Leandro Dias
Colunista
Política 02/Set/2013 às 11:42 COMENTÁRIOS
Política

Democracia e mercado eleitoral

Leandro Dias Leandro Dias
Publicado em 02 Set, 2013 às 11h42

Os mensalões não são uma disfunção corrupta da democracia liberal praticada por imorais aproveitadores, mensalões SÃO a democracia liberal

“A Democracia Liberal é um jogo de cartas marcadas no qual o parlamento vem apenas corroborar decisões tomadas fora da alçada parlamentar.” Esta afirmação categórica pode parecer exagerada, mas não se refere a nenhuma novidade. Críticos da democracia moderna desde o século XIX já desconstruíam o modus operandi do poder constituído nas democracias ocidentais. Um dos primeiros a panfletar sobre este tema foi ninguém menos que o “sapo-barbudo” original, Karl Marx: “O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (capítulo I do Manifesto Comunista).

Em 1848, quando Marx escreveu tal afirmação bombástica no seu panfleto, as coisas não eram tão claras e transparentes quanto hoje. As relações entre as corporações e os candidatos a cargos eletivos são, ano a ano, cada vez mais explícitas e, em alguns casos, como nos EUA, o lobbismo virou profissão e é protegido – teoricamente – por leis de transparência muito confusas. Não é preciso ser um astuto analista político para notar a relação promíscua entre mercado e Estado e, claro, consequentemente, entre os indivíduos eleitos periodicamente para “gerir” o Estado e as corporações privadas que os financiam. A relação de mútuo interesse é nítida.

Aliás, no oposto polo ideológico, o próprio teórico liberal Ludwig von Mises admite esta relação. A famosa frase de Mises – “[o] mercado é uma democracia em que cada centavo equivale a um voto” (Planned Chaos, p. 25) – revela como as noções de mercado privado e democracia estão intimamente relacionadas até mesmo para esta escola de pensamento. Como fica cada vez mais claro na intensa influência do marketing e da propaganda na mercantilização eleitoral, os candidatos são os produtos a serem escolhidos pelos consumidores (votantes), e disso deriva que a ação política e governança ideais são atingidas assim como num “preço de equilíbrio” entre oferta e demanda dos consumidores, exatamente como um mercado de consumo “normal” (ver L. Mises, Bureocracy).

Para a escola liberal, assim como o livre mercado concorrencial espontaneamente produz uma alocação ótima de recursos e, com isso, chega a um equilíbrio benéfico ao consumidor e à empresa, a democracia liberal também faria o mesmo com o seu sistema de “mercado de votos”. Nessa linha, Friedman, no seu Capitalismo e Liberdade (p. 21), argumenta que:

A liberdade política significa a ausência da coerção do homem pelo homem. A principal ameaça à liberdade é o poder de coerção, seja nas mãos de um monarca, um ditador, um oligarca ou uma maioria momentânea. A preservação da liberdade requer a eliminação de tal concentração à máxima extensão possível e a dispersão e distribuição de qualquer poder não pode ser eliminado – um sistema de freios e contrapesos. Ao remover a organização da atividade econômica do controle da autoridade política, o mercado elimina a origem do poder coercitivo. Ele permite que a força econômica seja um contrapeso ao poder político, ao invés de reforçá-lo.

Assim, é difícil não concordar com os liberais radicais, a democracia liberal É DE FATO uma relação de mercado. Porém, o que essa escola considera a principal vantagem deste modo de governo pode ser facilmente interpretada como sua maior e mais perigosa faceta, na qual reside de fato o berço de poderosas tiranias.

Por que?

Analisando mesmo que superficialmente o funcionamento da economia de mercado capitalista, observa-se enorme concentração financeira e econômica, com expressivas fatias do mercado dominadas por um pequeno número de empresas extremamente poderosas e ricas. Como o economista estadunidense Paul Sweezy já colocou em seu Teoria do Desenvolvimento Capitalista, há muito tempo que o capitalismo deixou de ser um sistema concorrencial e pulverizado e passou a ser monopolista ou oligopolista. É difícil negar que a consequência última da livre concorrência é a concentração de poder e riqueza. “Só os mais fortes sobrevivem”. Isso apenas não ocorreu explicitamente justamente onde o Estado precisou intervir para manter a concorrência, evitando mega-fusões e criminalizando – ao menos em teoria – a cartelização e combinação de preços entre oligarquias constituídas. Sobre isso, recomenda-se a leitura de A Ditadura dos Cartéis, de Kurt Mirow, para ver como a situação piorou muito desde sua publicação em 1978.

