Por que Manuela D’Ávila saiu do PCdoB
No início da tarde desta segunda-feira (4), Manuela d’Ávila recebeu a reportagem do Sul21 para uma conversa na sede do Instituto E Se Fosse Você, ONG criada por ela logo após as eleições de 2018 com o objetivo de combate à violência política de gênero. Uma sala comercial no segundo andar de um prédio na Av. Independência, em Porto Alegre, ocupada por uma ampla mesa de reuniões no centro e repleta de elementos que marcaram as diversas fases de sua trajetória política e pessoal. Em um canto, um princípio de biblioteca que, segundo ela, será mais uma de uma dezena que já ajudou a montar. Em outro, uma estátua de Nossa Senhora Aparecida que ganhou de presente do ex-deputado Tiririca, no tempo em que eram colegas na Câmara Federal.
Manuela encerrava uma conversa por videochamada que faz parte do seu esforço para criar um movimento suprapartidário de mulheres na política. Em uma das paredes da sala que sedia o instituto, há cartazes com as iniciais de diversos estados brasileiros e, abaixo, nomes de mulheres, lideranças políticas e personalidades da sociedade civil. Na parede oposta, os dizeres: “Ler mulheres é revolucionário”.
A ideia da entrevista era entender o que motivou a deputada, depois de duas décadas de mandatos parlamentares e uma trajetória política toda construída dentro do PCdoB — o que inclui a candidatura à vice-presidência da República em 2018, — a anunciar, praticamente sem pompa, como uma nota de rodapé durante evento ao vivo promovido pelo ICL Notícias, que deixaria o partido, fato confirmado oficialmente pela legenda nesta segunda.
Ao longo da conversa, ela explica que não houve apenas uma causa, mas um somatório de fatores, o que inclui “muitas derrotas internas” ao longo dos anos. Contudo, destaca que a decisão do partido de se federar com o PT, a qual ela foi contrária, é um fator relevante. Em sua leitura, o PCdoB perdeu parte de sua identidade ao participar de uma federação com um partido muito maior, como é o caso do Partido dos Trabalhadores, movimento que acabou por descaracterizar a legenda comunista.
Sem ter um destino ainda definido, Manuela reafirma que se vê como uma militante partidária, mas também admite que não se sente “desconfortável” em exercer uma função no terceiro setor. “Para mim, foi infinitamente bonito poder presidir um instituto que coordenou o primeiro abrigo de mulheres na enchente. E eu pude fazer isso porque eu estava nesse lugar, no terceiro setor, na sociedade, embora, eu repito, eu acredite nos partidos e na disputa política”, diz.
Ao longo da conversa, ela também explica os impactos que os violentos ataques que sofreu da extrema-direita ao longo de sua carreira política, especialmente nas disputas de 2018 e 2020, quando concorreu à Prefeitura de Porto Alegre pela terceira vez, tiveram em sua vida, na relação com a própria filha, Laura, 9 anos, e, também, nos rumos de sua carreira política.
Ao final, ela analisa o resultado das recentes eleições municipais, fazendo um alerta para o equívoco que é tratar da disputa pela Prefeitura como um pleito isolado de um contexto global de emergência climática, avanço da extrema-direita, entre outros fatores. E termina com uma citação do velho poeta comunista chileno, Pablo Neruda.
Como é que foi esse processo de saída do PCdoB? Quando começou? O que te levou a essa decisão?
Manuela d’Ávila: Na verdade, é um processo bem longo. São alguns anos que eu debato com o PCdoB algumas questões metodológicas. Meu processo de afastamento formal da Executiva Nacional do partido já se deu há mais de um ano e meio, desde março de 2023. Foi um processo de divergências, respeitoso com a minha história, com a militância do PCdoB, que é extraordinária. Foi a militância que constituiu a minha identidade. O que o PCdoB entregou na minha vida é imensurável e eu acredito que eu também entreguei bastante, né? São 25 anos de dedicação a um único partido. Atravessei junto com o PCdoB momentos muito difíceis e, enfim, é uma relação que se encerrou depois de bastante esforço. São alguns anos de debate interno que eu travei para tentar ficar no lugar que eu sempre considerei a minha casa e foi bastante difícil tomar a decisão de sair.
Teve alguma questão chave, específica, que levou a essa decisão?
Manuela d’Ávila: Eu acho que resumir o fim de uma relação de 25 anos a um único fato sempre é arriscado. A mãe de uma amiga minha, que foi casada muitos anos, quando a gente perguntava para ela: ‘Tia, mas por que tu te separou?’ Ela dizia assim: ‘Porque ele não foi trocar pneu um dia’. Era evidente que ela usava aquilo para dizer ‘não é assim’, ‘não existe um fato’.
