Família arquetípica brasileira gerada por IA e publicada em revista internacional gera ataques racistas
Revista internacional de arqueologia e história cultural publicou imagens de supostas famílias arquetípicas de vários países ao redor do mundo geradas através da inteligência artificial (IA). Entre os países publicados estava o Brasil. A imagem tem gerado uma enxurrada de comentários racistas
Inteligência Artificial e a disforia [1] da identidade brasileira
Dusunbil Dergisi é uma revista mensal de arqueologia e história cultural da Anatólia, localizada em Ancara, Turquia. A revista publicou imagens de supostas famílias arquetípicas de vários países ao redor do mundo geradas através da inteligência artificial (IA). E sim, entre os países publicados estava o Brasil.
Obviamente, esses resultados não são muito elaborados. De fato, a arte gerada pela IA, que a revista não revela qual é a fonte, vem chocando as pessoas. E, claro, provocando comentários extremamente racistas pela internet.
Ao contrário de questionarmos as falhas do algoritmo, que é por si só racista, gordofóbico, capacitista e etc – já existem pesquisas profundas sobre algoritmo e opressão; queremos provocar o debate sobre o sistema de processamento que não considera que 1/4 da população brasileira sequer tem acesso à internet. Ou seja, não existem no mundo digital e sabemos bem que esses excluídos são pessoas negras, sobretudo retintas. O que vemos é a reprodução do ódio existente historicamente na sociedade, porque quem cria o algoritmo também é regido pela hegemonia do pensamento que está no inconsciente coletivo, já estabelecido socialmente.
É necessário compreender que a família arquetípica brasileira deveria conter maior presença de marcadores de negritude que o da imagem gerada – pele retinta, cabelos mais crespos, lábios mais grossos e/ou narizes largos -; corpos maiores – afinal, mais da metade da população é gorda – e ao menos uma das pessoas da foto deveria ser uma pessoa com deficiência – 1/4 da população brasileira têm algum tipo de deficiência.
Também é necessário observar que em 90% dos lares brasileiros há algum tipo de acesso à internet. O WhatsApp chega, onde não chega comida – apesar do Brasil ser o segundo maior produtor de alimentos do mundo e em dois anos deve se tornar o primeiro.
O estudo também apresenta outros erros grotescos, como o caso da Índia ao apresentar uma família de elite, num país onde 70% da população está composta pessoas miseráveis, que provavelmente são inexistentes digitalmente.
O ponto mais importante desse artigo (e que dá nome ao título) é sobre a crise de identidade que você brasileiro, latino e sul-americano tem ao se ver no espelho. E, para isso tenho que te apresentar três autores: Frantz Fanon, Lélia González e Jaque Conceição.
Qual a problemática que faz com que nós brasileiros não consigamos nos perceber em uma imagem como esta? Quais são os inconscientes coletivos que fundamentam a disforia de identidade que gera repulsa e reações de tanto ódio e auto ódio como visto nos comentários a seguir extraídos de postagens das redes sociais.
Lélia Gonzales explica que o racismo faz parte da construção do indivíduo brasileiro e nomeia de neurose cultural brasileira a negação da estrutura de violência anti negro/indígena que produz essa relação de repulsa da própria identidade e reforça a subjetividade narcisística da branquitude crítica e que também tem como resultado o Branco de pele escura, conceito cunhado pela Intelectual Jaque Conceição, e que vamos falar um pouco mais adiante.
Muito simbólico que as pessoas estão reagindo à figura com absoluta surpresa (que mesmo fictícia é bem mais próxima à realidade brasileira em relação a tudo que se vê a volta, sendo publicizado). É tipo a cena do Bacurau, onde a branquitude sudestina descobre que não são arianos e que seriam presa fácil dos reais fascistas. Isso se comprova nos trágicos relatos de pessoas brancas brasileiras, na tentativa fracassada de justificar que países como os EUA são mais racistas que o Brasil, pelo simples fato de terem experienciado, pela primeira vez na vida, a perspectiva de serem cidadãos de segunda classe frente à sua experiência nacional onde pessoas socializadas como brancas no Brasil tem um completo reino de privilégios ao seu favor.
