Um react à fúria de Casimiro contra Ana Moser
Ministra Ana Moser despertou a ira dos famosos streamers e também dos filhos de Bolsonaro ao afirmar que esportes eletrônicos não são esportes na acepção original da palavra. E que, por isso, não será de sua pasta que sairá qualquer iniciativa de financiamento à modalidade
Flávio Gomes, Uol
Semana passada, em entrevista ao Uol, a nova ministra do Esporte, Ana Moser, disse o óbvio: que esportes eletrônicos, nome bonito que praticantes dão aos videogames, não são esportes na acepção original da palavra. E que, por isso, não será de sua pasta que sairá qualquer iniciativa de financiamento ou fomento à, vá lá, modalidade.
Foi o bastante para despertar a ira dos, vá lá, e-esportistas. A começar dos famosos streamers que fazem a vida transmitindo em plataformas online jogos de videogame deles e dos outros, de temática invariavelmente violenta. Não saberei citar todos os nomes, mas escolha um: Counter Strike, League of Legends, Free Fire, Fortnite, GTA… Todos têm como objetivo destruir inimigos, explodir prédios, matar adversários com uso de fuzis e outras armas, confrontar zumbis, roubar automóveis, atropelar gente.
Há também os games, vá lá, esportivos, como de futebol e Fórmula 1. Que são muito realistas e divertidos. E que podem ser enquadrados também na categoria de simuladores, pois é isso que fazem: simulam competições que existem na vida real – no caso, partidas jogadas num campo gramado com seres humanos e bola e corridas de carros em circuitos de asfalto. Equipes de F-1 usam bastante, para que pilotos se familiarizem com pistas novas e mudanças de reação dos carros em função de determinados parâmetros – como cambagem, cáster, calibragem, mapa de motor, regulagens aerodinâmicas, carga de freio etc. Times de futebol, por sua vez, não usam o FIFA como método de treinamento. Não que eu saiba.
Ana Moser disse o óbvio porque videogames fazem parte de uma indústria de entretenimento, não do amplo campo das atividades esportivas, sejam elas competitivas, de lazer ou ligadas à saúde pública. Pertencem a empresas privadas que vendem equipamentos e jogos, detêm direitos intelectuais sobre programas de computador e podem acabar com sua prática se desligarem servidores ou descontinuarem títulos. Resumidamente, eSports, nome pomposo, dependem da boa vontade de grandes corporações para existirem. E sua prática requer que se ligue algum equipamento à tomada e uma boa conexão à internet. Como é que alguém pode chamar isso de esporte e “exigir” que um governo dedique tempo e dinheiro a ele?
Isso para não falar novamente da temática bélica que tem inspirado milhares de adolescentes desajustados a levar para as ruas aquilo que vivem trancafiados em seus quartos diante de telas de computadores ou celulares. São contados às centenas no mundo – em especial nos EUA — os casos de jovens que saem atirando por aí com fuzis e pistolas como se estivessem exterminando os soldados inimigos de seus joguinhos. A inspiração é óbvia. É claro que não se pode responsabilizar diretamente uma produtora de videogame por um massacre numa escola – eles aconteciam antes do nascimento dos consoles —, mas não se pode negar que quando tal atividade, ainda que virtual, se espalha por centenas de milhões de praticantes a probabilidade de que ela seja reproduzida na vida real aumente exponencialmente.
Os defensores da aceitação dos esportes eletrônicos como esportes usam argumentos bem rasos para justificar sua demanda. Dizem que há equipes fortíssimas formadas em todos os países, que os praticantes treinam, têm apoio de nutricionistas e preparadores físicos, que recorrem a psicólogos e participam de competições organizadas que têm milhões de seguidores e movimentam bilhões de dólares.
E?
Ana Moser usou uma comparação banal com Ivete Sangalo, que também se prepara, treina, cuida do físico e tem milhões de fãs para fazer um show. Poderia ter usado outra analogia, mas essa não tem nada de ofensiva aos gamers. Faz sentido. Diversas atividades profissionais e amadoras requerem preparo, treinamento, dedicação. Esportivas ou não. Um relojoeiro precisa de precisão no seu ofício. Um pedreiro, de força física. Um cirurgião, de concentração. Por que será que jogadores de videogame buscam com tanto afinco esse reconhecimento da sociedade, a validação de sua diversão com o revestimento de algo nobre e inatacável, como é a atividade esportiva de verdade? Por que será que se sentem tão ofendidos quando são chamados do que são, jogadores de videogame?
Ninguém nega o tamanho dessa indústria, o quanto movimenta de dinheiro, a capacidade de mobilizar grupos enormes de praticantes. Há os que usam parcos exemplos de equipes de jogadores e seus criadores como prova de que os games “tiram os jovens do crime”, uma simplificação marota que pode ser aplicada a qualquer atividade praticada nas periferias das grandes cidades, muitas delas resultado do esforço de grupos que promovem cultura, música, literatura e, claro, esporte de verdade.
Li que o streamer Casimiro, famosíssimo e riquíssimo, atacou Ana Moser, dizendo que sua entrevista foi “grotesca, grosseira e arcaica”. Uai, por quê? Quais os argumentos usados por Casimiro? Vou reproduzir alguns trechos do que disse o rapaz:
– “O ponto deste debate, que nem deveria ser debate, é o seguinte: tu pode ter a sua opinião que quiser. Tu só não pode fazer duas coisas. Um: desrespeitar a parada. E dois: mostrar uma ignorância foda no comentário. Isso não dá“.
