Capitalismo e Democracia
A breve história do Estado de Bem Estar Social e da democracia popular mal completou algumas décadas de vida e já tem seus alicerces seriamente abalados, mostrando como inviáveis esses modelos dentro da lógica que o sistema persegue. Seu ápice não passou de mera exceção na história do capitalismo
Leandro Dias*
O Estado Moderno, moldado no capitalismo mercantil e pró lucro, surgiu antes da democracia moderna, a que conhecemos e pensamos hoje. De uma maneira bem resumida, baseados em clássicos como Weber, Maquiavel e Marx, poderíamos dizer que o poder político constituinte deste Estado originou-se ora como a representação da supremacia de um grupo hegemônico, se impondo contra os menores, “monopolizando” o uso da violência “legítima” para seus interesses de classe; ora como um mediador de interesses particulares das classes que os compunham, buscando soluções “interessantes” para as principais partes envolvidas, seja a nobreza da terra, seja a burguesia mercantil ou a Igreja. A população, despossuída e dominada ainda pelo peso do “poder divino dos reis”, aceitava sua condição servil, explodindo eventualmente em distúrbios e revoltas camponesas, especialmente em épocas de guerra prolongada e estiagem (fome).
O sistema de representatividade política moderno, surgiu baseado na divisão de classes, explicitamente destinado a conferir aos grupos detentores do poder, seja ele o bélico, seja ele o econômico, o controle sobre o Estado e, portanto, o uso legítimo da violência e da lei. Assim, nos poucos Estados Modernos baseados em voto, o mesmo sempre foi censitário, seja por renda ou posse de terras (2). Até muito recentemente, o voto censitário era justificado como um indicador da capacidade e da qualidade do indivíduo, uma expressão objetiva e meritocrática da sua posição na sociedade e, logo, mostra-se um reflexo “lógico” na ideologia liberal-capitalista. “No taxation without representation” é o lema clássico do movimento independentista norte-americano, e uma vez alçado ao poder tornou-se “no representation without taxation”, isto é, somente quem paga impostos sobre propriedade é capaz de se fazer representado dentro do Estado, o que exclui a esmagadora maioria da população, mesmo em um país que surgiu fazendo reforma agrária, que foi o caso dos EUA.
Hobsbawn escreve em “A Era das Revoluções” (2009, p. 106-107):
No geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários.
Não é apenas um exercício de retórica de Hobsbawn. A Inglaterra, emblemático exemplo de “democracia ocidental”, só deu plenos direitos à sua população masculina toda votar em 1918, pois até então o voto destinava-se apenas, em maior ou menor grau, a proprietários homens (mulheres só foram poder votar em 1928). O voto secreto só entrou de fato em vigor em 1872 e o fim oficial da compra de votos apenas em 1884 (3). Somente após uma série de demandas populares é que foram diminuídas as restrições de propriedade, e a classe trabalhadora pôde finalmente começar a votar em 1867 – e, mesmo assim, apenas 32% da população masculina na idade adequada estavam aptos a exercer tal direito naquela época (4).
Ainda na Inglaterra, vale lembrar que, até 1948, proprietários tinham direito a votar tantas vezes quantos negócios possuíam em cada colégio eleitoral, algo claramente destinado a enfraquecer o poder popular e alijar a massa de despossuídos do direito de se ver politicamente representada (5). E, se lembrarmos que até 1910 parlamentares não recebiam salário naquele país, havia uma enorme restrição de acesso da massa de trabalhadores ao parlamento, uma vez que não tinham tempo suficiente para exercer o cargo eletivo sem remuneração e, ao mesmo tempo, exercer um trabalho assalariado para prover seu sustento e financiar sua carreira parlamentar, a não ser quando um ou outro sindicato podia bancar os seus representantes. Desde que parte da classe operária pode começar a votar em 1867, apenas quem fosse proprietário e acima de 30 anos poderia concorrer a algum cargo, sendo que a expectativa de vida para um trabalhador inglês no meio do século XIX não passava de 40 anos (6).
