Opera mundi: Gilberto Freyre disse, sim, que o Brasil era uma democracia racial
Trecho de entrevista de Gilberto Freyre publicada na revista Veja de 15 de abril de 1970
Muito se escreveu sobre a “forma muito mais consensual” a que aludira o senador. Não vou retomar o assunto. Quero, aqui, me apegar à afirmação de que Gilberto Freyre “é hoje renegado”. É preciso dizer que Demóstenes repete um discurso intelectual corrente e desgastado, a ideia de que a esquerda uspiana teria perseguido Gilberto Freyre e lhe tirado o merecido espaço. Nesse discurso, a USP assume o papel que supostamente teria tido o PCB (Partido Comunista Brasileiro) na “patrulha” a intelectuais e escritores – Rachel de Queiroz, por exemplo, passou décadas se queixando disso, como se não continuasse a publicar romances, a escrever nos jornais e ter minisséries televisivas inspiradas em sua obra.
Não é nada mal ser renegado à moda de Rachel. Mas o caso de Gilberto Freyre é ainda mais radical.
Homenageado da Flip deste ano, seu principal livro, Casa-Grande & Senzala, chegou à 50ª edição. Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso, sequências de Casa-Grande, continuam a ser editados. E uma infinidade de outros títulos que produziu estão disponíveis nas livrarias, sem contar os estudos que de sua obra derivam. Há pelo menos duas respeitáveis biografias recentes, Gilberto Freyre – Uma Biografia Cultural, de Guillermo Giucci e Enriqueta Larreta (Civilização Brasileira, 2007), e Gilberto Freyre – Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallares-Burke (Unesp, 2005).
A ideia de que Freyre é um injustiçado “pela esquerda” não tem sustentação, mas aparece de forma muito clara nas falas que tentam desassociá-lo ou pelo menos minimizar o papel que o sociólogo teve na construção do mito de que o Brasil é uma “democracia racial”.
Freyre preferia falar em “democracia social” e “democracia étnica”. É este termo que usa, por exemplo, ao escrever no jornal Quilombo, dirigido por Abdias Nascimento. No primeiro número da publicação, no final da década de 1940, Freyre estreia a coluna “Democracia Racial”. No jornal de Abdias, a ideia está associada mais a uma palavra de ordem (na linha “lutemos por uma democracia racial”) do que a uma interpretação das relações sociais no país.
Um outro estudo, do sociólogo Levy Cruz, indica que a primeira vez que Freyre usou a expressão “democracia racial” foi no artigo “Brazil, racial amalgamation and problems”, publicado no Yearbook of Education, em Londres, em 1949.
“Para tais reformadores, tudo o que o Brasil precisa é importar algumas das novas instituições liberais europeias. Os realistas, contudo, pensam que o Brasil, estimulado pela Europa liberal e pelos Estados Unidos, deve desenvolver suas próprias instituições democráticas ou estilos. Uma delas deve ser uma democracia racial que nem a Europa nem os Estados Unidos estavam então preparados para aceitar”, escreve o sociólogo pernambucano. No mesmo texto localizado por Cruz, Freyre associa a democracia racial à cultura, ao dizer que “tanto a música quanto a arteda culinária contribuíram para a democracia étnica ou racial no Brasil”.
Racial democracy
Em mais duas grandes entrevistas é possível identificar toda a habilidade de Freyre em lidar com a ideia sem chegar a uma posição definitiva sobre ela.
Na Veja de 15 de abril de 1970, O jornalista José Salfioti Filho pergunta a Freyre:
– Vê uma atitude racista no culto à mulata ou reafirma sua tese de que nesse culto está uma prova da ausência de problemas raciais no Brasil? O Brasil é, realmente, uma democracia racial perfeita?
Freyre responde:
– Perfeita, de modo algum. Agora, que o Brasil é, creio que sem dúvida, a mais avançada democracia racial do mundo hoje, isto é. A mais avançada neste caminho de uma democracia racial. Ainda há, não digo que haja racismo no Brasil, mas ainda há preconceito de raça e de cor entre grupos brasileiros e entre certos brasileiros individualmente.
Lembremos que, em 1970, estávamos no auge da ditadura militar, sob o governo Médici. Democracia racial, portanto, não se relaciona diretamente com democracia política, na cabeça de Freyre.
Em 1980, em entrevista ao Diário de Pernambucano (também citada por Cruz), Freyre voltaria a ser questionado se o Brasil era uma democracia racial. Na sua resposta, ele diz que, “quando fala em democracia racial, você tem que considerar o problema de classe, se mistura tanto ao problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de educação”. Pouco à frente, ele complementa: “Não há pura democracia no Brasil, nem racial nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo”.
