Por que líderes de extrema-direita usam cabelos cada vez mais bizarros?
Assessor da campanha de Sergio Massa, que perdeu para Milei, afirma que "o surgimento de penteados marcantes tem muito a ver com a ascensão da cultura digital e a possibilidade de transformar cabeças em ícones gráficos. O cabelo funciona como um dispositivo digital que, por sua vez, transmite a ideia de uma liderança vigorosa e inclassificável [...] Para eles, a ideia do inclassificável contém a semente da verdadeira liberdade"
Raquel Peláez, El País
No livro “Uma história maluca da peruca”, o autor Luigi Amara narra como o artista Andy Warhol fez com que toda a sua marca pessoal girasse em torno de um corte de cabelo que, na verdade, era uma peruca. A “mecha de cabelo platinado estilo vassoura” foi vendida por US$ 10.800 (R$ 52.607, na cotação atual) em um leilão em 2006. Não é trivial que o homem que dedicou sua carreira a refletir sobre a fama sabia que precisava transformar seu cabelo em um ícone para se tornar um — algo que os líderes da extrema direita do século XXI parecem ter muito claro.
Na sexta-feira, após a vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais argentinas e a ascensão de Geert Wilders ao poder na Holanda, memes circularam na internet apontando para o que está se tornando uma constante: a ligação entre a extrema direita e penteados estranhos. Essa relação existe? Se sim, por quê?
Si vienen los extraterrestres, van a pensar que “populismo de ultraderecha” es algo relacionado con el peinado… pic.twitter.com/gdnX8NbU4U
— José Irimia Barroso (@irimiabarroso) November 23, 2023
Houve um tempo em que era normal que um homem proeminente de poder usasse o cabelo comprido, cheio de cachos artificiais, rabos de cavalo com laços ou mechas desgrenhadas de forma bizarra. Como escreveu o psicólogo John Carl Flugel em um dos primeiros tratados sobre a semiótica da moda a ser publicado no século XX: antes da Revolução Francesa, quando ocorreu o que ele chamou de “a grande renúncia” entre os homens, que transformou a austeridade em um sinal de virilidade, os tecidos mais suntuosos, as cores mais prestigiadas e as perucas mais exageradas também eram um assunto masculino. Elas eram um símbolo infalível de status.
Curiosamente, a moda da peruca começou no século XVI com o surto de sífilis nas cortes europeias, que deixou os homens carecas. O rei Luís XIII, que tinha cabelos naturais longos e exuberantes, começou a usá-las para disfarçar sua alopecia, pois perdeu os próprios cabelos aos 23 anos — embora tenha sido Luís XIV, o famoso Rei Sol, que as transformou em uma febre entre seus súditos e em um símbolo de ostentação e desigualdade tão forte. Em 1792, a Convenção aboliu a peruca, e os mais de 20 mil cabeleireiros da França foram obrigados a se tornar barbeiros. O material com o qual eles tinham que trabalhar agora era cabelo de verdade colado em suas cabeças. A moda mudou e isso afetou a todos.
“Com o início do século XIX, o corte de cabelo curto tornou-se o padrão de limpeza em toda a Europa: cortá-lo era uma forma de dizer adeus ao Antigo Regime”, explica Ana Velasco Molpeceres, autora do livro “A História da moda na Espanha” e professora de comunicação na Universidade Complutense de Madri.
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As revoluções liberais e os valores do Iluminismo tiveram uma certa projeção simbólica nos cabelos curtos, que também começaram a ser vistos na Inglaterra, onde o motivo do desaparecimento das perucas foi diferente: o Estado, diante da escassez de talco, essencial para a preservação dos cabelos artificiais, inventou um imposto que os transformou em um problema econômico entre a alta burguesia. As mesmas ideias românticas que alimentavam o nacionalismo sobre o qual a nova Europa seria construída impuseram cortes de cabelo semelhantes aos dos imperadores e sábios das antigas civilizações. O mais popular de todos era o Brutus.
Se quiser saber como era esse corte de cabelo, você pode fazer duas coisas: procurar os personagens dos romances de Jane Austen ou olhar para a cabeça do presidente eleito da Argentina, Javier Milei.
