Conservadores alemães invadem o Paraguai para fugir do "socialismo" e das "vacinas"
Conservadores radicais migram da Alemanha para o interior do Paraguai e criam comunidade com milhares de pessoas. Até agora, as autoridades paraguaias parecem mais interessadas na entrada de dinheiro e na geração de empregos desse fluxo migratório do que nas ideias extremistas que eles defendem
Alex, um mecânico alemão de 29 anos, visitou três vezes o Paraguai até decidir se mudar para Hohenau, município de 15 mil habitantes fundado por famílias gaúchas em 1900. Há seis meses, emigrou para o país com a mulher e os quatro filhos.
A família mora num contêiner enquanto ergue uma casa de alvenaria. “Vim por dois motivos. Com a pandemia e a falta de emprego, nunca iria realizar o sonho de ter minha casa lá. A Alemanha está muito bagunçada, e a sociedade está abandonando a moralidade”, diz.
Alex não é o único. Muitos alemães estão deixando o país europeu para trás para viver nas Colônias Unidas, cidades no interior do Paraguai que concentram parte dos 300 mil descendentes de germânicos que se instalaram em solo sul-americano desde o século 19. Não é um assunto que eles gostam de discutir — se aceitam, como o mecânico de Hohenau, pedem para se identificar apenas pelo primeiro nome.
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Muitos teriam entrado no Paraguai a partir das fronteiras secas com a Bolívia e o Brasil. Embora o governo registre menos de 10 mil alemães radicados no país, a embaixada europeia na capital, Assunção, considera o número superior a 30 mil.
Entre os novos imigrantes há cristãos conservadores como Alex, cujos sogros já moravam em Hohenau. Perto dali, a história ganha mais detalhes num terreno todo alambrado e com uma bandeira própria.
‘Prenúncios do apocalipse’
Um “estado multiterritorial” com assentamentos em vários lugares do mundo, adotando seu próprio sistema econômico, educacional, de saúde e segurança. Assim é a definição para as UNIJCs (“Nações Unidas em Jesus Cristo”, em inglês), segundo o site da Global Video Church, igreja evangélica digital fundada pelo casal Tom e Inga Haase, em 2014. Fora três sedes na Alemanha, eles têm até agora uma vila em Hohenau (há outra a ser construída).
Nelas, o território dos “verdadeiros cristãos” é representado por um escudo verde e azul (símbolo da união da terra e do céu) com uma coroa amarela no alto (significando Jesus). Por serem criticados pelo isolamento em relação à população paraguaia, a igreja promoveu uma festa chamada “Dia da Esperança”, em setembro, e convidou lideranças comunitárias e suas famílias. Depois dos discursos, as bandeiras das UNIJCs e do Paraguai foram hasteadas num único poste. A do país sul-americano ficou por baixo.
“Foi um chamado de Deus para criarmos vilas no Paraguai e nos refugiar desse mundo socialista”, Inga disse em uma pregação digital. A igreja era um nicho de influenciadores cristãos, mas na pandemia deu uma guinada dos temas teológicos para os políticos. Para eles, a covid-19 é “a marca da Besta”, a pandemia e a guerra da Ucrânia são “prenúncios do apocalipse”, e as Nações Unidas e a União Europeia representam o “sistema da Babilônia”.
As autoridades paraguaias parecem mais interessadas na “entrada de recursos” e na “geração de empregos” desse fluxo migratório do que nas ideias extremistas de parte desses imigrantes, que se referem, por exemplo, a uma “ditadura do corona[vírus]”. Muitos chegaram em 2020, quando ainda não havia vacina para a covid-19. Na imprensa alemã noticiou-se que, quando o Paraguai passou a exigir comprovante de imunização, em 2021, houve compra de certificados na Alemanha para burlar o controle.
Enquanto o TAB esteve no Paraguai, Tom e Inga estavam nos Estados Unidos, tratando de criar uma sede da igreja por lá. O pedido de entrevista acabou respondido por Jonathan Walter, um dos responsáveis pela vila Esperanza, que alberga parte dos seguidores da religião. “Não estamos interessados. Esperamos que entenda.”
Utopia cristã
Entre as ruínas da missão jesuítica de Trinidad, o turista alemão Thomas passeia com sua mulher. É a quarta viagem deles ao Paraguai.