USP versus Gilberto Freyre
Financiado pela Unesco, esse estudo na virada dos anos 1940 para os 1950 deve muito à notoriedade conquistada pela tese de que o Brasil seria um país especial no que diz respeito às relações étnicas, em oposição aos conflitos que marcaram a Segunda Guerra Mundial e à segregação racial norte-americana, expostas internacionalmente por Freyre. Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, com suas pesquisas no sul do país, participaram diretamente da construção dessa resposta, que ganhou a adesão do movimento negro.
Esse combate intelectual foi, por parte dos uspianos, franco e aberto. Começou antes de 1964 e se intensificou, claro, depois do golpe. A crítica honesta, contudo, nem sempre encontrou um adversário disposto a lutar apenas com as próprias armas.
Em 21 de junho de 1972, quando uma entrevista de Gilberto Freyre ao jornal O Estado de S.Paulo desagradou os militares, a revista Veja deu uma capa para Freyre, com um longo perfil. Neste texto, recheado de frases de Freyre, ficamos sabendo que Freyre se considerava “perfeitamente identificado” com o governo militar e “querendo colaborar”. Freyre também afirma não ter “entusiasmo nenhum por eleição” e que “democracia é uma palavra em crise no mundo todo”. Freyre advoga também que o Brasil precisa “de uma mistura de autoritarismo com democracia”, num elogio ao Poder Moderador do Império e seu ressurgimento nas mãos das forças armadas com o executivo forte.
Freyre relata – e a revista reproduz – um diálogo que teve com o primeiro presidente da ditadura, o marechal Castelo Branco. O presidente militar convidou Freyre a assumir o ministério da Educação, e Freyre respondeu: “Só aceito se minha posse coincidir com a demissão de todos os reitores e de todos os conselhos universitários.” Castelo Branco, que apeara João Goulart do governo, precisou ponderar: “Você está sendo muito radical”.
O sociólogo pernambucano antecipou-se, assim, logo em 1964, às perseguições a intelectuais que ocorreriam após o AI-5, de 13 de dezembro de 1968. Em maio de 1972, Freyre, no entanto, teve a oportunidade de referir-se a seu principal adversário intelectual na questão racial.
Veja pergunta: “O senhor concorda com a aposentadoria do sociólogo Florestan Fernandes, que hoje leciona no Canadá [Florestan foi aposentado compulsoriamente em 1969, numa lista que também incluiu FHC]?”. Freyre responde, dando voltas: “Essa pergunta é muito difícil de ser respondida. O intelectual não deve ser um privilegiado. Eu mesmo fui preso três vezes durante a ditadura de Vargas. Minha casa foi literalmente saqueada em 1930. Se o intelectual tentou atingir o regime e se isso ficar provado, como não sei se é o caso de Florestan Fernandes, nada mais justo que houvesse uma reação em defesa”.
Como se vê, Freyre (que nas palavras de Carlos Guilherme Mota, em Ideologia da Cultura Brasileira – 1933-1974, atuou como denunciador de um grupo de intelectuais), quando pôde se retratar preferiu reafirmar suas posições e as do regime militar. Mas, como analisa César Braga-Pinto, professor de literatura comparada na Rutgers-State University of New Jersey, em resenha à biografia de Freyre de Pallares-Burke, há um Freyre ainda mais problemático: o jovem que, nos anos 1920, antes de escrever Casa-Grande & Senzala, portanto, comungou de pontos de vista eugenistas, foi crítico da mestiçagem e condescendia com a Ku Klux Klan, quando esteve nos Estados Unidos.
Isso significa que devemos jogar de vez Gilberto Freyre fora ou, seguindo a sugestão do senador Demóstenes Torres, renegá-lo?
A resposta é mais complexa que isto. Evidentemente, Casa-Grande & Senzala teve consequências importantes na recusa do racismo eugenista quando foi lançado, em 1933. O livro também coloca a pergunta sobre o grau e a realidade de uma “democracia racial” brasileira, alicerçada na história patrimonialista que tanto agrada Freyre – pergunta que seria respondida pelos uspianos pela negativa, ou seja, desmontando os argumentos de Freyre sem recuar aos pressupostos raciais que foram superados por sua formulação. Seus métodos de pesquisa e de escrita, além disso, não podem ser ignorados totalmente, ainda que normalmente sejam insuficiente quando adotado por seguidores menos trabalhadores e criativos.
Mestiçagem
Freyre, assim, virou uma espécie de último recurso do pensamento conservador, uma última “autoridade” intelectual, supostamente perseguida, a negar os conflitos que precisam ser enfrentados para serem superados, como é o problema da inclusão do negro no ensino superior.
A Flip, que começa nesta quarta-feira, pode ser assim uma justa homenagem – ou, dependendo da quantidade de elogios destemperados que forem ditos em relação a sua obra – apenas mais um passo atrás no debate intelectual e político que as interpretações do Brasil permitem.