A vida de um inocente torturado até a morte pelo estado vale R$ 200 mil?
Andreu, que trabalhava como garçom, foi abordado por policiais sob a acusação de roubar o celular de um turista. Levado para o centro de triagem, acabou torturado até a morte. Um rapaz preso depois do assassinato confessou o crime que era atribuído a ele
A Justiça brasileira é ruim também nas contas quando o personagem de uma decisão dos seus magistrados é pobre, negro ou vítima da ditadura. Os jornais noticiam que a 7ª Câmara de Direito Público da Justiça do Rio condenou o Estado a pagar indenização de R$ 200 mil à família de Andreu Luiz Silva Carvalho.
Andreu (foto) foi assassinado aos 17 anos na noite do réveillon de 2008, no centro de triagem e recepção do Degase, órgão do governo fluminense que aplica medidas judiciais impostas a menores infratores.
O adolescente havia sido abordado por policiais na saída da praia do Arpoador, sob a acusação de roubar o celular de um turista. Levado para o centro de triagem, foi torturado até a morte por seis agentes.
Andreu foi preso e massacrado dias depois de conseguir um emprego de garçom. Um rapaz preso depois do assassinato confessou o crime que era atribuído a ele.
Andreu era negro. A ação foi movida pela mãe do menino, Deize Silva Carvalho, que no ano passado se formou em Direito. Deize é negra.
Ela busca uma reparação na Justiça, além da condenação de seis agentes acusados pelo crime. Até agora, só o que ganhou foi o direito à indenização, 16 anos depois. Dezesseis anos.
Uma mãe é indenizada com R$ 200 mil pelo assassinato do filho de 17 anos dentro de uma instituição do Estado. E os assassinos continuam impunes.
Se o filho tivesse uma expectativa de vida de 70 anos, teria valido, pela matemática da Justiça, algo como R$ 315 por mês. Metade do valor médio pago pelo governo através do Auxílio Brasil.
Um menino morto aos 17 anos vale R$ 200 mil, enquanto qualquer fascista sonegador de impostos e contrabandista cobra na Justiça, sob o pretexto de danos morais, quantias semelhantes ou superiores. E muitos vencem.
R$ 200 mil depositados na conta de uma mãe que sabe que na maioria das vezes os assassinos de negros e pobres não são punidos. Leiam o que ela disse quando se formou:
“Pretendo atuar como advogada com mães vítimas de violência. Muitas mães não têm como pagar um advogado e muitas vezes um defensor público não dá atenção à família porque são inúmeros casos. O meu objetivo como advogada é dar assistência jurídica a essas mães para que elas possam sonhar e acreditar que a justiça vai acontecer”.
Lembremos que R$ 200 mil é mais ou menos o valor padrão a ser pago pelo Estado (nunca se sabe se pagam mesmo), por decisões judiciais na área cível, a familiares de presos políticos caçados, presos, torturados e mortos pela ditadura.
O bom seria que os familiares dos assassinados pelos ditadores e a advogada Deize Silva Carvalho pudessem esfregar os R$ 200 mil na cara da Justiça. Até porque a Justiça, essa que aparece com os olhos vendados, no Brasil não consegue esconder a cara e as garras.
(Essa semana, a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reconheceu que a publicitária e cientista social Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura em 1975, agora é anistiada política e por isso tem direito a uma indenização de R$ 100 mil. Clarice foi perseguida pelos militares que torturaram e mataram seu marido. Deize e Clarice poderiam sentar e conversar sobre liberdades, lutas, memórias, perdas, saudade e indenizações.)
*Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre. É autor do livro de crônicas Todos querem ser Mujica (Editora Diadorim).
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