– “Você só não pode ser ignorante no assunto. Na minha opinião, a Ana Moser foi ignorante. É lamentável. Ela mostrou desconhecimento do assunto. Ela pode ter a opinião de que esporte eletrônico não é esporte. Fica à vontade. Ela só não pode tratar o esporte eletrônico como se fosse uma merda, porque é um bagulho que dá dinheiro, muda a vida das pessoas e é muito importante na vida de várias pessoas. Não dá para ignorar. Ela poderia escolher mil frases melhores. Ela escolheu a pior. Ela escolheu palavras ruins“.
– “O bagulho que me desagrada é o simples fato de que é um comentário arcaico. A forma como ela fala. Beleza que você não quer colocar o eSport na pasta do esporte, você vai colocar em que pasta? Porque tem que ter investimento, tem que ter. É muito grande, pô. Não pode tratar como se fosse uma merda. Na pasta de Cultura, na pasta de Ciência e Tecnologia, em algum lugar. Ela poderia ter só mais cuidado na fala dela, porque desrespeitou muita gente“.
Casimiro virou uma celebridade por causa de seus “reacts”, essa coisa de fazer lives nas plataformas de vídeo reagindo ao que está vendo – jogos de futebol, BBB, partidas de videogames, realities de solteiros & casados ou gastronomia. Nada contra, mas farei algo parecido, um “react” ao que disse sobre Ana Moser. Na mesma ordem das citações acima:
– Debate que nem deveria ser debate? Então por que debater? Por que opinar, argumentar? Pode ter a opinião que quiser? Então por que rechaçar a opinião da ministra de forma tão agressiva e virulenta? Qual o “desrespeito à parada” na opinião da ministra, que disse apenas que não considera eSport esporte? Qual a “ignorância foda” do comentário, exatamente?
– Onde e quando Ana Moser chamou esporte eletrônico de “uma merda”? O fato de ela ter uma opinião diferente da sua faz com que você conclua o que bem entende, que ela chamou videogame de “uma merda”? Ela “escolheu palavras ruins”? Quais seriam as palavras boas, no caso? Só o fato de você discordar dela faz com que suas palavras automaticamente, sejam “ruins”?
– Você diz que ela pode achar que eSport não é esporte. Quem bom que acha isso, quanta generosidade… Ana Moser, você pode achar, ok? Casimiro autoriza. Agora… De onde você tirou a noção de que qualquer atividade humana, virtual ou real, tem de ser encaixada em algum ministério? Por que os praticantes de eSports precisam ser contemplados com investimentos do governo e não, sei lá, as manicures, os pizzaiolos e os marceneiros? Que lógica torta é essa?
Há um fetiche entre os agentes dessa milionária indústria, que é o do reconhecimento público. Passa-se o mesmo entre os praticantes do que se chama de Automobilismo Virtual, o AV. Eles, que jogam em simuladores, fazem questão de ser tratados como pilotos de verdade. Um dos argumentos é o de que alguns moleques que se destacaram nessas competições virtuais foram aproveitados por algumas montadoras e/ou equipes para guiar carros de verdade.
Um ou outro conseguiu disputar corridas, sim. É quase uma questão estatística. Se pegarmos qualquer grupo profissional numeroso, é bem provável que dele saia alguém capaz de guiar um carro de corrida. Tanto faz se a busca se dê entre milhões de praticantes de videogames ou entre milhões de padeiros e confeiteiros. A quantidade, aqui, é que determina o resultado. Claro que num universo de milhões de praticantes de videogame ou simuladores interessados por corridas é possível pinçar alguém que saiba dirigir. Assim como entre milhões de jogadores de FIFA deve ter alguém que saiba jogar bola. Mas ser um Messi no FIFA não faz de ninguém um Messi com a bola no pé. No caso da F-1 – lamento decepcioná-los —, Hamilton e Verstappen detestam simuladores. E não os usam para nada. Só quando são obrigados e a situação de suas equipes é ruim. Ano passado, Hamilton teve de recorrer a eles para tentar melhorar um carro que era uma bomba. Não adiantou muito.
Equipes e montadoras de automóveis, é verdade, promovem competições e mantêm times de garotos e garotas praticantes de AV porque é uma indústria que movimenta muita grana e a elas interessa atrair um público jovem para consumir aquilo em que atuam na vida real. Toda equipe de F-1 tem hoje um setor de eSports. É apenas negócio. Não é esporte.
O que realmente me incomoda nessa gritaria dos veneradores de consoles e atletas de quadrado-triângulo-bolinha-X é a necessidade de ver seu hobby validado pelos adultos. Sei que, neste momento, os que estão lendo – não serão muitos a chegar até este ponto dessa coisa meio anacrônica para os dias atuais chamada “texto” – irão dizer que sou um tiozão calvo (não entendo por que “calvo” viralizou na linguagem paupérrima das redes como ofensa, alguém me explique, se puder) que não entende nada do assunto, nem conhece a realidade dos eSports.
Bem, em minha defesa digo que entendo, sim, e conheço, sim. Apenas não me interesso por esse universo. Acho que tenho esse direito, de não me interessar e achar que dar tiro, porrada e bomba enfrentando dragões e zumbis ou explodindo a cabeça de soldados virtuais é uma babaquice – ainda que atraia multidões e dê muito dinheiro a grandes corporações. Também já tive 12 anos e na época ganhei um Telejogo da Philco. Ainda tenho e funciona. Não fez de mim um tenista, nem jogador de futebol. Talvez se no meu tempo já existisse o Wii, quem sabe? Mas o Wii, que pelo que sei fracassou, exigia que o praticante ficasse de pé e, de alguma forma, reproduzisse os movimentos do esporte que simulava. E não que o jogador ficasse horas trancado no quarto comendo Doritos e tomando Fanta.
Não acho que governo nenhum tenha de subsidiar Doritos e Fanta para ninguém.
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