Eduardo Bonzatto
Colunista
Literatura 09/Abr/2023 às 19:43 COMENTÁRIOS
Literatura

Falso moralismo, passado, alegria

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 09 Abr, 2023 às 19h43

Felizmente, no passado e no presente ainda existem redutos em que podemos ostentar uma salutar amoralidade, uma irreverência libertadora e uma dignidade contra a militância covarde e ignorante que grassa por esses tempos enganosos

Falso moralismo passado alegria

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Puta tempo chato esse nosso. Os vigilantes do peso, das palavras, dos odores, da política, da identidade, sempre atentos ao menor sinal de peido, dos desvios linguísticos ou semânticos, aos deslizes phóbicos, às nomenclaturas normativas empoderadas. Todos atentos para impor aos velhos cacoetes uma varada de bambu indiano corretivo.

Vou à minha biblioteca para me sanear dessas bobagens. Enfio a mão entre os empoeirados e tiro a sorte:

Na Europa do século XIX, os almanaques invadiram todas as casas de família. Fazendo uso das rubricas habituais – calendários, adágios, adivinhas, canções, enigmas, pequenos contos, textos pseudocientíficos, alguns dos quais alusivos às viagens em África ou aos progressos no campo das ciências naturais – “O Pauzinho do Matrimônio, Almanaque Perpétuo” propõe uma temática inteiramente distinta…

O “Pauzinho” foi publicado em data desconhecida, talvez 1879, e é hoje obra raríssima entre os colecionadores, contendo hilariantes desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro, o maior caricaturista português de sempre, ainda hoje considerado um visionário.

Na advertência leio: ” (…) Por descargo de consciência, diremos, todavia, que o fim do PAUZINHO não é perverter, mas divertir. Composto para ser lido por homens, não vimos inconveniente em chamar as coisas pelo seu próprio nome, porque, afinal, digam o que quiserem, a porra há-de ser sempre porra, muito embora lhe inventem nomes mais ou menos sonoros. E se ele for parar às mãos de alguma menina que, por excesso de ingenuidade, se apegue a ele como as velhas ao seu Santo António? Não será culpa nossa. Nós escondemo-lo bem, elas que façam outro tanto: guardem-no onde puderem e… regalem-se com ele!”.

Para quem vive o tempo atual, coisas como essas deveriam ser queimadas ao bom e velho estilo nazista em relação aos livros que condenavam.

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Onde já se viu homem querendo parecer homem e anunciando que a mulher ocupa outro lugar diferente do dele, inadmissível. Mas no sexo, bem, elas que façam como eles, guardem para seu bel prazer.

As ofensivas mensagens do passado estão na pauta também. Manifestações de racismo explícito nos livros de Monteiro Lobato, manifestações de empoderamento ao tempo do nazismo, posições homofóbicas escancaradas por Che Guevara, as pautas politicamente corretas de hoje se transformaram em estruturas inquisitoriais do passado e do presente, talvez na esperança de controlar os corações e mentes, tarefa difícil e inglória, devo dizer.

Enfio a mão no meio da poeira do tempo e puxo outro Raphael Bordalo Pinheiro, igualmente impróprio para as mentes menores de hoje. Parece que a menoridade intelectual se transformou no padrão atual. Uma indignidade sem tamanho em favor da ignorância sob o manto da moralidade identitária.

Falso moralismo passado alegria

Hoje a historiografia reconhece a importância histórica, política e cultural de D. Pedro II. Não sem razão, Fernando Henrique Cardoso quando assumiu a presidência reconheceu que se inspirava no último imperador do Império e a forma imperial aparentemente culta e sofisticada se tornou uma ambição para os políticos depois de Fernando Henrique, muito embora o que lhe seguiu os passos, sem os adornos intelectuais, foi buscar títulos honoris causa pelo mundo afora. O que importava era o manto reluzente do trono, ainda que populista.

Quando D. Pedro II fez uma grande viagem pela Europa, Raphael Bordalo Pinheiro não se fez de rogado com o poder do mecenas que ostentava um reino nas terras de Vera Cruz.

Apontamentos de Raphael Bordalo Pinheiro sobre a picaresca viagem do Imperador de Raslib pela Europa da autoria de Raphael Bordalo Pinheiro foi publicado em Lisboa, no ano de 1872, com um total de 14 páginas. Pertence à rede de Bibliotecas Municipais de Lisboa e é considerado uma “raridade bibliográfica”.

Tanto a elegância em zoar com o imperador do Brasil quando a aceitação elegante do mesmo mostra que em outros tempos a comédia não se confundia com a tragédia nem com a ofensa.

