Antes do preconceito: um imperador homossexual na China Antiga
Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
A homossexualidade é uma questão de Estado na China que atravessa os séculos, mas ela apresenta comportamentos distintos no passado e no presente. Recentemente, o governo chinês anunciou uma medida que “propunha ensino de masculinidade para evitar troca de papeis de gênero”. Antes disso, o governo já havia proibido “representações de relacionamentos homossexuais na televisão” por “tratar-se de conteúdo vulgar, imoral e prejudicial à saúde”.
Embora a homossexualidade tenha sido descriminalizada na China em 1997 e excluída da lista de perturbações mentais em 2001, o casamento entre pessoas do mesmo sexo permanece ilegal no país, e indivíduos que se identificam como LGBTQIA+ enfrentam preconceitos recorrentemente. A proibição do casamento acarreta outras restrições jurídicas: somente casais heterossexuais podem adotar filhos, obter imóveis e adquirir outros bens em conjunto. Engatando marcha à ré no processo civilizacional, hospitais públicos e privados oferecem terapias, hipnoses, eletrochoques, antídotos para “corrigir cidadãos incautos”. De acordo com Graeme Reid, diretor da organização Human Rights Watch, “mais de vinte anos se passaram desde que a China deixou de considerar a homossexualidade um crime, mas as pessoas LGBTI+ ainda são submetidas a internações, medicação forçada e até eletrochoques para tentar mudar sua orientação sexual”.
A família é o principal obstáculo para pessoas LGBTQIA+ no país continental. Culturalmente, os chineses valorizam a capacidade de homens e mulheres em ter filhos e formar uma família nuclear. Por isso, a homossexualidade torna-se desonra na linhagem parental, levando pais e mães a ocultarem a orientação sexual de seus filhos e a erigirem um paredão heteronormativo.
Mergulhados numa sociedade homofóbica, milhares de LGBTQIA+ são empurrados para casamentos arranjados e relações conjugais forçadas. Um estudo realizado pela universidade de Qingdao, publicado em 2012, aponta que “90% dos 20 milhões de gays na China são casados com mulheres que ignoram a orientação sexual do marido”, evidenciando a pressão social e o sofrimento espraiado no terceiro maior país do globo.
Mas a história nem sempre foi assim. Registros literários do século 7 a.C descrevem relacionamentos amorosos entre homens da corte chinesa dentro e fora das dependências palacianas; fontes manuscritas do século 4 a.C identificam inúmeros monarcas amancebados com parceiros do mesmo sexo. Pinturas remotas representam cenas homoeróticas indicando que homossexualidade, bissexualidade e heterossexualidade ditavam à tônica numa sociedade despida de preconceitos de gênero.
Entre os séculos 4 e 3 a.C., ganhou destaque o relacionamento entre o governante chinês Wang Zhongxian e o professor Pan Zhang. Conta-se que os dois se apaixonaram, viveram uma paixão arrebatadora e passaram o resto de suas vidas juntos. A união do casal é narrada como uma “parceria afetuosa entre marido e mulher”, que compartilhavam “o mesmo travesseiro com intimidade ilimitada”. Após uma longa jornada marital, Wang Zhongxian e Pan Zhang morreram abraçados, dormindo, e foram enterrados pela população local no pico do Monte Loufu, uma montanha localizada no Sul e considerada sagrada pelos chineses.
Histórias como essa evidenciam que na China antiga os valores eram outros, as relações homoafetivas eram aceitas e disseminadas em todas as esferas da sociedade, inclusive entre imperadores que ficaram famosos por suas relações amorosas com outros homens. É o caso do imperador Aidi, um dos monarcas da dinastia Han Ocidental (206 a.C – 220 d.C), que governou a China durante o século 1 antes da Era Cristã.