Milton Friedman
Milton Friedman

Portanto, mesmo que seja amplamente sabido que o capitalismo liberal é concentrador e tende à concentração, especialmente em áreas de capitalismo tardio e Estado fraco, como quase a totalidade do Terceiro Mundo (Brasil incluso), onde o capitalismo já nasceu concentrado e “pulou” a fase concorrencial, mas também nas regiões de capitalismo forte e pioneiro, como Inglaterra e nos EUA principalmente, é difícil não concordar com belas palavras de Friedman: “[a] liberdade política significa a ausência da coerção do homem pelo homem”.

Porém, a chave para se compreender o seu principal erro – e o de boa parte da utopia liberal desta vertente – é não observar o mais óbvio e ululante fato: o poder econômico é a principal fonte de coerção e a principal fonte de poder político nas sociedades capitalistas. Parece que Friedman acredita na máxima de Mao Tse Tung: “o poder político emana da ponta do fuzil”. Logo, Friedman parece ter se esquecido de que “não existe fuzil grátis”.

Dinheiro compra tudo.

É irônico que um ultra-capitalista como ele não atente para isso e não enxergue o tamanho poder das corporações no capitalismo sem freio que ele tanto defende: é o maior sistema de criação de oligarcas, monopolistas e corruptores do poder estabelecido em favor de interesses privados. O mais grave, alienado e incoerente componente desta argumentação friedmaniana aparece onde reside “o berço da mais forte tirania” embebida no discurso liberal:

[a]o remover a organização da atividade econômica do controle da autoridade política, o mercado elimina a origem do poder coercitivo. Ele permite que a força econômica seja um contrapeso ao poder político, ao invés de reforçá-lo. (Capitalismo e Liberdade, p. 21)

Oras, na democracia liberal, bem ou mal, o poder político tem origem na vontade da população, sua governança é escolhida pela maioria, em voto secreto e – supostamente – soberano. Não é dos principais motos democráticos “1 homem = 1 voto”? Não foi esta a linha de pensamento, dos iluministas, que deu a base para os “Pais Fundadores” norte-americanos e para a Revolução Francesa?

No entanto, por mais que a ideologia liberal faça acreditar, o poder econômico não é eleito pela população, o poder econômico se constitui em trajetórias sociais e históricas longas, na maioria das vezes, carregadas de sangue e opressão. Escravidão, superexploração, conquistas, pilhagens, colonialismo predatório, ditaduras sanguinárias, fraudes, subornos, favorecimentos políticos e, claro, guerras, são alguns dos métodos recorrentes nas trajetórias de formação do poder econômico “livre” mundo afora. A história nos mostra que é a regra, e não a exceção, a cooperação entre as corporações e figuras-chave do Estado no sentido de eliminar competidores (nacionais ou estrangeiros) e garantir àquelas primeiras poder de mercado e vantagens competitivas. Cia das Índias Orientais; portos exclusivos aos navios (privados) ingleses; as maquiladoras mexicanas; empresas como Monsanto e United Fruit dominando as repúblicas da América Central; os diamantes de sangue; as guerras ao petróleo; a pilhagem financeira recente da Islândia, o bailout financeiro nos EUA em 2008… por Deus, esqueceram da Rodésia, colônia inglesa administrada e nomeada a partir de Cecil Rhodes, o magnata inglês dono da empresa privada que administrava o local?!

Os exemplos são tantos que daria para formar uma biblioteca só de estudos de caso. Aliás, poderíamos ter perguntado a Friedman: não foi o largo patrocínio econômico do poder privado (nacional e internacional) que instaurou uma das mais brutais ditaduras no Chile em 1973? Ele sabe como ninguém.

Não há absolutamente nada de democrático na formação do poder econômico. Friedman parece extremamente ingênuo ao afirmar que há, e sua ingenuidade se traduz em cinismo absoluto na afirmação de que “a força econômica é um contrapeso ao poder político”.

Não seria o contrário, Sr. Friedman?

Não seria o poder econômico a base fundamental do poder político nas democracias capitalistas?
Com esta inversão, os liberais deixam escapar o “pano de fundo” no qual reside a fonte da tirania corporativa instalada no capitalismo moderno e escancaram o véu do seu cinismo: a força econômica, desprovida de controle coletivo (Estado em suas diversas formas), acaba por controlar o próprio Poder Político e influenciar de maneira esmagadora a população, tomando de assalto as decisões coletivas e tornando-as decisões corporativas, que visam favorecer primariamente o interesse dos núcleos privados que dominam o Estado. É a velha “privatização do lucro e socialização do prejuízo”. Assim, voltamos à frase inicial: o Estado, no capitalismo moderno concentrado, é mais do que nunca o “comitê de negócios” das grandes corporações.

