Sempé nem cabeça
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Sou historiador e usualmente o olhar do historiador é moralizado pela história que vislumbra, embora não devesse ser.
Minha visão de historiador sobre a França está ancorada em três monumentos de indignidade.
O primeiro, o tratado de Verdun em que o imperador Napoleão III, para consolidar a paz com a guerra contra a Alemanha, exige que os batalhões alemães entrem em Paris para dizimar a comuna em 1871. O segundo, outro tratado, agora o de Versalhes (1919) que põe fim à primeira guerra, em que os aliados da França inviabilizam a Alemanha como país quando a nação tinha ainda alguma importância, favorecendo com isso o surgimento do nazismo e fomentando a continuidade da guerra industrial com o nome de segunda. E o terceiro, quando a França ocupada colabora em Vichy com os nazistas, aliada aos propósitos de entregar seus cidadãos judeus franceses para os trens em direção ao extermínio e, ao final da desocupação, persegue vergonhosamente as mulheres que se envolveram amorosamente com soldados alemães.
Essa França do historiador sem cautela, no entanto, é uma França sob o prisma do poder. Felizmente existem outras Franças e uma delas chegou a mim recentemente num livrinho do Sempé, evocando minha adolescência.
E essa França evocada me levou às pequenas vilas e cidades do interior, com suas ruas enfeitadas de passantes de sombrinha, dos cafés edulcorados com acordeons, das mulheres levemente aburguesadas emanando sorrisos e algazarras nas tardes de calor.
Jean-Jacques Sempé (1932-2022) foi um ilustrador francês nascido em Pessac, uma comuna francesa da região da Nova Aquitânia, que teria importância na obra do mestre ilustrador justamente pelo seu caráter bucólico.
Começou cedo como ilustrador de imprensa, criando a série O Pequeno Nicolau, um imenso leque de ilustrações dos pequenos estudantes da escola primária, com suas características zaragatas.
Essas desordens cotidianas, aliás, seriam marcantes em outras obras, como Marcelino Pedregulho, que ruborizava, Raul Taburin, o mecânico de bicicletas que não tinha equilíbrio, Monsieur Lambert, frequentador do bistrô Chez Picard, cuja súbita paixão de Lambert por uma misteriosa mulher traz desequilíbrio entre os frequentadores.
Sua vasta obra inclui ainda capas da revista americana New Yorker, em que sua visão irônica dos defeitos humanos sempre convidava ao riso.
Seu traço cartunesco, cuja resolução sempre se resolve na página, tradição dos ilustradores de jornais, é de uma singeleza confortável e leve.
Em documentário recente, “Petit Nicolas – Qu’est-ce qu’on attend pour être heureux?” (“Pequeno Nicolau, o que está esperando para ser feliz?”) de Amandine Fredon e Benjamin Massoubre, que ganhou o prêmio Crystal d’Or no Festival de animação de Annency, Sempé conta da vida de violência que acompanhou sua infância dentro de casa. E faz muito sentido que todas as crianças-personagens de sua obra sejam leves e alegres, uma vingança certamente para edificar um mundo sobre escombros que seja leve, alegre e divertido, sem que os defeitos sejam ocultados.
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Sempé nasceu em uma família humilde em Bordeaux. Seu padrasto o espancava, sua mãe era negligente. Ele fugiu então daquele ambiente em direção a Paris, com seu caderno de desenhos debaixo do braço.
Nicolau é um personagem exemplar nesse sentido. É doce e um tanto rebelde, sem nenhuma acrimônia. O traço simples de Sempé é enganoso. Extremamente elaborado, compondo cenários em que cada elemento dialoga displicentemente com os personagens, o leitor recebe a mensagem diretamente ao coração.
E foi assim que a arte de Sempé eliminou da cabeça a racionalidade instrumental da história, que é sempre uma história do poder.
Lê-lo é um refrigero, principalmente hoje que a seriedade racional tem prevalecido, atingindo em cheio as crianças e os jovens.
Charlie Brown Jr., Não é sério, é o sintoma de um tempo de sofrimentos:
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério
O jovem no Brasil nunca é levado a sério
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério, não é sério
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério
O jovem no Brasil nunca é levado a sério
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério, não é sério
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério
O jovem no Brasil nunca é levado a sério
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério, não é sério
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério
O jovem no Brasil nunca é levado a sério
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério, não é sério
Mas ainda é tempo de não ser levado a sério. Sempé está por aí!
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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