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A documentação sobre a vida do Imperador Aidi é rarefeita, restando apenas fragmentos de um tempo em que a oralidade era o meio de comunicação primordial entre os chineses. Ao nascer, Aidi ficara órfão de pai e mãe, mortos poucos meses depois em um campo de batalha contra povos inimigos. Criado pela avó, atravessou a infância cravejado pelos ensinamentos disciplinares do confucionismo. Durante a adolescência, empenhou-se diligentemente em aprender cálculo, filosofia e táticas militares com eruditos mestres chineses. Ao completar 18 anos, altivo e esperto, surpreendeu o imperador Cheng (33 a.C – 7 d.C), seu tio e antecessor, com suas qualidades militares, habilidades guerreiras e virtudes filosóficas. Não apenas isso, tinha trânsito facilitado entre influentes cortesãos por distribuir presentes e prestar auxílio em diferentes necessidades, características que contribuíram para valorização e fortalecimento de sua imagem na sociedade chinesa.
Após a morte trágica do tio, no ano 7 d.C, Aidi assumiu o trono como herdeiro da poderosa Dinastia Han. Tinha acabado de completar 20 anos de idade. Logo que ascendeu ao trono, nomeou conselheiros de confiança para auxiliá-lo na condução do império, casou-se e tratou de ampliar o poderio bélico do seu exército.
Aidi vivia dias gloriosos embalados por prosperidade econômica e conquistas territoriais que marcaram os anos iniciais de seu reinado. O imperador ampliava os membros da corte confiando cargos, distribuindo alimentos e construindo obras de infraestrutura que melhoraram o trânsito de mercadorias e pessoas no vasto domínio chinês. Até que em meados de 4 a.C, respaldado por recomendações contundentes, o imperador resolveu nomear Dong Xian como secretário particular. As qualidades do assessor extrapolaram características técnicas, tratava-se de “um homem suave e gentil e bom em encantar as pessoas”.
O encantamento atingiu em cheio o imperador, imediatamente apaixonado pelo novo funcionário do império. A paixão transcendeu o desejo, materializando-se num intenso relacionamento entre Aidi e Dong Xian. O jovem secretário agora era o amante oficial, o favorito do monarca, personagem conhecido por todos os súditos da sociedade chinesa.
A esposa de Aidi, embora contrariada, aceitava as incursões extraconjugais do marido. A imperatriz não era a única, situações análogas ocorreram na China desde tempos imemoriais e prosseguiram durante toda a Dinastia Han. Diversas fontes, conforme citamos acima, descrevem monarcas enamorados por outros homens, geralmente integrantes do palácio imperial. A prática homoafetiva, no entanto, atravessa os portões do paço imperial e se disseminava em todos os estratos da sociedade. O historiador Bret Hinsch escreveu que “homens das classes altas e baixas eram livres para ter amantes do sexo masculino quando o conceito de romance era socialmente flexível, possível tanto com um homem quanto com uma mulher sem os estigmas morais da religião”. A condenação aos relacionamentos homoafetivos contaminou a corrente sanguínea da sociedade chinesa somente no século XVII, logo após o desembarque do cristianismo em território asiático.
Embora prática corrente, há algo que diferenciava o governante Aidi de seus congêneres amasiados com outros rapazes: a paternidade. O monarca sempre se esquivou da responsabilidade paternal, filhos constituíam névoas espessas em sua trajetória: “Por natureza, o imperador Aidi não se importava com as mulheres”, observou o historiador Han Bān Gù. Aidi não tinha e não queria deixar herdeiros diretos para o trono devido à ojeriza que sentia às mulheres. Seu casamento servia como escudo para mantê-lo no poder; e somente isso.
Em menos de um ano, Aidi não apenas autorizou a mudança para o palácio de Dong Xian, esposa e filhos do amante, como concedeu títulos aos parentes e os posicionou em funções estratégicas do reino. Ciente do prestígio astronômico que desfrutava, Dong Xian, computando precoces 22 anos, tomava decisões em nome do imperador, nomeava funcionários, comandava o tribunal, chefiava o exército e operava as finanças. Nenhuma palavra, nenhuma crítica, nenhum olhar enviesado estava autorizado ao todo poderoso secretário de Aidi. Os que ousaram cruzar a fronteira interdita perderam cargos, proventos e amargaram o calabouço. Alguns pagaram um preço ainda mais alto, como ocorreu com o habilidoso estrategista Wang Jia, que no ano 2 a.C tentou dirimir o poder de Dong e acabou encarcerado.