A escolha da federação foi um fato interno marcante, porque, para mim, descaracterizou o PCdoB enquanto partido. Porque o PT é um aliado fundamental, um aliado importantíssimo, mas é um partido muito maior do que o PCdoB, e isso faz com que a relevância interna na federação do PCdoB seja muito pequena. Então isso, para mim, é algo que tirou a identidade do partido publicamente e não é pouca coisa. Para quem fez a escolha de estar num partido como o PCdoB durante 25 anos, isso não é pouca coisa. Mas seria errado imaginar que uma derrota interna me faria sair. Eu fui derrotada muito mais vezes do que vocês imaginam durante esses 25 anos. Só que realmente talvez também seja difícil para as pessoas imaginarem que, alguém que tem uma vida tão pública quanto a minha, imagina, eu sou uma figura pública com mandatos com muita visibilidade desde os 22 anos de idade, talvez seja difícil para as pessoas combinarem essa figura pública com uma pessoa que tem uma vida e teve uma vida partidária absolutamente discreta e disciplinada. Então, eu fui derrotada ao longo de 25 anos muitas vezes e esse processo de ruptura, de saída, também foi muito intenso, embora tenha sido discreto como eu, em geral, sou na minha vida interna partidária.
Tu diria que esse processo também passa por uma busca de mais autonomia, do ponto de vista pessoal e partidário?
Manuela d’Ávila: Contraditoriamente, sim e não. Do ponto de vista partidário, com certeza. Eu me filiei a um partido e eu acredito que os partidos disputam a sociedade, são instrumentos de disputa de visões de mundo na sociedade. E, na minha interpretação, apesar de eu defender as federações, a forma como se dá a federação com um partido tão maior como o PT faz com que o PCdoB perca a sua autonomia. Do ponto de vista individual, não. Eu não acredito em militância solo. Veja bem, são alguns anos que eu fiquei reclusa, em silêncio, fazendo meus debates do ponto de vista interno porque eu acredito na força da militância, na força do coletivo, na sabedoria desse coletivo. Então, sim, do ponto de vista partidário, a autonomia é importante. E, do ponto de vista individual, para mim é uma experiência dificílima ser uma pessoa, mesmo que provisoriamente, mesmo que durante um período de reflexão, sem um coletivo, porque eu acredito na força do coletivo, da elaboração política coletiva, das reflexões coletivas.
Tu já tem uma casa nova? Já está em negociações com algum partido?
Manuela d’Ávila: Não, acho que isso também causa estranheza. Os políticos, em geral, eles saem de um partido já com outro partido amarrado. E está tudo certo, cada um tem a sua vida, tem a sua história. Essa não foi a história que eu escolhi para mim. Então, eu não tenho, não abri diálogo com nenhum partido, não faz parte daquilo que eu considero correto para minha história, para a minha militância, do respeito com qual me relacionei e me relacionarei com a militância do PCdoB, a quem eu dedico todo o meu respeito e o meu agradecimento, a minha gratidão.
Mas, ao mesmo tempo, eu tomei a decisão de voltar a militar. Esse período que eu fiquei reclusa, fazendo o debate interno, é um período que, num certo sentido, fez com que eu estivesse menos presente no espaço público. Isso tem a ver com uma série de questões, também seria injusto atribuir isso só a essa dinâmica interna, não é e não foi. Eu tenho organizado, junto com outras companheiras, um movimento suprapartidário de mulheres e tenho organizado alguns espaços de elaboração sobre o que eu acho que deve ser um espaço de diálogo das forças de esquerda do Brasil. Eu acredito muito na amplitude, mas também na radicalidade. Para mim, é fundamental que exista frente ampla, porque justamente eu sei, na teoria e na prática, o que significa enfrentar o bolsonarismo. Eu não sou daquelas que sabe só na teoria. Eu sei na teoria e sei muito, há muitos anos, o que é enfrentar a extrema-direita na prática. Então, a frente ampla é imprescindível para mim, foi e continuará sendo. As eleições municipais de 24 dão um recado sobre a necessidade da amplitude. Mas eu também sei que, dentro dessa frente ampla, nós temos que nos apresentar. Ou seja, uma tática que é sofisticada, porque requer amplitude, mas requer radicalidade programática, debates que a esquerda precisa fazer sobre a sua identidade, sobre a sua cara, sobre o seu programa para o Brasil, para o povo brasileiro, para a classe trabalhadora brasileira. Então, eu estou tentando, ainda de forma incipiente, me reorganizar nesses ambientes até que eu decida o meu futuro partidário.
