Eduardo Bonzatto
Colunista
Política 14/Jan/2024 às 17:26 COMENTÁRIOS
Política

VIDA ANCILAR

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 14 Jan, 2024 às 17h26

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Uma vez que a ruptura moderna nos separou, nos afastou daqueles que davam sentido às nossas vidas e que, como nos lembra Milton Santos, que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem enxergar o que os separa e não o que os une”, carecemos de reverter essa danação. Porque não podemos existir sem o nosso próximo.
A questão é como reverter esse isolamento, num tempo em que os seres aguardam a volta de uma justiça insular num mar de egoísmo. Cada um esperando que o mundo mude para só então mudar junto.
Um século de revoluções só aumentou a imaginação de que ainda não chegamos numa revolução funcional. Deveria ser diferente, de reconhecer que não haverá revolução que dê jeito.
A palavra revolução foi tirada do movimento dos astros, quando tudo caminha para voltar ao começo, muito diferente da ideia das pregações revolucionárias, que pressupõem um mundo em busca de justiça e igualdade.
O social se tornou um terreno de vanidades. Nada parece adiantar para alterar as rotas que o social te arremessa.
O social que se ancora numa ideia de realidade é apenas ficção, pois temos que lhe conferir sentido e coerência. A realidade, por outro lado, é caos e indeterminação. Se, de um lado, esperamos justiça numa ficção, por outro, precisamos de visão sinóptica para viver na outra. E essa visão precisa ser construída com nossos recursos, seja para reafirmar o mundo do egoísmo e da separação, seja para revolucionar nossa medida nele e instaurar um mundo de justiça e respeito a que devotaremos nossa energia.
Se o mundo da separação se ancora na competição e no egoísmo, o mundo do abraço há de sustentar no servir. E o que é o servir. A atitude daquele que subsidia, que auxilia, que suplementa e assessora o próximo, sem pedir retribuição, sem esperar reconhecimento. É um estar no mundo com o próximo, em que não se imagina estar separado.
Tomemos esse servir como uma forma peculiar de viver a vida.
Vivemos muitas vidas num só dia. Temos a vida com os amigos, com a família, com o mundo laboral, assim como vivemos na distância, com nossas criações artísticas, com as conexões espirituais, num único dia somos muitos.
Cada uma dessas conexões deve se fundamentar no servir. Como é possível servir aos amigos?
Estar disponível incondicionalmente. Aqui é importante que se diga que estar disponível é necessariamente não procurar com ofertas e dádivas. A disponibilidade para o servir é energética e sensível e nunca é submissa ou bem-intencionada.
Aquele que serve vive num lugar de autonomia e independência e nunca de arrogância ou superioridade. Não precisa ser reconhecido, pois a energia deve cumprir sua expansão. Esse servidor nunca é altivo. Nem humilde. Apenas está onde precisa estar a todo momento. Íntegro e feliz. E não se precisa ser agradável para isso. O ser agradável é carente e ostensivo e sempre fará com que a energia se dissipe sem atingir aqueles que necessitam dele.
Se a energia for integral, apenas a proximidade será suficiente para promover o bem-estar com o outro. E todos os convites serão energéticos e conectivos

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A família é um conglomerado de deficiências espirituais e quase sempre encontram pontos de ruptura e divergências. Tais estados conflitivos servem também para que possamos compreender a nós mesmos, pois estamos inseridos em movimentos misteriosos cuja compreensão demanda tempo.
É um tempo de amadurecimento, mas se o servir estiver ativo, todas as contingências serão dissipadas com facilidade.
Aqui representa bem a máxima do mestre quando indagado pelo discípulo sobre como fazer boas escolhas. O mestre responde, fazendo más escolhas. Pois é exatamente esse movimento que há de revelar ao caminhante seu estado de serviço.
A família é uma unidade de compreensão e de aprendizado de nossa própria forma em relação ao outro, pois é na família que nossa agressividade, altivez e soberania se expressa de modo mais cruel. Então vamos aprendendo sobre esse nosso egoísmo e se entendemos que o egoísmo, a inveja, o abuso estão em nós com a desculpa de estar no outro, então podemos afinar nosso modo distanciando da competição em direção ao servir.
E será no núcleo familiar que nossa forma há de se metabolizar para um modo de humanização que falta ao social. Ou então vamos degenerando nossa humanidade para uma zona de objetificação gradual até que em algum momento possamos rever a história coletiva de nossa vida familiar para a reversão de nossa própria forma.
Muitas serão as oportunidades para a degeneração ou para a humanização e será apenas por nossa percepção que seguiremos um caminho ou outro.
Todavia, será no mundo laboral que essa experiência do servir encontrará sua plenitude. Pois o mundo do trabalho exige dois tipos de servidão. Servir ao poder ou servir ao humano. E será fácil perceber a qual desses senhores tu estará servindo.
Quando servimos ao poder, a energia decai e em diversos momentos sofremos pela agressão alheia ou pela nossa própria agressão ao próximo. Não há dúvida, pois o sentimento é claro e determina nosso apego.
Quando servimos ao humano, tudo flui sem obstáculos, pois todas as evidências do apego, como o preconceito, o julgamento, a possessividade, o ego vai sendo anulado e substituído pela irreverência em relação às agressões do ambiente.
Aquele que serve ao humano não ostenta sofrimento, pois o humano, em sua energia, é recíproco, mesmo sem saber das trocas energéticas envolvidas. Sente o bem-estar e como dizia o filósofo das ruas, gentileza atrai gentileza.
A reciprocidade emerge ao topo da vida social com uma clareza desconcertante. Mas é preciso que o agente do servir o faça sem esperança dessa mesma reciprocidade. A energia expansiva do servir mobiliza instâncias ulteriores com laboriosa paciência.
A prática do servir atua para além das percepções interiores. O servidor, sem se dar conta, ameniza as narrativas do pensamento para que o sentimento surja como uma forma de ver o mundo. E essa forma sentimento traz consigo uma necessidade criativa que permeia tudo.
A criatividade é uma imersão num ambiente de prosperidade imaginativa que transmuta evidências em artesania. Não há como o servir não ser criativo, pois todo o entorno é novo e a inovação da percepção resulta na inovação criativa.
E essa criatividade há de expandir para além dos nossos próximos, encontrando outros na distância do tempo e do espaço. Em contato com essa artesania, outros também sentirão os benefícios do servir e poderão repercutir as mesmas inovações, pois o sentimento gerado pelo servir ao humano é inato nos seres. Está em nós como uma impressão digital comunicativa e comunal.
Todo o servir já está nas zonas espirituais de nossa existência e circula energizando as egrégoras a que pertencemos. Essa egrégoras, essas forças ancestrais a que pertencemos, reconhecendo no servir sua função primordial, ampliam ainda mais seu tamanho e sua influência sobre nossas vidas para que alcancemos cada vez mais uma vida virtuosa para ser compartilhadas.
E o que é necessário para optar pelo servir?
Apenas servir e nada mais.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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