Então, mesmo se “forçarmos a barra” e esquecermos todo o império colonial criado pelos britânicos, fundamental para a construção da hegemonia inglesa, temos que a toda a formação e a consolidação do capitalismo inglês ocorreram fundamentalmente em bases muito pouco democráticas (7).
Nos EUA, a autoproclamada Terra da Liberdade, os direitos plenos a voto só foram instaurados em inacreditáveis 1964-1965, com a 24ª emenda e o Ato dos Direitos Civis. Até então os estados decidiam a questão e, embora a constituição nacional permitisse voto de ex-escravos desde 1869 (15ª emenda), os estados da federação, bastante independentes, trataram de passar leis que na prática impediam os negros de votar (8). Os artifícios eram os mais variados, como testes de alfabetização (sendo que negros eram proibidos de freqüentar escolas públicas), histórico de impostos (poll tax), além de inúmeros documentos e atestados de propriedade. Além disso, a proibição de votar a presos por certos crimes levava ao aumento do número de prisões de negros e pobres por pequenos delitos em épocas de eleição para evitar que fossem votar, fato ainda controverso até hoje (9).
E mais, o voto só se tornou secreto nos EUA após 1884 (10). Até então o nosso conhecido voto de cabresto, reforçado por poderosas elites e grupos paramilitares como a Klu Klux Kan, os Camisas Vermelhas (11) e as máfias urbanas, impedia ou intimidava negros e minorias a votar como queriam. Assim, depois de muita luta, estado por estado, o voto universal de fato só virou lei federal nos EUA em 1965. Quanto pioneirismo da Terra da Liberdade.
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Na França, o voto universal não restringido por renda ou posição social só foi instaurado em 1875, após intenso combate popular desde as revoluções de 1848 e quatro anos depois da Comuna de Paris de 1871, a mais libertária das Revoluções, em que o voto universal foi uma das principais bandeiras (12). Porém, nem tudo são flores na República Francesa. Apenas em 1913 o voto secreto foi estabelecido, mais de 120 anos depois da Revolução Francesa (13). E, em termos de igualdade de gênero, a França está atrás até mesmo do Brasil, uma vez que as mulheres na França só passaram a votar em tardios 1945 (14).
Enfim, citando outros exemplos, temos a Suíça, outro bastião da civilização democrática ocidental, uma das democracias diretas (plebiscitária) mais antigas e sólidas, cunhada após intensas rebeliões populares lideradas por correntes radicais contra resquícios do Antigo Regime (ainda em 1848). A Suíça só deu voto universal às mulheres em 1971 (15), isto é, este país, exemplo de democracia ocidental, só deu direito a voto a esta parte de sua população 41 anos atrás. Ali do lado, na Alemanha, o voto universal masculino só chegou em 1918, isso com a derrota na Primeira Grande Guerra (16), pois até então havia um sistema censitário e nobiliárquico (1871-1918) – isso sem mencionar o período nazista que revogou a democracia alemã entre 1935 e 1945, mas isso não vem ao caso.
Os exemplos poderiam prosseguir ainda incluindo os vários países independentes das colônias inglesas, que só deram direito de voto a todos os seus cidadãos entre 1880 e 1920, sendo que a Austrália só deu direito a voto às minorias aborígenes em 1962. No caso europeu, não podemos esquecer que Espanha e Portugal só deram direito pleno de voto à sua população, respectivamente, em 1978 e 1975 (17). No Brasil, só para mencionar, fomos acabar com o voto censitário e vinculado à propriedade com a constituição de 1934; embora analfabeta, mais da metade da população brasileira só conquistou direito de votar com a constituição de 1988 e o final da ditadura militar. Até então eram – oficialmente – cidadãos de segunda classe.
E ainda que vivamos numa era de maior fiscalização, com tecnologias administrativas e de monitoramento mais avançadas, o execrável voto de cabresto ainda está presente em várias eleições pelo mundo. Se antigamente era vinculado a coronéis e industriais “linha dura”, hoje são os chefes de milícia no Brasil (18) ou os donos de empresa “respeitáveis” nos EUA (19) que forçam seus candidatos preferidos.
Porém, qual o sentido de toda essa reflexão para o nosso argumento?