São muitos absurdos, os comentários. Eles variam, basicamente, entre as violências de racialidade com o chamado de representatividade de pessoas ruivas e loiras (os piores). Mas, a negação é o traço de maior problemática, porque regurgita ódio e excrementa a superficialidade da ideia de Brasil real e da negligência da história.
O branco de pele escura
Toda construção de racialidade é bidimensional. No momento que se cria o outro para ser objeto da opressão, se demarca a construção do opressor. No momento que estruturamos a pigmentocracia (opressão hierárquica entre pessoas negras), revelamos o auto ódio e a instituição da branquitude de pele escura. O ódio e o auto-ódio que embasam o Bolsonarismo estão pautados na negação de que a branquitude no país também é miscigenada, assim como a negritude. O mesmo país que tem negros de pele clara é o país que tem brancos de pele escura, como explana Jaque Conceição. Dentro dos modelos de brancura, o corpo latino, sociabilizado com branco, é fruto da imigração europeia herdeira direta das populações marginalizados em sua origem. Ou seja, os brancos imigrantes que chegaram no Brasil, em sua grande maioria, eram populações consideradas subclasse em sua origem.
A imagem apresentada pelo estudo como representação do povo brasileiro, não só denuncia a negação da negritude brasileira; mas também a ilusão dos supremacistas que se imaginam espelhos da ideia fictícia do branco ideal nórdico. A surpresa também se baseia na descoberta de serem indivíduos racializados. A irmandade branca, que inclui inimigos políticos como Estados Unidos e Rússia, jamais seria signatária de pacto que incluiria os “brancos” latinos.
Todo este desarranjo, que é a estrutura da racialidade (porque é uma invenção completamente furada!), tem como dejeto um orgulho em ser parte de uma descendência história de crueldade e exploração. Como é o caso dos herdeiros dos europeus brasileiros que se orgulham em ter em sua árvore genealógica ancestrais que escravizavam, torturavam, exterminavam e que eram nazistas; mas não se orgulham em ser herdeiros de quem construiu, constrói, continua construindo e vai construir essa nação por muito tempo.
A nossa ancestralidade originária e africana está em todos nossos costumes, na nossa tradição e, sobretudo, em nossa cultura. É compreensível que exista tamanha distorção, porque os reais brasileiros nunca se viram em lugar nenhum. O espelho é a cara do outro e esse outro é o maior objeto de sua própria violência. “Existe uma crise de representatividade porque a subjetividade é formada a partir da imagem do outro, como diz Frantz Fanon”. Não existe a compatibilidade com a projeção de Brasil profundo com o que se vê na TV, nas redes ou nas empresas. Toda esta lógica é fruto de uma narrativa secular que já é parte do que somos porque assim fomos concebidos nesta estrutura de sociedade.
A emancipação
Para entendermos quem somos precisamos desaprender tudo que a colonialidade nos trouxe e então, sim, nos elaborarmos a partir de uma nova perspectiva, sem utilizar os espelhos do colonizador que foram tragos nas mesmas viagens de nosso sequestro. A própria ideia de família nuclear representada na foto, apresentada no estudo, é uma reprodução da ideia de sociedade que não faz parte da nossa ancestralidade, onde nos entendíamos como comunidade, tribo, povo ou qualquer uma das diferentes ideias que simbolizam um corpo coletivo tão presente nas mais diversas etnias originárias e africanas. A ideia de família, propriedade e tradição só contempla o colonizador. Pessoas negras e lgbts+ são desprovidas desta ideia restrita de família e excluídas das tradições hegemônicas, ao passo que estão às margens da ideia de propriedade.
Em um país como Brasil, ou você tem sangue negro/originário nas veias ou nas mãos.
[1] Disforia: termo chave usado por intelectuais transgêneros. Neste texto foi utilizado de forma metafórica para representar a não identificação do brasileiro com a sua própria imagem e semelhança.
*Antonio Isuperio é arquiteto brasileiro, negro, lgbt+ que mora em NY. É filho de empregada doméstica e graduado em Arquitetura pela Universidade Estadual de Goiás, com MBA em varejo pela FGV-SP. Passou por empresas como Carlos Miele/ M.Officer e Marisa S.A. É especialista em Design de Varejo e pesquisa e tendências de futuro.
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