Tu falou agora de organização de frente ampla, parece que tu tens uma vontade de ter uma atuação organizativa, digamos assim, talvez não necessariamente como candidata. Tu não participou diretamente das últimas duas eleições, embora tenha participado ativamente. Hoje, tu tem mais ânimo para se candidatar nas próximas eleições ou estar numa função de ajudar a organizar. Como tu está vendo o teu futuro na política?
Manuela d’Ávila: Acho que essa tua pergunta ela é muito interessante porque tem várias respostas contidas nela. Então, primeiro, eu sou alguém que acredita na força do coletivo, na força das ideias e que há bastante tempo faz um debate para um esforço que o nosso campo deve empreender, na minha avaliação, para despersonificar a representação dessas ideias. Vê bem, na minha primeira eleição, há duas décadas… Esses dias, eu recebi uma mensagem de uma amiga: ‘Ousadia era isso, ter a candidata mais jovem e não usar a foto dela’. A gente criou aquela bonequinha para não usar a imagem, para buscar representar a força das ideias de um conjunto de pessoas que advogavam em torno de algumas ideias para a cidade de Porto Alegre. Então, para mim, é importante que as pessoas compreendam que eu não deixei de fazer política nem um dia, porque a política é e tem que ser muito mais do que os mandatos parlamentares. É muito importante ter mandato, tem uma responsabilidade tremenda, mas também é muito importante ocupar outros espaços na sociedade, debater sobre outros lugares. E, para mim, eu repito o que disse antes sobre a minha decisão partidária, tudo aqui em primeira pessoa, não é regra para ninguém, mas para mim também foi muito importante deixar de ocupar esses espaços para me reconectar com determinadas pautas da cidade, do nosso País. Quando, em 2014, eu deixei ser deputada federal com os meus 500 mil votos, as pessoas dizendo que eu estava louca. ‘Nossa, nunca mais tu vai te eleger a nada, tua vida política vai acabar’. E eu lembro que as pessoas achavam que era um cálculo. ‘Ah, ela quer ser prefeita’. Eu nem concorri em 2016. Eu disse: ‘Não, gente, eu preciso voltar a ir na feira’. ‘Pode não ser importante para vocês, mas, para mim, para minha compreensão sobre a dinâmica política, sobre a dinâmica da sociedade, é importante’. Tinha acabado de acontecer 2013. Eu sabia que tinha coisas mudando e que eu, lá de Brasília, com os meus limites, tem gente que não tem esses limites, para mim já era difícil eu conseguir entender, captar, sentir o que estava rolando na sociedade.
Então, um, esse lugar que eu estou hoje não é um lugar desconfortável para mim. Para mim, foi infinitamente bonito poder presidir um instituto que coordenou o primeiro abrigo de mulheres na enchente. E eu pude fazer isso porque eu estava nesse lugar, no terceiro setor, na sociedade, embora, eu repito, eu acredite nos partidos e na disputa política.