O capitalismo e o Estado Moderno como o conhecemos se estabeleceram e forjaram sua aliança muito antes da universalização de suas democracias. E sempre, sem exceção, os grupos hegemônicos no establishment capitalista evitaram, ao máximo, que o direito pleno que tanto pregavam fosse de fato universalizado. Décadas de lutas populares evidenciaram que estas práticas não passavam de descarados recursos de cerceamento político de grande parte da população pobre, lembrando a frase de Anatole France: “A lei, em sua majestosa igualdade, proíbe tanto a ricos quanto a pobres dormir embaixo de pontes e de roubar o pão”.
A liberdade era apenas para quem tinha renda expressiva, nada para o homem comum e o pobre das fábricas, campos e usinas. Foi com resultado de intensas lutas de trabalhadores, liderados – é importante frisar – pela esquerda radical (comunistas, socialistas, anarquistas e sindicalistas em geral), que o voto, entre tantos outros direitos hoje “universais”, foi conquistado contra o poder capitalista dominante, fundando a democracia que pensamos hoje.
A lógica sistêmica da “busca pelo lucro” é bem anterior à democracia se tornar hegemônica (fato este ainda bastante contestável). O ideal da democracia capitalista não era muito diferente do ideal da democracia grega antiga, na qual um punhado de aristocratas e oligarcas tinha direito a comandar o Estado, deixando uma massa de escravos e semi-escravos sem direito a escolha, condenados à sua própria origem de nascença (sem mencionar as mulheres, confinadas no lar). E, ainda hoje, é mais do que comum encontrarmos países capitalistas sem democracia, poderíamos dizer até que uma democracia transparente e estável é uma exceção e não uma regra nos países capitalistas.
Democracia jamais foi condição sine qua non para o capitalismo. Não foram os capitalistas radicais de Milton Friedman que instauraram o “livre mercado” no Chile, a mais assassina das ditaduras sul-americanas, com seus mais de 30.000 mortos? (20) Não foi Singapura uma rígida ditadura capitalista de Estado durante toda sua formação, tida como exemplar pelo “Ocidente”? Ou o que foi o Egito e é a Arábia Saudita, se não brutais ditaduras aliadas do ocidente democrático-capitalista, produzindo petróleo para o “libertário” capitalismo euro-americano? Não é a China, “agora que está dando certo”, o mais brutal regime capitalista já pensado: um Estado aristocrático super-poderoso, que do comunismo só absorveu o que tinha de pior – a estrutura de poder imperial dos bolcheviques -, enquadrando infindável contingente de pessoas em trabalhos semi-escravos a serviço das mega-corporações mundiais? A prova final de que o namoro entre capitalismo e democracia não passou de retórica ou sonho distante do trabalhismo. Um relacionamento de fachada, uma farsa encenada pelas classes políticas e os grupos econômicos dominantes, que assegura a alocação ótima de recursos e a maximização dos lucros empresariais que, em última instância, são os donos dos mandatos dos políticos (22).
Então, hoje, não é surpresa que, diante do sinal de mais uma crise econômica, o capitalismo ganhe nova força, solapando a democracia tal qual nos acostumamos a conhecer, e marche abertamente para Estados nos quais proprietários de empresas e plutocratas detêm de jure e de fato todo o poder político. As evidências se amontoam e tudo é em nome da “liberdade e da saúde da economia”: a criminalização de movimentos sociais e sindicatos; a ridicularização e o esvaziamento de protestos populares; a brutalidade policial em níveis ditatoriais no coração de todas as democracias ocidentais; a precarização das relações e das condições de trabalho, acompanhada do esmagamento de direitos trabalhistas históricos; a cooptação das autoridades econômicas, monetárias e fazendárias pelas grandes corporações e o sistema financeiro, seja nos EUA ou no México; a derrubada dos governos eleitos no Paraguai e em Honduras pelos latifundiários, criando verdadeiras cidades privadas, como no caso de Honduras (23), tudo sob os auspícios das lideranças “democráticas” ocidentais; a imposição da dieta econômica tirânica e colonial da Alemanha aos países mais pobres da Europa, levando, por exemplo, à escravização da Grécia de uma maneira sem precedentes. E poderíamos ainda incluir a promiscuidade entre o sistema carcerário, o poder judiciário e as corporações, criando uma verdadeira “indústria do crime e punição” por toda parte (em especial nos EUA), exemplificada muito bem por Michael Moore no filme “Capitalismo uma História de Amor”.