“Toda vez que o vejo, ele me lembra um daqueles personagens pintados por Jacques-Louis David. Se você reparar, é curioso que esses rebeldes revolucionários, que construíram os Estados liberais, sejam os precursores das ideias de Milei, que é outro rebelde em uma mudança de época e também liberal, embora em sua expressão mais extrema — explica Velasco Molpeceres, para quem a estratégia capilar do argentino tem mais a ver com a ideia de não se conformar com os cânones de seu tempo, justamente para transmitir diferença”.
O mesmo se aplica ao holandês Geert Wilders:
“Acho que eles escolheram esses penteados porque são desconcertantes e, portanto, muito amigáveis à mídia. A estética bizarra e rupturista que sempre se encaixou na esquerda agora incorpora a direita neoliberal individualista: é uma oposição frontal à burguesia e, ao mesmo tempo, uma reafirmação vã”, continua a professora.
Antoni Gutiérrez-Rubí, diretor da consultoria de comunicação Ideograma e assessor da campanha de Sergio Massa, que perdeu para Milei, concorda:
“Nesse tipo de nova liderança, como a de Trump, por exemplo, o surgimento de penteados marcantes tem muito a ver com a ascensão da cultura digital e a possibilidade de transformar cabeças em ícones gráficos. O cabelo funciona como um dispositivo digital que, por sua vez, transmite a ideia de uma liderança vigorosa e inclassificável. Para eles, a ideia do inclassificável contém a semente da verdadeira liberdade”.
No caso da Milei, o cabelo serviu para estruturar uma campanha inteira em torno da figura do leão.
Na opinião do sociólogo e cientista político Luis Arroyo, diretor da consultoria Assessores de Comunicação Pública, o cabelo masculino sempre foi um sinal de força e sabedoria, enquanto a ausência de cabelo foi decodificada como o oposto, algo que poderia explicar o esforço de Donald Trump para esconder sua calvície a todo custo, por meio de sua peruca bizarra. Mas há também a busca consciente pela diferença:
“Na literatura mais recente sobre o fenômeno das novas hiperlideranças, há uma análise quase freudiana desses perfis e eles falam de personalidades neuróticas. Eles acreditam que são seres especiais e encontram na desordem de seus cabelos uma forma de desafiar o establishment”.
Essa categoria inclui, por exemplo, o ex-premier do Reino Unido Boris Johnson, que, apesar de ter sido educado nas melhores escolas públicas de seu país, sempre fez do desafio às boas maneiras sua marca registrada e seu cabelo um sinal de distinção.
Se os revolucionários e os dândis eram os promotores dos cabelos curtos, mas desgrenhados, as primeiras estrelas do cinema mudo foram as que deram boa publicidade aos cortes de cabelo bem arrumados, com risca lateral e gel para mantê-los sempre intactos.
“Em 1900, o ideal do cavalheiro já estava estabelecido. Mais tarde, Hollywood o transformaria em um padrão mundial que perdura quase até hoje”, diz Velasco Molpeceres.
O cabelo com corte bob, que Hitler usava para transmitir uma ideia de ordem e inflexibilidade, tem, no entanto, desde meados do século 20, sido associado a atitudes conservadoras.
De qualquer forma, os penteados têm significados e atribuições profundamente culturais que variam de país para país: a Argentina já viu a ascensão de um líder inclassificável como Carlos Ménem, cujas inesquecíveis costeletas também não se adequavam aos cânones dominantes da época. Evo Morales, da Bolívia, fez de sua pluma negra o símbolo de um certo tipo de orgulho. O gênero também influencia quando se trata de decodificar os escalpos. Gutiérrez-Rubí argumenta a diferença essencial:
“As mulheres se preocupam muito mais com cabelos limpos e saudáveis”.
Vázquez Molpeceres menciona a espetacular e folclórica trança com a qual Yulia Tymoshenko estrelou a Revolução Laranja na Ucrânia:
“Se ela tivesse vivido seu apogeu na era do Instagram, sua trança seria um ícone. Aquele cabelo com o qual ela homenageou as mulheres camponesas de seu país era um manifesto”.
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