“Aqui te deixam em paz. Já na Alemanha, o Estado entra em cada canto de sua casa. Você não pode podar uma árvore que eles multam. Querem ensinar como aquecer minha casa. Tem QR code para tudo. É um controle total. E a única opção é piorar”, queixa-se o aposentado de 56 anos, pai de três filhos maiores, que considera emigrar, também atraído por baixos impostos no país sul-americano. “Lá na Alemanha, o governo tira nosso dinheiro em impostos e distribui para quem não trabalha.”
Trinidad, vizinha às Colônias Unidas, não poderia ser mais emblemática. As missões na América foram um projeto do Vaticano para criar uma sociedade sem maldades e vícios – chegando a proibir até o consumo de erva-mate, sagrada para os guaranis.
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Os escombros avermelhados na vegetação são os únicos vestígios da primeira utopia cristã que evangelizou os indígenas, foi combatida por caçadores de escravos e acabou banida pelas metrópoles europeias no final do século 18.
Mas o Paraguai continuou sendo palco de quimeras. No século 19, o país se imaginou uma potência industrial sem saída ao mar, entrou em uma guerra contra três nações vizinhas e acabou dizimado. O vazio populacional atraiu novas idealizações – dessa vez, porém, com sotaque teutônico.
Arianos no arado
Explicitamente ou nas entrelinhas, muitos recém-chegados explicam que deixaram para trás um “país dividido”, “pouco cristão” e “muito misturado”, mostrando que a islamofobia é um forte componente desse fenômeno migratório. Assim como agora o alvo do ódio são os muçulmanos que chegaram à Europa com as crises humanitárias da última década, foi o antissemitismo que promoveu, em 1887, a primeira comunidade alemã no coração da América do Sul.
Nueva Germania foi criada no seco e inóspito Chaco, no norte do Paraguai, para ser “um assentamento ariano puro”. Os fundadores foram Bernhard Forster e sua mulher, Elisabeth Nietzsche, irmã mais nova do famoso filósofo. Das famílias pioneiras, umas morreram por doenças tropicais, outras voltaram para a Alemanha e poucas permaneceram – hoje, só 10% da população do distrito tem ascendência germânica.
Com o fracasso econômico do projeto, Foster se suicidou em 1889, ano em que Friedrich Nietzsche sofreu um colapso mental. Quatro anos depois, Elisabeth voltou para a Alemanha para cuidar dos arquivos do irmão. Ela foi responsável pela difusão do pensamento do filósofo, mas também de sua distorção após sua filiação ao nazismo — tanto é assim que o próprio Adolf Hitler foi a seu funeral, em 1935.
Outra onda alemã do século 19 se deu no sul do Paraguai, onde as terras vermelhas e as chuvas regulares eram mais propícias aos métodos alemães de agricultura. Colonos saídos do sul do Brasil convenceram o governo paraguaio a ceder terras, fundando as cidades de Hohenau, Obligado e Bella Vista.
Essa migração vingou. E, na década de 1940, as Colônias Unidas receberam levas de poloneses, ucranianos, russos, belgas e franceses fugindo das devastações da 2ª Guerra Mundial.
Entre esses novos rostos se escondiam nazistas, auxiliados por Alfredo Stroessner, filho de alemão que governou ditatorialmente o país de 1954 a 1989. Um deles foi Josef Mengele, médico responsável por experimentos com judeus no campo de concentração de Auschwitz. Ele viveu anos nas proximidades de Hohenau, antes de morrer e ser enterrado no Brasil.
‘Menos mulçumanos e vacinas’
Diferentemente das levas que povoaram Brasil, Argentina e Chile, a presença germânica no Paraguai sempre teve forte caráter de isolamento político-ideológico. Exemplo disso são os menonitas, que fundaram várias cidades no Chaco no início do século 20. Com uma população atual de aproximadamente 40 mil pessoas, eles são facilmente distinguíveis: homens vestem jardineiras, camisa e bonés; mulheres portam vestidos escuros e compridos e chapéu de aba larga.
Os menonitas são cristãos protestantes que foram perseguidos principalmente por defender que só os adultos poderiam ser batizados e escolher uma fé. Foram se espalhando da Europa para os cinco continentes atrás da liberdade de culto, costume e língua (o dialeto alemão “plautdietsch”) e da garantia de que seus seguidores não seriam arregimentados para exércitos.
