Praia e o Brasil
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Adoro praia. Mesmo no inverno, quando as aqui do Rio Grande do Sul tomam um tom acinzentado. Essa tristeza melancólica me agrada. Mas, claro, as gosto especialmente no verão. Não sou dado ao calor. Acima do peso e com início da dieta marcado inadiavelmente para a próxima segunda-feira, suo muito. Às vezes, no meu cúper, asso a virilha e tenho que passar maisena. Mas, se estou na praia, quero calor de 40 graus, inticando com a probabilidade dum câncer de pele.
E a praia é como diz meu amigo Ivan: democrática. Mais de uma vez, quando fomos juntos à orla, ele, entre um gole de cerveja e outro e embebido também pela moda verão feminina, que ele apreciava escudado pelos óculos escuros, dizia: “eu gosto do mar. A praia é democrática. Qualquer um pode vir. Negro ou branco, rico ou pobre.” E tomava mais um gole do latão retirado do cooler.
Tem razão meu amigo. Apesar de a caipirinha custar o mesmo que num meretrício, os pobres podem ir e fazer como meu amigo e eu, levar sua própria bebida. Ultima vez que comprei na praia uma cerveja à temperatura não muito boa, dado o preço, quase exigi uma dançarina seminua na minha frente (e ela com vestes ainda menores do que a da moda verão que desfilava ali atrás).
Por isso, compro somente uma caipirinha no capricho no quiosque e depois tomo as minhas latas levadas de casa.
Mas a praia é também lugar de diversidade ideológica, política, cultural, de gostos, enfim, de tudo.
Nesses dias que frequentei o mar, não vi brigas de “petralhas” x golpistas ou bolsonaristas inconformados acampados na orla pedindo intervenção da Marinha ou de ETs veranistas. Vivia-se, na República Praieira, realmente uma democracia, com respeito às liberdades e pensamentos individuais. Mais do que isso, se convivia, se relacionava.
Não sei se aquela família tinha votado 22 ou “feito o éle”, mas eles gentilmente cuidaram dos meus tênis enquanto eu fui me refrescar depois da corrida.
Em outro momento, ouvi aplausos. Pensei: finalmente o reconhecimento. Anos escrevendo aqui no Pragmatismo Político e nunca me pediram autógrafo. Mas eis que dias de glória. Em plenas férias, num dia ensolarado, a praia para para me homenagear. Fila para os cumprimentos. Mulheres e crianças primeiro… mas não. Não sabia desta prática: quando uma criança se perde na praia cheia, o pessoal começa a bater palmas até que o responsável a encontre. Neste caso, a mãe, aos aplausos, se deu conta de que o filho tinha ido pra longe. É que ela estava entretida no celular. Decerto atualizando o status, postando que a vida é boa. Férias com o filho, que é tudo pra ela. E a música Pé na Areia animando o Instagram.
Outra vez ocorreu conosco. Cheguei com a pequena. Eu carregando carrinho com guarda-sóis, cadeiras, bolsa, brinquedos, prancha e, claro, o cooler. Enquanto eu retirava os apetrechos, já montando acampamento, ouço um apito. A salva-vidas chamava a atenção da minha filha, fazendo sinal para que recuasse. Ela estava na beirada, mas a autoridade achou por bem lhe advertir. Quando a aprendiz de sereia voltou pra perto de mim, a salva-vidas venho até nós explicar por que havia lhe chamado. Nos deu uma pequena aula de oceanologia. Falou sobre o movimento dos ventos e das correntes e que por tal e tais motivos era perigoso o banho ali e etc.
A moça não queria saber minha orientação sexual, minhas crenças, meu salário ou minha ideologia política. Fez o seu trabalho (talvez até um pouco mais) com senso de responsabilidade social, não interessando a quem.
Aliás, sobre isso, vi muito marmanjo metido a marujo tomando, literalmente, apito dos salva-vidas. O pessoal toma umas duas ou quinze cervejas (trazidas de casa ou compradas ali no quiosque a preço de bordel) e fica valente. Decerto também querendo se exibir pras passantes na passarela da moda verão feminina, ultrapassam a linha da prudência e se jogam mar adentro. Pra já que os da-guarita sopram o apito e fazem sinal de volta, volta. As meninas supracitadas finalmente lhe dão atenção. E um sorrisinho de deboche ao canto da boca. O bonitão volta constrangido.
E, assim como a simpática moça orientou-nos, os outros cuidam a vida dos adultos sem interessar qualquer característica outra dos sujeitos, a não ser uma inadvertida imprudência. Resguardam a vida do outro, que isso é que se espera dum mínimo de civilização e humanidade. Não vociferavam que petistas, comunistas, bolsominions ou o que quer que seja devem morrer. Não. Apitavam em advertência e, se preciso fosse, arriscavam as suas próprias vidas na expectativa de salvar um semelhante.
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Os insistentes pescadores de de manhã cedo também oferecem o seu bom dia aos colegas de pesca frustradas ou aos caminhantes da alvorada. Os peixes não escolhem partido. Não mordem a isca de ninguém. Os pescadores também por um momento deixam de lado paixões políticas e preconceitos. Cumprimentam com calor praiano todos os que passam olhando curiosos seus baldes vazios.
A praia, como disse, é pra todos. Da extrema-direita à extrema-esquerda, passando pelo extremo-centro. É para quem fez o éle e para os acampantes de defronte aos quarteis. É até para golpistas de 8 de Janeiro que, surpresa, lá se comportam, preservando a natureza e as pessoas. São pros liberais na economia e pros liberais nos costumes. São para os que levam suas bebidas e comidas e para quem tem condições de pagar os preços meretriciais dos quiosques, pois, muitas vezes, fazem a festa da firma nos meretrícios mesmo, embora se digam defensores da família tradicional.
Uma pena que a praia seja somente essa feliz exceção da sociedade e não o seu reflexo fiel.
Espero que este novo governo cumpra o prometido e aumente o poder de compra do trabalhador, pois espero ansioso o próximo verão com sua moda verão feminina, o divertimento da minha filha, a caipirinha e essa sensação de civilidade.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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