Porém, voltemos ao pleito democrático e ao mercado de votos.

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Se a democracia liberal é de fato um mercado de votos, temos que aplicar ao “mercado eleitoral” análises similares às que aplicamos aos mercados “competitivos”. Neste processo vamos aprofundar questões colocadas acima.

Você já se perguntou por que empresas privadas gastam milhões em campanhas eleitorais? Seria por ideologia ou por interesse? Seria para apoiar os valores que determinado candidato defende ou seria por um utilitarismo pragmático, em troca de favores, que empresários investem colossais somas em dinheiro para eleger representantes?

As campanhas políticas são empreendimentos cada vez mais complexos e custosos e, com algumas exceções, a maioria dos partidos não consegue fazer uma campanha apenas com seus voluntários, especialmente os partidos oligárquicos, nos quais a presença das “massas cheirosas” é até rejeitada. Em nossas eleições, é comum os partidos contratar figurantes para encher “passeatas” e “manifestações de apoio”, contratar celebridades e músicos famosos para prestigiar seus candidatos em showmícios patrocinados, invertendo a própria lógica dos “shows beneficentes de campanha” (comuns nos EUA, por exemplo, onde há forte e espontâneo engajamento político de celebridades). O uso das celebridades nas campanhas eleitorais, via showmícios patrocinados e campanhas de comunicação de massa, não aproxima mais ainda as campanhas eleitorais das campanhas de marketing dos bens de consumo? Como numa campanha de sabonetes ou de serviços bancários, o “famoso” empresta sua credibilidade e imagem para promover determinado canditado-produto.

Nesse sentido, podemos pensar em argumentações do tipo “a empresa A tem interesse no desenvolvimento do mercado X ou negócio Y e avalia que o candidato Fulano é quem dará a melhor contribuição para este desenvolvimento”. Certamente há empresas que pensam assim. Porém, quando observamos que uma mesma empresa contribui para campanhas de candidatos diferentes e de partidos supostamente diferentes, e, mais ainda, quando observamos que os “candidatos vitoriosos” são exatamente os que receberam as maiores doações de campanha (para não dizer patrocínio), percebe-se que, como numa relação de mercado, os candidatos vitoriosos são efetivamente produtos de sucesso, resultado de campanhas de marketing e, portanto, do investimento massivo de corporações muito interessadas. “Quem quer rir, tem que fazer rir”.

Porém, se campanhas custam tanto e a lógica do capitalismo é sempre pró-lucro, por que empresas colocariam maciças quantias em determinados candidatos?

Qual seria a única lógica possível para esse tipo de investimento? Qual o retorno real que uma empresa tem ao colocar dinheiro em uma campanha que – legalmente -, em salários e benefícios do mandatário, não arrecadaria uma fração do que foi despendido, sendo impossível pagar o retorno do “investimento”?
Não sejamos ingênuos.

Não precisamos ler os teóricos de esquerda para responder a essa obviedade do “mercado eleitoral”, uma vez que o próprio liberalismo adora o utilitarismo como método que o consumidor utiliza para sua escolha “livre”. Acreditam que uma escolha útil para o consumidor deverá se traduzir numa decisão útil para todos. E não é apenas na relação voto-candidato que se deve pensar isso, mas mais importante ainda na relação “financiador-candidato”, pois é aí que as coisas ficam explícitas e, neste nível, falar em ideologia é pura demagogia.

Se aprendemos alguma coisa com os teóricos liberais é que numa economia de mercado há sempre relações de troca. Dizer que “uma mão lava a outra” não parece algo tão metafórico assim.

E a promiscuidade nas relações entre as grandes corporações e os governos “democráticos” fica novamente evidenciada no fato de que, em setores estratégicos da governança pública, esses atores ficam intercambiando seus altos funcionários. CEOs de bancos privados se tornam membros importantes dos ministérios da fazenda, do tesouro e dos bancos centrais, donos de empresas de ônibus colocam parentes e aliados em secretarias de transportes, generais militares se “aposentam” e passam a ocupar altos cargos em empresas armamentistas. É o utilitarismo máximo na formação da “direção do Sistema”.

Essa lógica mercantil e utilitarista faz a democracia liberal emular o capitalismo liberal: concentração de poder político, oligopólio e troca de favores.

