CLAUDIO SETO, O MESTRE ONMYOJI
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Se o significado de moderno é indivíduo, me parece natural que o individualismo, o egoísmo e a soberba caminhem num aprofundamento desses valores que separam cada vez mais intensamente o sujeito, isolando num pedestal variável cada um dos que desejam manifestar sua soberania.
Aprecio encontrar aqueles que resistem às facilidades exibicionistas que validam a premissa moderna.
Embora o esquecimento seja democrático nessa jornada, ou seja, não importa o que o cabra faça pra permanecer no topo, seja qual topo for, sempre será efêmera sua exposição.
Mas nunca é demais resgatar as almas que defecam nas auras e que se afastam do sentido seboso de aparecer.
Claudio Seto (1944-2008) foi um desses seres.
Num tempo em que o termo mangá de samurai se tornou sinônimo de apreciação de muitos, seus usuários deveriam conhecer esse precursor que primeiramente, não só no Brasil, mas no mundo ocidental e mesmo no Japão estava apontando os caminhos.
Seto foi um polímata, talvez um dos últimos. Reconheço um significado para esse termo quando ele se instala num ser: ele pode fazer tudo o que quiser, pois consegue perceber dimensões que aqueles que estão submetidos ao império cognitivo jamais poderiam com sua visão de mundo unívoca e focada. O polímata fragmenta a percepção como o prisma fragmenta a luz.
Viveu entre muitos mundos. No mundo budista em que nascera era Chuji.
O nome Cláudio Seto foi adotado por Chuji a fim de receber um diploma no curso primário. Na época, na escola rural de Jundiaí, no bairro do Engordadouro, não entregavam diploma para pagãos. Chuji, e mais meia dúzia de nisseis que estudavam lá, foram devidamente catequizados como faziam com índios na época colonial.
Nessa primeira fratura, Seto fez desdobrar um “doppelgänger, do alemão Doppel que significa dublê ou gänger, que por sua vez significa andarilho. Este termo foi cunhado pelo escritor alemão Jean Paul em sua novela Siebenkäs (1796). Não queria receber o crédito todo pela suas criações.
Quando de sua catequização, Seto entrou em contato com o melhor da cultura indígena. E sua incorporação assimilou a filosofia da rede. Um velho xamã que vivia perambulando pelo interior do estado contou que a rede é o melhor equipamento pra se ter boas ideias sem a necessidade de realizá-las. O duplo favoreceria o cumprimento dessa filosofia nativa.
Mas a rede era muito mais do que licença para a preguiça. Como se pode ver com a participação dele na fundação da editora grafipar.
Sua percepção fragmentária foi de fundamental importância na ousada experiência da editora de Curitiba.
Começou trabalhando na Edrel e logo foi convidado a formar o núcleo da primeira editora de quadrinhos fora do eixo Rio São Paulo. A Edrel havia sido um núcleo de formação de criadores de quadrinhos dentre os quais o próprio Seto, Paulo Fukue e Fernando Ikoma, criador em 1969 do herói do universo dos sonhos Fikon, talvez o mais inusitado e lisérgico herói dos quadrinhos brasileiros.
Quando assumiu o núcleo de quadrinhos da Grafipar, a complexa mente de Seto gerou uma das mais interessantes experiências criativas da produção de conteúdos quadrinhisticos jamais igualada. Em 1977 e o regime militar já antevia o seu fim, embora as questões de costumes que sempre alertaram seus censores ainda estivessem muito ativas.
Seto lembrou-se dos profissionais que haviam sido gestados na Edrel e de muitos outros que zanzavam despertos pelo país e no convite que foi fazendo a cada um havia um detalhe inovador: que eles fossem a Curitiba gravitando em torno à editora. E pela primeira vez uma reunião física dos maiores quadrinhistas brasileiros podiam vivenciar da mesma complexidade afetiva imaginada pela mente de Claudio Seto. O resultado impressiona até hoje dado a produção desse período, não só pelos artistas, mas pela qualidade inigualável da produção da Grafipar.
A vila dos artistas, como ficaria informalmente conhecida, abrigava os melhores de então, por dois fatores fundamentais. O primeiro é o pagamento. Um artista da grafipar ganhava quatro vezes mais que um jornalista. O segundo, a liberdade criativa absoluta que reinava nos encontros.
Moravam por lá o Fernando Bonini, Franco de Rosa, Gustavo Machado, Itamar Gonçalves, Watson Portela, Flávio Colin, dentre outros. Além de roteiristas do calibre de Carlos Chagas, Nelson Padrella, Ataíde Brás, Júlio Emílio Brás e até mesmo Paulo Leminski e sua esposa Alice Ruiz.
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Embora o Brasil estivesse sob a censura da ditadura militar, o dono da Grafipar, Faruk El-Kalib contava com a amizade pessoal com um censor para conseguir lançar suas publicações sem maiores problemas. Chegou a ter a primeira publicação brasileira voltada para o público homossexual, a revista Rose, dirigida por Alice Ruiz, que foi feita inicialmente para as mulheres interessadas em nu masculino, mas acabou sendo mais consumida pelo público gay.
Com o fim da Grafipar em 1983 também chegou ao fim uma era de quadrinhos de terror e de erotismo, substituído por revistas que publicavam fotografias sem os incômodos da censura.
Em 1969, cria O Samurai, apresentando traços originais que seriam imitados por Coseki Kojima dois anos depois em Lobo Solitário e filhote no Japão.
No mesmo período, faz a história Idealismo Frustrado, inspirado nas ações de Lamarca, inclusive a decepção que tais ações foram provocando em Seto. Tecia na mesmo obra uma crítica à ditadura e à guerrilha. Nunca caiu na via fácil da ideologia, afinal era um polímata e uma das características é sua visão crítica da realidade.
Em Samurai 4, de 1968, a ousadia de Seto superava tudo e ele publica O Afeminado, uma história de um samurai de traços delicados que é estuprado e elabora um plano de vingança que só a criatividade exorbitante de Claudio poderia imaginar. O verdadeiro gênio não têm limites em abrir as fronteiras.
Sua dedicação ao bonsaísmo traduzia sua discrição e sensibilidade.
Tratou de tantos temas com sofisticação que ainda falta uma obra que teça análises sobre sua jornada à altura.
Pouco antes de falecer em 2008, recebeu esta homenagem da equipe Tadaima Curitiba:
[…] “Todos nós aprendemos um pouco com o artista plástico, o mestre Onmyoji da seita Zenchi, o fotógrafo, o animador cultural, o jornalista, o poeta… Com esse homem único chamado Claudio Seto. Agradecemos do fundo do coração tudo o que tem feito pela Cultura Japonesa e para cada um de nós!”
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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