Não é de hoje que aqueles que ostentam algum poder político, intelectual, financeiro, dentre outros, sentem cada ofensa como um acinte que precisa ser revidado.

Vivemos um tempo regido pelo pseudo moralismo numa vergência dessa força ancorada nos discursos e nas legislações informais dos empoderados. A vergência engloba um redivivo moralismo vitoriano, uma caça persecutória típica dos nazistas contra toda diferença em nome de uma visão de mundo igualmente pseudo moralista e, no centro da vergência, o pseudo moralismo do pensamento da esquerda superficial tão vivo nas universidades.

É importante compreender como esse alinhamento fascista atingiu tamanha importância.

Em recente reportagem exibida pelo jornal Folha de São Paulo (02 de Abril de 2023), o ex-presidente do Equador, Rafael Correa “critica a nova ênfase da esquerda latino-americana em temas identitários e morais por considerar que geram divisões e desviam o foco do que é fundamental, a discussão sobre pobreza e desigualdade”.

“Nem sequer resolvemos os problemas do século 18, as grandes contradições, a pobreza generalizada, a desigualdade, a exploração. E nos metemos a tentar resolver e ser vanguarda do mundo de problemas de última geração. Alguns estão na fronteira da questão moral, são polêmicos”.

Alguns dias antes, 21 de março de 2023, no mesmo veículo de jornalismo,

O colégio Dante Alighieri, um dos mais tradicionais da capital paulista, enviou comunicado a pais e responsáveis por alunos nesta segunda-feira (20) em que diz lamentar o fato de uma professora ter exibido em sala de aula um vídeo que faz uso da chamada linguagem neutra. A instituição foi pressionada pelos familiares dos estudantes após o ocorrido.

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O texto afirma que uma professora de História exibiu para os alunos de uma das turmas do 6º ano um vídeo do canal do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva da Universidade de São Paulo.

“Lamentamos o ocorrido, uma vez que o canal em questão apresenta um tratamento editorial de linguagem que não tem correspondência com o padrão de uso de linguagem adotado institucionalmente pelo colégio”, diz a retratação.

Nos dois casos, a força do empoderamento é questionada e facilmente exposta com as limitações que lhe é inerente.

O pseudo-moralismo da militância, de que ordenamento for, reside no fato de se aproveitar de um terreno que parece legítimo e justo, em que seu portador se coloca como uma voz que exalta os valores universais da humanidade.

No entanto, o que essas vozes realmente desejam é um lugar de fala privilegiado que por si só parece autorizar o uso do poder seja para angariar seguidores, votos, admiradores, pois o poder desses lugares não encontra opositores, já que qualquer manifestação pela diferença de opiniões será imediatamente calada com a força das condenações de ignorância, de homofobia, de chauvinismo e o cancelamento moral será a punição sempre disponível para quem desafiar essa forma de pensamento fascista.

O uso do poder, seja em que nível for, não carece de inteligência, de reflexão ou de compreensão, pois é um dispositivo ao alcance da mão de qualquer um que deseja silenciar o seu próximo.

Em quase todos os sentidos evocaram de modo distorcido a moral vitoriana.

A moral vitoriana é um extracto da moral das pessoas que viveram na época do reinado da rainha Vitória do Reino Unido (1837=1901) e do clima moral ao longo do século XIX em geral que contrastava em grande parte com a moralidade da era georgiana que a antecedeu. A moral vitoriana pode descrever qualquer conjunto de valores que englobe restrição sexual, pouca tolerância para divergência de opiniões e um código social de conduta pública pretensioso. Devido à proeminência do Império Britânico, muitos destes valores espalharam-se por todo o mundo.

E embora seu declínio tenha sido aparentemente definitivo, Alan Mathison Turing (1912-1954) foi um matemático, cientista que inventou o computador, lógico, criptoanalista, filósofo e biólogo teórico britânico que decodificou o código alemão enigma, possibilitando a derrota nazista na segunda guerra, ao ser denunciado como homossexual foi condenado à castração química e cometeu suicídio.

A longevidade dessa moralidade angustiante continua sempre presente e acessível para aqueles que imaginam concertar o mundo, tal como se arroga o pensamento superficial de esquerda, com todas as suas pautas moralizantes.

Felizmente, no passado e no presente ainda existem redutos em que podemos ostentar uma salutar amoralidade, uma irreverência libertadora e uma dignidade contra a militância covarde e ignorante que grassa por esses tempos enganosos.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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