O que Bolsonaro uniu o liberalismo deve separar
A união que foi criada para ganhar as eleições está fadada a acabar. Não tem como alguém que se posiciona à esquerda aceitar frágeis políticas compensatórias como o limite
Anderson Pires*
Jair Bolsonaro se transformou num grande fator de unidade no país. Tirá-lo do poder passou a ser uma meta comum a pessoas de diversos segmentos sociais e orientações políticas. Comunistas e liberais estiveram juntos com intuito de barrar o fascismo que se espalhava.
A extrema direita passou a ser um perigo maior e mais urgente. As pautas conservadoras que propagavam violências e preconceitos, mais a instabilidade política e econômica aproximaram pensamentos distintos. Nesse cenário, Lula era a figura mais ao centro e com maior poder de aglutinação. Não dava para fazer apostas em terceiras vias que representassem o risco da manutenção de Bolsonaro na presidência.
Porém, um governo que é formado por tamanha heterogeneidade, tendo que governar com um Congresso Nacional capitaneado por Artur Lira, um legítimo representante do velho centrão fisiológico, dificilmente conseguirá produzir políticas que agradarão a todos que o apoiaram.
A grande questão é: qual lado da balança terá mais peso? Sabemos que o Lula é um político com forte apelo popular, que dialoga com o pobre trabalhador como nenhum outro, principalmente, pela identidade existente: pela origem, pela trajetória sindical e pela visão desenvolvimentista.
Diante de tanta desigualdade existente no Brasil, certamente, o Lula ainda é a melhor opção para minimizar algumas das mazelas que ganharam muita força durante o governo Bolsonaro. É inegável que colocar na pauta questões humanitárias e combater a fome são temas fundamentais para socorrer quem sofre preconceitos e vive à margem da sociedade sem saber o que irá comer.
Da mesma forma, não temos como negar que a conjuntura no país e o equilíbrio de forças políticas são desfavoráveis às grandes transformações. Entretanto, não podemos aceitar que a subsistência seja a principal meta e que, por conta disso, tenhamos um governo pavimentado exclusivamente por fundamentos liberais.
Não bastasse ser a sociedade capitalista, ainda teremos dela a pior versão. Os liberais dirão que não defendem a supressão de direitos, muito menos a propagação da pobreza. Na acepção ideológica (ou seria no marketing) liberal, a grande justificativa que sustenta o modelo de sociedade que defendem é que haveria liberdade para que todos tenham ascensão e sucesso financeiro.
Mas essa fórmula tem um resultado impossível, já que não tem fator de correção que estabeleça uma mudança na curva da desigualdade. O chamado mínimo necessário para que todos vivam com dignidade, no Brasil, tem séculos de defasagem e, contraditoriamente, nossa economia aponta para um retrocesso que irá ampliar a concentração de renda, com a expansão do agronegócio e a desindustrialização.
Exageros à parte, enquanto o mundo liberal desenvolvido caminha para uma economia verde, tecnológica e de propriedade intelectual, aqui o horizonte é de exploração agrária e feudal. Não existe setor que produza mais desigualdade que o primário. Basta lembrar que a sua origem tem tradições escravagistas, que condenavam ao açoite quem ousasse comer parte da produção.
Os produtos agrícolas nunca tiveram um papel social. A prova maior é que no país que mais produz alimentos no mundo milhões de pessoas passam fome. Existe contradição maior? Essa realidade esdrúxula é baseada no modelo liberal, cuja produção deve atender aos parâmetros do mercado e não às demandas sociais.
Com base nessa visão e nos problemas conjunturais citados, o Governo Lula pende para consolidação desse modelo, com a tentativa de minimizar necessidades extremas como o desemprego e a fome. Em curto prazo, essa conduta pode parecer plausível, mas a médio e longo prazos, os mesmos problemas tendem a se repetir, à medida que essa ínfima parte destinada ao pobre sofra alguma perda.
Basta lembrar que o nível de desigualdade no Brasil nas últimas duas décadas está diretamente ligado à ampliação ou redução de políticas como o Bolsa Família e ao ganho real do salário mínimo. Qualquer pequena oscilação nessas duas políticas é suficiente para que as ruas se encham de pessoas pedindo ajuda para comer.
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Pode parecer cruel o que direi, mas a diferença entre o fascista e o liberal e só a distinção moral em relação a quem irá morrer. Nos dois modelos, a morte prematura dos mais pobres e vulneráveis sempre fará parte dos ciclos econômicos que adotam. O fascismo explicita o preconceito por gênero e cor. O liberal diz não discriminar, mas depende da expansão da pobreza para sustentar seu modelo. Em suma, os dois convergem para a desigualdade, enquanto um cala qualquer voz que lhe incomode, o outro noticia e chama a isso liberdade de expressão.
A unidade produzida em torno da oposição a Bolsonaro não se sustenta com a expansão da pauta liberal. É provável que Lula caminhe em busca de resultados semelhantes aos que obteve em seus outros governos. Certamente, se conseguir, sairá do seu terceiro mandato com a confirmação de que foi o melhor presidente que esse país já teve, mas o povo seguirá vulnerável em decorrência das concessões limitadas permitidas pelo liberalismo.
A forma equivocada como os liberais enxergam os problemas sociais pode ser facilmente identificada quando empresários, políticos e membros de organizações não governamentais se unem para iniciativas, a exemplo do não desperdício de alimentos, como alternativa para o combate à fome. Será que, num país com 220 milhões de habitantes, mas que produz o suficiente para alimentar 1,3 bilhão de pessoas, precisa de iniciativa para racionalizar os restos de quem tem mais do que precisa como alternativa à fome?
Óbvio que não. Uma sociedade que tivesse, pelo menos, uma visão capitalista keynesiana adotaria medidas para estabelecer que a produção agrícola deveria ter parte destinada à erradicação da fome. O liberalismo usa de escárnio quando transforma o combate à fome em ato de doação voluntária do excedente, quase uma “caridade” . Assim, poderá suspender, dado que não se trata de direito, sempre que as exigências do mercado determinarem.
O liberalismo é uma política nociva ao ser humano, não importam as cores que mesclem os seus discursos. Os liberais vivem da zona frágil e cinzenta da sociedade. Especulam com todas as áreas essenciais, da segurança alimentar à educação. A questão social é, para eles, uma espécie de doença que tratam sempre na forma crônica, para não possibilitar a cura, entendida como o fim da desigualdade.
O Governo Lula prestaria um grande feito ao Brasil se conseguisse romper com a lógica perversa do liberalismo. E nem estou reivindicando que a sociedade se transforme num modelo socialista, o que seria excelente. Sendo realista, no entanto, já seria fantástico se quem produz alimentos destinasse parte do excedente para uma verdadeira segurança alimentar, ou se os que vivem de especular pagassem pelos juros e dividendos que ganham sem limites.
A união que foi criada para ganhar as eleições está fadada a acabar. Não tem como alguém que se posiciona à esquerda aceitar frágeis políticas compensatórias como o limite. É difícil? Sim, muito. Mas se não houver reação, estaremos sendo omissos e o liberalismo no Brasil irá institucionalizar a pobreza como condição obrigatória para a expansão dos interesses do capital.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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