Convicto de sua posição, sem retroceder milímetros, Wang encarou o veredito: decapitação em praça pública. À medida que o tempo avançava, os laços que atavam Aidi a Dong estreitaram-se paulatinamente. Ainda em 2 a.C, logo após o incidente que vitimou Wang Jia, Dong foi nomeado primeiro-ministro num evento que reuniu proeminências da cúpula palaciana. Agora, entre centenas de funcionários longevos e grisalhos, o jovem galgou o último degrau da hierarquia real ditando a política do pujante império chinês. Dizia-se pelos corredores que embora despertasse ciúmes em muitos, a sabedoria de Dong era respeitada por todos e que ele, em muitos assuntos, estava acima do próprio imperador.
As estratégias adotadas por Dong para resolver problemas de produção e abastecimento de alimentos, por exemplo, num período de estiagem prolongado por décadas, fizeram com que o império permanecesse estável. Tudo isso graças à intrincada costura política envolvendo camponeses, militares, cortesãos e outros trabalhadores orquestrada pelo ministro-todo-poderoso. As estratégias avançaram, respingando em diferentes aspectos: novas técnicas agrícolas, construção de sistemas de irrigação e abertura de estradas cortando rincões inóspitos do reino que garantiram minimizar o flagelo da fome.
Foi o próprio primeiro-ministro quem treinou recrutas e liderou os soldados responsáveis por derrotar os xiongnu, uma confederação de povos nômades locados no norte asiático, autores de guerras, extorsões e pilhagens contra diversos povos da região. Durante séculos, os xiongnu tiraram o sono das autoridades chinesas, sobretudo nas franjas do império, submetendo populações locais à escravidão e à morte. Dong atacou o coração da confederação, devastou as terras do inimigo, subordinou os sobreviventes a trabalhos forçados e incorporou a região controlada pelos xiongnu aos domínios do império Han.
O prestígio na corte somado ao astronômico poder de Dong ofuscaram o imperador Aidi e embaralharam o xadrez político do reino. Em meados de 3 a.C, o ministro das finanças, Bao Xuan, direcionou ao palácio uma longa carta intitulada “Sete Privações e Sete Mortes”. Nela, o missivista descreve um mundo desconfigurado, virado de cabeça para baixo, palco de um reino controlado por lacaios que baniram cidadãos virtuosos e submeteram indistintamente os súditos. Imbuído de um verdadeiro espírito cruzadístico, Bao Xuan sentenciou: “O mundo hoje chama os tolos de capazes e os sábios de incapazes”.
Ao receber a epístola, ciente do destinatário daquelas tempestuosas críticas, Aidi retomou o equilíbrio, calculou custos políticos e decidiu absolver Bao. O tino sobrepôs a cólera; punir o ministro traria resultados imprevisíveis: tratava-se do principal emissário do confucionismo no império, filosofia professada por milhares de chineses. A carta era o prenúncio de um terremoto que abalou a hegemonia da Dinastia Han. Um ano depois de Bao redigir o documento, as labaredas da discórdia escorreram do palácio e atingiram diferentes solos do império.
Revoltas incontroláveis sacudiram a estabilidade reinante, patrocinadas inclusive por servidores reais descontentes com a inversão de papeis daquele império desgovernado, uma sociedade “de cabeça para baixo”: o primeiro-ministro era mais poderoso que o imperador.
Temendo as rachaduras causadas pelo abalo sísmico, o imperador Aidi convocou comissários, elaborou táticas, criou novos postos de trabalho, empreendeu reformas em diferentes áreas, incumbiu seu pupilo Dong de resolver a crise. Os esforços para cimentar as fendas pareciam inócuos, minando definitivamente o poder de Aidi.
Em 1 a.C, impotente diante dos graves conflitos que chicoteavam o império, Aidi adoeceu gravemente sem jamais ter conseguido se recuperar. Faleceu precocemente, aos 26 anos, cercado de poucos acólitos. Antes de descer a sepultura, porém, redigiu um documento em que anunciava o novo monarca do Império Han: ninguém menos que Dong Xian.
A tentativa de coroar o amante como herdeiro do trono fracassou, a morte de Aidi solapou a influência de Dong que não conseguiu articular alianças que o mantivessem no poder. Meses após a morte do homem que o elevou ao posto máximo do império, chegaria também o momento de Dong abandonar o palácio. Julgado por um tribunal militar, teve a pena capital decretada unanimemente: Dong e sua mulher foram executados.