Eu sou a única pessoa que disputou dois segundos turnos contra o bolsonarismo. Quando as pessoas falam da minha decisão de não estar nas eleições de 2022, elas ignoram, tem muito de machismo nisso, a quantidade de pessoas que não estiveram em 2020. Eu enfrentei 18 no segundo turno e enfrentei o segundo turno dos mais violentos da história do Brasil contra o bolsonarismo em Porto Alegre em 2020. Então, foram dois segundos turnos que eu não desejo para o meu pior do inimigo, 18 e 20. E isso traz muitos impactos, impactos familiares, eu sou alguém que tem responsabilidade, minha família sempre foi minha parceira na construção da minha militância. Nesse mundo em que os homens ocupam os espaços de poder, a gente naturalizou que as pessoas que se relacionam com as pessoas nos espaços de poder têm que bancar tudo, porque quem são essas pessoas? São as mulheres. É fácil de entender. Eu também achei que, em 22, eu devia a responsabilidade com a minha família, com o que a minha família viveu junto comigo e comigo mesma. A gente tem essa cultura de heroísmo, ‘Ah, eu aguento tudo’, ‘Eu mato a cobra e mostro pau’. Eu tive impactos seríssimos na minha saúde física. Não é fácil, eu posso garantir para vocês. Eu fui alvo cotidiano e sigo sendo desde 2014 da extrema-direita brasileira. Não é fácil andar na rua 24 horas por dia sem saber de onde vem agressão, não é fácil entrar na escola da filha e ser fotografada, não é fácil querer criar uma criança perguntando porque que as pessoas não gostam da mãe dela, sendo que nenhuma das razões para elas não gostarem são razões reais. Se fossem, seria mais fácil. Então, assim, essas foram as razões também de eu não estar ali. Tinha os meus debates partidários, tinha um desejo meu de ser responsável, tinha uma necessidade minha de restabelecer minha saúde física e mental. Daí eu acho que também é bom que as pessoas aprendam a ouvir sobre isso, enquanto as pessoas ainda estão vivas e saudáveis. O que as mulheres brasileiras vivem na política não é certo, não é o preço que os homens pagam. Não é certo a Carol Dartora ter sido ameaçada 43 vezes nos últimos dias, não é certo a Áurea Carolina ter sido ameaçada, não é certo a Tarília (Petrone) andar de carro blindado, não é certo a Estela de Caxias ter chegado ao limite que a colocaram, não é certo a Daiana, a Bruna e a filha da Bruna serem ameaçadas. Esse não é um trecho do jogo político. Nós não somos fracas, isso não é a política, pelo menos não deveria ser. Se a gente naturalizou que isso é, algo de errado há.
Agora, eu também tenho só 43 anos. Então, eu também sou tranquila com relação a isso. Eu tenho muita responsabilidade com o nosso campo político e eu acho que se, em outras eleições, o meu nome for o nome que conseguir combinar a aliança unitária necessária para que nós tenhamos condições de enfrentar as eleições, eu estarei à disposição como eu sempre estive. Não foi o caso em 24 e em 22 também. Em 22, eu cheguei a dizer isso, se eu for imprescindível, eu estarei na eleição, mas as forças de esquerda fizeram um outro arranjo e acharam por bem que eu não estivesse, tal qual 2024. E está tudo certo. Para mim, está tudo certo. Enfim, esse é um debate que a gente vai ter que fazer, porque eu defendo, como defendi em 24, que a gente faça de maneira ampla, compreendendo que os nossos pontos de conexão com a sociedade talvez passem pelos nossos partidos e, eu vou reafirmar aqui, porque muitas vezes quando eu critico a lógica dos nossos partidos, as pessoas… Esses dias eu ouvi de alguém: ‘É que a gente é diferente, eu sigo acreditando nos partidos’. Negativo, eu sigo acreditando nos partidos e é por isso que eu quero que eles sejam fortes e não estruturas enfraquecidas, em frangalhos, diante de uma sociedade que não se vê representada. Justamente por eu saber que os partidos são imprescindíveis é que eu penso que os nossos partidos precisam se reconectar e conectar da maneira mais aberta possível com os setores da sociedade que se identificam com eles. Por isso que eu defendi em 24 que nós tivéssemos prévias, que inclusive pudessem incluir nomes como o da Juliana Brizola, que está nesse grande campo democrático que nós defendemos. Então, acho que a gente tem que também estar aberto para, em 2026, saber dos limites que nós enfrentamos nos últimos anos e tentar, de forma muito fraterna, que é também um valor que eu atribuo ao nosso campo, nos aproximarmos da população para termos competitividade eleitoral.
Tu falou um pouco do impacto pessoal que a extrema-direita teve na tua vida. A gente comentava na redação que, em comparação com 2020, essa eleição foi menos violenta do que esperávamos. Mas talvez tenha sido um sentimento de que foi tão violento em 2020 que acabamos tomando como normal. Foi violenta, mas menos na camada visível. Não tivemos caminhão de som circulando pela cidade falando sobre comer carne de cachorro, por exemplo. Mas o que eu queria te perguntar é como isso te afetou psicológica e fisicamente?