Nas democracias liberais ocidentais observamos situações de monopólio, duopólio e fragmentação política (respectivamente, um, dois ou inúmeros partidos disputando o poder). A princípio, pode-se supor que nas situações de duopólio e fragmentação, os partidos postulantes são diferentes, possuem características distintivas relevantes, de maneira que ao escolher entre um e outro, o eleitor está efetivamente fazendo escolhas entre soluções distintas. Porém, não é isso que parece ocorrer. Se analisarmos detidamente os programas de partidos como PT e PSDB, que supostamente estão em lados diferentes do espectro ideológico da política, percebemos que as diferenças entre eles não são de fato significativas, mas superficiais. Não são essencialmente as mesmas corporações que patrocinam ambas suas campanhas? Não foram os mesmos bancos que lucraram substancialmente com suas políticas econômicas? Entre Democratas e Republicanos, nos EUA, idem: o que vemos são diferenças cosméticas e pontuais, em questões menos relevantes para um projeto de mudança estrutural da sociedade. New Labour e Conservadores na Inglaterra, idem. “Socialistas” como Hollande na França não são essencialmente diferentes de neoliberais como Sarkozy. Na Espanha, as reformas neoliberais da “oposição” foram empreendidas pelos “socialistas”.

Porém, o que isso significa? Há quem jure que as ideologias acabaram (tipo Francis Fukuyama), perderam o sentido ou o poder explicativo do mundo. Quem o diz corre o risco de se descobrir ou cínico ou ingênuo. A ideologia do capital está cada vez mais viva, forte e enraizada na cultura política da democracia. O que os “partidos de sucesso” têm em comum, e por isso muitas pessoas têm a “instintiva” percepção de que “são todos iguais”, é que todos eles estão a legitimar o capital, “têm um preço” e não por acaso as corporações estão interessadas em todos eles.

Isso tudo lembra Holanda Cavalcanti no tempo do Império: “Nada mais Saquarema que um Luzia no poder”.
Assim como o mercado de bens e serviços, o mercado eleitoral tende à concentração monopolista e oligopolista do poder político.

No fundo se revela a ingenuidade ou, para alguns, o cinismo e o “pulo do gato” dos liberais – ignorar o fato mais relevante de todos: “quem tem poder econômico QUER ter o poder político”. E, além, só quem tem o poder econômico consegue efetivamente obter e manter o poder político. Quem perde o suporte econômico não logra se manter no poder por muito tempo. Não foi por esta razão que os liberais derrubaram o Poder Divino dos Reis no Antigo Regime?! Por que de repente esta máxima teria sido invertida?!

A vulgarização, o escancaramento e a massificação do lobby, da troca de favores entre agentes políticos e poderosos agentes econômicos privados, determinando políticas nacionais inteiras e às vezes internacionais (as guerras por petróleo são um exemplo), não demonstram a completa mercantilização da política? Não clamam os neoliberais que vivemos “o fim das ideologias”? Não é o dinheiro que manda? Por que na eleição democrática seria diferente?

Assim, por que então deveríamos ficar surpresos com os mensalões, enquanto trocas de favores econômicos por apoio político?

Desde a Cia. Das Índias Orientas, das empresas privadas sendo beneficiadas pelo Estado colonial; sejam os EUA firmando acordos de reconstrução e fatiamento do mercado iraquiano antes mesmo da guerra começar, ou apoiando golpe de estado na América Central em favor de suas corporações; sejam governos ditatoriais escolhendo “seus amigos privados” para projetos públicos nacionais; sejam partidos como PSDB com seu Trensalão ou compra de votos na reeleição de FHC, ou o PT no seu mensalão comprando votos para arranjar votações no Senado; ou o processo de privatização dos anos 90, abrindo rombos escorchantes em favor de núcleos privados nacionais e internacionais em detrimento da população… Diante de tudo isso, a troca de interesses entre corporações e governos constituídos não seria o próprio padrão de funcionamento da democracia liberal?

Se nossa sociedade de capitalismo desenfreado é regida pela lei do mercado, no qual toda troca pressupõe um retorno utilitário, toda escolha implica em uma relação de consumo, o que esperar da democracia fundada sobre esta lógica?

Os mensalões não são uma disfunção corrupta da democracia liberal praticada por imorais aproveitadores, mensalões SÃO a democracia liberal.

*Leandro Dias é formado em História pela UFF. Escreve quinzenalmente para Pragmatismo Político

(texto editado e revisado por Carolina Dias)

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