A manga cortada
Aidi teria sido apenas mais um governante inábil no catálogo dinástico chinês, sua trajetória afundaria na invisibilidade e passaria despercebida se não fosse a lenda da “manga cortada”. Essa história foi contada no mais importante libelo sobre a Dinastia Han, o monumental livro “Han Shu: A História da Dinastia Han”. Escrita pelo historiador cortesão Han Bān Gù, nos idos do século 1 d.C, a obra é a principal fonte sobre as vicissitudes do Império Han em seus quase 400 anos de existência. Em um dos tomos, o escritor narra o romance entre o imperador Aidi e o primeiro-ministro Dong Xian: “Dong estava frequentemente na cama com o imperador. Ao amanhecer, Aidi quis se levantar e para não acordar seu amado [Dong Xian] que dormia em seus braços, o governante preferiu cortar a manga da própria roupa. Essa era a extensão de seu amor e afeição”.
Essa lenda originou dois fortes símbolos da história chinesa. O primeiro engendrado logo após a morte de Aidi, quando os súditos passaram a cortar as mangas das roupas como símbolo de luto e respeito ao imperador. O segundo atravessou séculos e, ainda que timidamente, permanece até os dias atuais: a “manga cortada” virou signo das relações homossexuais chinesas.
Nas dinastias que sucederam o Império Han, os contos amorosos homoafetivos eram intitulados “Registros da manga cortada”. Durante séculos, os escribas orientais registraram casais homossexuais em suas histórias abusando de eufemismos relacionados à “manga cortada”. Quando a Era imperial terminou, em 1912, dando início ao período republicano, a polícia chinesa rotulava o comportamento homossexual como “predileção pela manga cortada”.
As leis contra a homossexualidade desembarcaram na China durante a Dinastia Qing (1600-1900), trazidas na bagagem por jesuítas europeus. Pasmados com a naturalidade das relações entre pessoas do mesmo sexo, os missionários cristãos empunharam o estandarte anti-homoafetivo como causa pétrea, quase um “pecado original” a ser expurgado, e estimularam sucessivos governantes a proscrever relacionamentos que destoavam dos “ensinamentos divinos”.
Perseguidos, torturados e mortos, milhares de chineses caíram nas garras da intolerância e tombaram pelas investidas violentas dos chamados “soldados de Cristo”. Antes do cristianismo, as escolas de filosofia predominantes no Oriente, como o confucionismo e o taoismo, tiveram pouco interesse em elaborar dogmas e julgamentos morais acerca das relações homoafetivas.
Durante a chamada Revolução Cultural (1966-1976), como parte da limpeza lançada em nível nacional por Mao Tsé-Tung contra todos os elementos contra-revolucionários, a perseguição aos homossexuais chegou ao paroxismo. Milhares de seres humanos foram torturados, presos e mortos pelo governo comunista que os qualificou publicamente de doentes mentais, os confinou em centros de detenção e acampamentos de reeducação para depurar o fantasma da anti-revolução.
Era preciso aniquilar os inimigos do regime maoísta e extirpar qualquer influência capitalista: os gays eram um dos frutos apodrecidos da árvore capitalista ocidental.
Na China atual, como em muitos outros lugares, a homossexualidade é tolerada: os clubes gays podem permanecer abertos, desde que discretos e fora dos olhos do público. Movimentos de empoderamento LGBTQIA+ pipocam de norte a sul do país continental, objetivando a inserção dos gays no ordenamento de uma sociedade altamente estratificada. Empoderar no capitalismo, por meio de direito-poder, benesses materiais e lugares de destaque, significa azeitar as engrenagens da maquinaria social produtora de desigualdade. É repetir à exaustão o velho adágio do romancista italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “vamos mudar tudo para que tudo permaneça igual”.
A história da China, analisada pelo prisma da homossexualidade, dinamita os grilhões do preconceito. Por ela, é possível abrir os portões da alteridade, do respeito, das conexões horizontais para compreendermos, definitivamente, que jamais podemos permitir que a orientação sexual nasça primeiro que o coração.
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor dos livros Ensaios Incendiários sobre um mundo normatizado (2021) e Texturas e Veredas (2022)
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