que exerciam sobre os prisioneiros e do corporativismo que aflorou entre eles.
Por outro lado, Hannah Arendt relata como assassinos em massa podem ser simplesmente burocratas, que, diante da divisão do trabalho, se sentem desresponsabilizados por seus atos, enxergando-se como funcionários exemplares seguidores de ordens, sem refletir sobre a moralidade dessas ordens.
Apesar de denunciar a instituição Polícia Militar e não tratar os assassinatos como fruto de mentes individuais doentias, a série “Rota 66” tem a preocupação de não generalizar, mostrando pelo menos dois integrantes da corporação que são críticos às execuções extrajudiciais.
Nesse sentido, a adoção de câmeras nos uniformes de policiais militares em São Paulo, que fez com que as mortes provocadas por policiais da Rota despencassem 89% em sete meses, são uma conquista não apenas para as potenciais vítimas da violência policial, mas para os próprios policiais honestos. Enquanto o candidato ao governo de São Paulo Tarcísio de Freitas é contra a adoção das câmeras, o candidato Fernando Haddad é favorável.
“Dahmer: Um Canibal Americano” mostra a luta da vizinha do serial killer para que se fizesse um memorial em homenagem às vítimas no lugar onde o prédio em que morava, em Milwaukee, foi demolido. A opção da cidade, no entanto, foi pelo esquecimento.
Da mesma forma, a demolição do complexo do Carandiru em 2002, no governo Geraldo Alckmin, foi vista por alguns críticos como uma tentativa de silenciar a memória do episódio de 1992. Curiosamente, os lugares em que crimes terríveis foram cometidos correm o risco de virar locais de culto aos criminosos ou apenas de selfies voyeuristas, como no caso do podcast “A Mulher da Casa Abandonada”.
“Dahmer: Um Canibal Americano” critica como o serial killer foi glamourizado e alçado ao estrelato, quase como um super-herói, conquistando uma legião de fãs. Esse fenômeno do culto a serial killers se repete em outros casos e encontra diversas explicações interdisciplinares, que não cabe aqui aprofundar. O próprio interesse do público por séries de true crimes, ou programas policialescos, é criticado como um sintoma desse fascínio macabro pela violência. A mesma série que critica o uso de um caso tão doloroso para lucrar sofre a mesma acusação.
No entanto, se parece patológico idolatrar serial killers como Dahmer, talvez seja o caso de questionar até que ponto também não seria patológico idolatrar ou eleger quem, sob o pretexto de defender a luta do bem contra o mal, declara que “sua especialidade é matar”, sendo canibal ou não.
*Danilo Cymrot é Doutor em criminologia pela USP e autor do livro “O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento”