Delmar Bertuol
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Colunistas 30/Mai/2023 às 16:41 COMENTÁRIOS
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A MINHA GELADEIRA

Delmar Bertuol Delmar Bertuol
Publicado em 30 Mai, 2023 às 16h41

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Achei que minha geladeira tivesse estragado. Pensei comigo: quase cinco anos. Ela passou por duas mudanças, mais a transferência dela do andar de cima pra garagem; assistiu à eleição e à posse do Bolsonaro; sobreviveu aos quatro anos dele e atravessou comigo a pandemia, sendo uma das poucas companhias que me restava no brabo da quarentena. Na solidão do confinamento, ela me via sentado à soleira da porta, olhando pro nada e pensando em tudo, ou olhando pro tudo e não sabendo no que pensar, incólume e confuso; assim como ouvia as reuniões e aulas onlaine, talvez censurando minha roupa de baixo, em dissonância com a camisa formal.

Ano passado, eu a fiz descer. Coloquei uma menor em seu lugar na cozinha. Desde então, vive no inóspito da garagem. Só ganha companhia em dias de churrasco ou visita. Aliás, penso que pode ser por isso que ela parou de gelar a parte de baixo: rebeldia! É que, velho, dei pra fazer bobices, como dar vida a objetos inanimados. É como diz meu tio: o homem envelhece e se abobada. Pode ser. Só me nego a chamar cachorro de filho. Aí já é bobice demais.

Não sabia há quanto tempo estava assim, mas foi num sábado de manhã que percebi que só a parte superior, a do frízer, estava funcionando. E, claro, só notei porque a cerveja não gelava.
Desliga. Liga. Mexe aqui. Mexe ali. Tira da tomada. Põe de novo. Mexe ali. Mexe aqui. Fala puta que pariu. Desliga. Liga. Mexe aqui. Mexe ali. Tira da tomada. Mexe aqui. Não vai adiantar, tá fora da tomada. Liga na tomada. Puta que pariu.

Telefona pro cara.

Faz voz de coitado, pra ele vir em pleno sábado perto do meio dia.

Ele diz que não pode.

Liga pra outro cara. Voz de desespero. Logo mais, vai ir dar uma olhada, promete.

O técnico já chega fazendo cara de tsc-tsc-tsc. “Esta marca aí, complicado, meu amigo…”

Eu comprei a geladeira tão logo me separei. Tinha que praticamente mobiliar outra casa. Ainda que fosse uma casa de solteiro, tinha uma pequena de dois anos que iria dormir frequentemente lá, devia ter um mínimo de conforto. Precisava pelo menos uma duplex pra pôr o sorvete. E com a tecnologia frost free, que me dou ao luxo de não ficar de bunda pra cima descongelando geladeira a cada não sei quanto tempo. Aí, o dinheiro era curto pro tanto de coisa de que precisava. A geladeira não podia ser, literalmente, nenhuma Brastemp. Peguei a mais barata, dessas que, quando estragam, não se acham as peças.

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Mas, ao técnico:

Ele criou hipóteses e suposições. Não valeria a pena levá-la, não sem antes fazer um teste. É que, se o problema fosse a rebimboca da parafuseta, ele não conseguiria fazer o conserto, por falta de peças da marca. Eu que ligasse pro concorrente Fulano de Tal, que atende lá na rua onde mora o sogro do Ciclano. Não, não, o endereço ele não sabia.

Por outra sorte, o problema poderia ser outro, que ele falou e eu igualmente agora esqueci (mentira, esqueci dois minutos depois que ele falou. Talvez, eu nem tenha prestado atenção.) Enfim, fosse esse o problema, resolver-se-ia bastando desligá-la e a deixando descongelar por completo. Nada menos do que 24 horas desplugada da tomada de 3 pinos, que ajudou a derrubar presidenta.

O homem foi embora sem cobrar a visita. Tão decepcionado quanto eu. Talvez até constrangido por não poder ter resolvido o problema na hora.

Na outra manhã, tirei ela da tomada.

Mais de 24 horas de descanso.

belchior perfil cidadão fora do comum

Cheguei na segunda à noite. Liguei. O barulho irritante do motor me deu certeza. Ela estava de novo funcionando! Gelando bebidas e quitutes.

“Pra que Deus, dinheiro e sexo / Ideal, pátria e família / Se alguém já tem Frigidaire”

Belchior estava certo. Naquele instante em que a geladeira ia esfriando, eu “Gelei de Pura Emoção”.
Apesar de barulhenta e grande, ela já havia passado maus bocados comigo. “Afinal, na geladeira, bem ou mal / Pôs-se o futuro do país.”

O tardio mas não anacrônico adesivo do Lula já estava descolando. Vencedor, mas não displicente na vigilância, fixei-o de novo no seu corpo alvo e generoso com o carinho com que o adolescente da mesma música Balada de Madame Frigidaire deslizaria pelas coxas da citada empregada debutante.

Fiquei pensando ao que ela assistiria comigo desde agora ate a quatro anos. Tenho minhas hipóteses e torcidas.

“Essa deusa gorda da tecnologia”.

Não sei se foi delírio, não tenho certeza de lhe ter dado um beijo bem no vão entre a porta de cima e a de baixo.

O homem envelhece e vai se abobando.

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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