Os que chegaram ao Paraguai, a partir de 1927, tinham saído da Prússia na década de 1760, vivido gerações na Rússia até 1874, quando o czar determinou serviço militar para todos. De lá foram para o Canadá até 1917, quando o país estabeleceu o ensino obrigatório, secular e em inglês. Resultado: os menonitas estão há quase um século no Paraguai sem serem importunados pelo Estado.
Os migrantes teutônicos atuais não fogem das armas, mas das vacinas.
Também buscam se isolar, como no condomínio Paraíso Verde, fundado pelo casal austríaco Sylvia e Erwin Annau, em Caazapá, o departamento mais pobre do Paraguai. A diferença cambial entre o euro e o guarani faz com que as casas pareçam baratas aos forasteiros, mesmo com preços inflacionados pela alta procura estrangeira.
Construído em uma antiga fazenda de gado, o empreendimento tenta atrair europeus anunciando que o Paraguai tem “menos impostos, vacinas, burocracia e muçulmanos” – uma meia-verdade, já que no país há exigência de vacinação e há comunidades islâmicas em Assunção e Ciudad del Este
Alambrado alto e seguranças com armas automáticas visam proteger os 300 colonos de Paraíso Verde — inicialmente, a expectativa era ter 4.000. Lá, Sylvia e Erwin promovem a chamada “nova medicina germânica”, criada por Ryke Geerd Hamer para ser uma alternativa à clínica convencional “dominada pelos judeus”. Sem métodos científicos, a prática foi banida na Europa.
Entre gringos e indígenas
Os paraguaios estranham o interesse dos estrangeiros por seu país. “Alemão é bravo. Pega a terra dele e não quer saber dos outros”, sintetiza Gabriel Karaí, cacique da comunidade indígena Guaviramí, vizinha de Paraíso Verde. Ele conta que nenhum dos migrantes visita a aldeia — em torno de quatro “gringos” por mês aproveitam as excursões pelas ruínas jesuíticas para conhecer como vivem os povos originários.
Na escola de Trinidad, apesar do ensino de alemão (com exame de proficiência feito por um instituto ligado à embaixada em Assunção), poucos filhos dos moradores recentes frequentam as turmas. “Entre os alunos, cerca de 15% são descendentes de alemão, mas das novas famílias só temos três crianças”, conta Libreda Ortega, diretora da Escuela Paraíso, instituição fundada pela comunidade germânica de Bella Vista, em 1925. Lá se ensina também espanhol, guarani e inglês.
Neto de alemães, Vitor Kruger torce para que os novatos de Colônias Unidas se integrem. “Eles seriam mais úteis se misturando. Muitos têm conhecimento que não temos. Até nosso nível do idioma alemão melhoraria”, diz o diretor de cultura da prefeitura de Hohenau. “Uns são sociáveis e já estão colaborando, mas muitos não querem nem falar com a gente.”
Vitor aponta para a área próxima das UNIJCs com sua cerca e sua bandeira. “Sei que aqui é uma cidade pequena, calma e com muita gente de origem europeia, mas, pra mim, segue sendo um mistério: por que eles vêm justo para Hohenau?”
‘Willkommen’
Embora também tenham se estabelecido em outras partes do país, boa parte dos novos imigrantes opta por se estabelecer nas Colônias Unidas.
As Colônias Unidas foram fundadas por colonos de origem alemã quando Wilhem (Guillermo) Closs, um descendente de alemães nascido no Brasil, e um punhado de outras famílias alemãs estabeleceram a primeira delas, Hohenau, em 1900.
Na entrada da cidade de Obligado há uma placa que diz “Fuhl dich wie zu Hause” (Sinta-se em casa). Em Bella Vista, a tradicional mensagem de boas-vindas em espanhol é acompanhada por um “Willkommen” (Bem-vindo).
“Temos um grande número de descendentes de europeus e acho que essa nova onda de imigrantes é porque eles se sentem à vontade aqui, as pessoas os tratam bem, de maneira amigável, e eles podem falar alemão confortavelmente, eles se sentem em casa”, diz Enrique Hahn, prefeito de Hohenau e também descendente de alemães.
Antes das Colônias Unidas, já existiam outras colônias alemãs no Paraguai como San Bernardino e Nueva Germania, fundadas pela irmã do filósofo Friedrich Nietzsche, Elisabeth Nietzsche, e seu marido, Bernhard Förster, na tentativa de criar uma comunidade de raça ariana fora da Alemanha.
Com TAB e BBC
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