No entanto, ao contrário do que prega Michael Moore nesse filme, não foi o capitalismo que atropelou a democracia. Foi a democracia – a busca por igualdade social e econômica além da meramente jurídica -, que tentou atropelar o capitalismo. O Estado Moderno capitalista foi abertamente feito para proprietários e as corporações, em defesa de seus interesses privados. O interesse da população, em geral, e dos trabalhadores, em específico, foi sempre visto como um mal que “desordena a economia e o mercado”. Portanto, é natural dentro desta lógica que os direitos sociais e trabalhistas históricos, conquistados a duras penas, sejam “revisados” e suprimidos da estrutura do Estado em todas as oportunidades que aparecem, sempre em nome da solvência econômica, da meritocracia, da “austeridade”. O acirramento do conflito entre trabalhadores, Estado e corporações que vemos hoje no mundo inteiro é na verdade um retorno às disputas do final do século XIX. A breve história do Estado de Bem Estar Social e da democracia popular mal completou algumas décadas de vida e já tem seus alicerces seriamente abalados, mostrando como inviáveis esses modelos dentro da lógica que o sistema persegue. Seu ápice não passou de mera exceção na história do capitalismo. Como disse Antonio Candido: “O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue (20).
*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve quinzenalmente para Pragmatismo Politico. ([email protected])
Notas:
1 – Como vimos no nosso último texto do Pragmatismo Político, a dicotomia entre Estado e Capitalismo, tão enfatizada por liberais, não passa de um mito ideológico de reinvenção do passado. O Estado sempre foi o principal fomentador do capitalismo privado na imensa maioria das nações; foi através do Estado que os interesses privados dominantes se fizeram ainda mais dominantes e se expandiram, a exemplo do exército inglês que assegurou a expansão da empresa privada Companhia das Índias Orientais no processo de colonização indiano ou na Rodésia e em tantas outras nações africanas, ou as indústrias petroleiras e armamentista sendo os principais lobistas e beneficiários da expansão belicosa norte-americana no Oriente Médio.
2 – http://en.wikipedia.org/wiki/Suffrage
3 – http://en.wikipedia.org/wiki/Parliamentary_Franchise_in_the_United_Kingdom_1885%E2%80%931918 ; e também aqui http://en.wikipedia.org/wiki/Elections_in_the_United_Kingdom#History
4 – http://en.wikipedia.org/wiki/Representation_of_the_People_Act_1884
5 – http://en.wikipedia.org/wiki/Plural_voting#United_Kingdom
6 – http://www.census-helper.co.uk/victorian-life/
7 – Ver Hobsbawn, Eric “A Era das Revoluções” e Engels, Friedrich “As Condições da Classe Operária Inglesa” (pdf).
8 – http://en.wikipedia.org/wiki/Voting_rights_in_the_United_States
9 – http://jacobinmag.com/2012/05/the-political-economy-of-mass-incarceration/
10 – http://en.wikipedia.org/wiki/Secret_ballot
11 – http://en.wikipedia.org/wiki/Red_Shirts_(Southern_United_States)
12 – http://en.wikipedia.org/wiki/Paris_Commune
13 – http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/suffrage_universel/suffrage-1870.asp#gauche
14 – http://en.wikipedia.org/wiki/Women’s_suffrage
15 –http://history-switzerland.geschichte-schweiz.ch/chronology-womens-right-vote-switzerland.html
16 – The Weimar Republic por Eberhart Kolb, 2004.
17 – http://en.wikipedia.org/wiki/Universal_suffrage
18 – http://www.cartacapital.com.br/politica/paes-ganharia-eleicao-no-primeiro-turno-diz-ibope/
19 – http://www.nytimes.com/2012/10/27/us/politics/bosses-offering-timely-advice-how-to-vote.html
20 – http://en.wikipedia.org/wiki/Chicago_Boys
21 – http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/09/120909_honduras_cidade_modelo_lgb.shtml