Manuela d’Ávila: Eu acho que é importante que a gente fale sobre esses níveis de violência naturalizados nas eleições, porque a gente subestima o quanto a direita no Brasil e no mundo pode ser violenta e que os compromissos da direita com a democracia, que eles gostam de bater no peito e dizer que é uma invenção deles, eles são sempre compromissos, digamos assim, subjugados à possibilidade da vitória deles. Então, o fechamento democrático no Brasil foi proporcionado por quem? Pelas forças da direita quando não conseguiu impedir o avanço de reformas progressistas. O golpe contra a presidenta Dilma, o impeachment, acontece em qual momento? O lawfare, a prisão do presidente Lula acontece em qual momento? Então, a violência na campanha de 2020 foi a necessária para que eles ganhassem e a violência na campanha de 24 foi a necessária para que eles ganhassem. A escala de violência deles é relacionada aos interesses deles e não à dignidade ou respeito com cada uma de nós. É por isso que a gente deveria tomar como um sinal de alerta a violência que aqueles despejam contra as nossas mulheres na esfera pública, porque isso tem a ver com o desenho de sociedade que eles têm para o futuro, com o desenho do papel da mulher. Por que essas mulheres que estão na linha de frente, não é só da política, na advocacia, na sala de aula, são objetos central do ódio da extrema-direita? Não é só no Brasil, no Brasil e no mundo. Tem muitos estudos. Tem uma pesquisadora de Stanford, Alice Evans, que estuda basicamente isso, a diferença comportamental de mulheres e homens no globo a partir de determinadas conquistas das mulheres no espaço público, academicamente, nos concursos. Enfim, com vários parâmetros de aferição. Eu acho que isso é importante a gente saber. O que eles fizeram contra mim em 2020 foi o necessário para que eles ganhassem a eleição, porque eles não têm compromisso nenhum com a dignidade humana. Eles não têm compromisso nenhum com a democracia. Eles têm compromisso com os interesses deles e, numa fase, numa etapa da luta tão aguda como a que a gente está vivendo no Brasil e no mundo, eles já demonstraram que não estão nem aí para a democracia e para e para a defesa da dignidade humana.
Com relação a mim, sabe, é algo que eu tenho também tomado para mim a tarefa de falar. Por quê? Porque eu entendo como é difícil para quem tá no exercício do mandato se abrir com relação à vulnerabilidade. Por quê? Porque falar sobre a violência é se recolocar na situação de violência. Não por nada, no Juizado de Infância, a gente faz com que a criança fale uma só vez, porque a gente entende o peso de falar sobre a violência mais de uma vez na constituição dos traumas. Mas acontece que eu me dei conta, teoricamente, que eles nos colocam numa situação em que a gente perde em todas elas. Porque, assim, tu é ameaçada todos os dias de morte. Aí tu fala sobre isso, aí tu vira alguém monotemático, como canta a Pabllo Vittar naquela música com o Emicida: ‘Permita que eu fale não as minhas cicatrizes’. Aí tu vira tua cicatriz falando, porque tu passa o tempo todo falando sobre isso. Aí a pessoa já te acha uma chata, porque tu para de falar de economia, para de falar de arcabouço fiscal, para de falar da forma como a polícia age, para de falar de moradia. Mas, porra, tu é ameaçada de morte todos os dias. Tá, aí tu não fala, tu não fala porque tu quer falar de moradia e tal, só que aí tu adoece, porque tu tá sendo ameaçada de morte, a tua filha ou os teus filhos estão sendo ameaçados de morte, tu tem que mudar de estado. Como é que tu coloca uma mulher deputada no Programa de Proteção à Testemunha? Tu tira ela do estado? Teve uma vez que um policial me disse: ‘A senhora cuide com quem lhe abraça’. Mas, pelo amor de Deus, eu sou política, as pessoas têm que me abraçar. Entendeu? Na campanha de 2020, eu tinha medo das pessoas indo falar comigo e não era só o covid, eu tinha medo porque o volume de ameaças de morte que eu tinha recebido nos últimos anos fazia eu não saber se tu estava chegando em mim para me dizer ‘Nossa, tamo junto’, porque foi uma campanha lindíssima, ou se tu vai cochichar no ouvido ‘Te cuida, tu tem três dias’.
Isso aconteceu?
Manuela d’Ávila: Isso aconteceu dezenas de vezes. Várias vezes. Esses dias aconteceu com a Atena [Roveda, vereadora eleita para 2025-2028] aqui no centro de Porto Alegre, é uma prática que não é incomum. Às vezes, as meninas que trabalhavam na minha comunicação, para me proteger, apagavam uma ameaça, porque elas olhavam ali e não aguentavam mais. Elas não aguentava mais ler as ameaças a mim.
Como é ouvir alguém cochichando no teu ouvido uma ameaça de morte?
Manuela d’Ávila: Cara, ser ameaçado por um inimigo invisível é uma forma de tortura muito sofisticada, entende? Muitas pessoas falam comigo, por exemplo, que me encontravam no supermercado, chegavam pelas costas para falar comigo e que eu pulava. E eu comecei a me dar conta disso. Teve um dia no mercado, era domingo, era 9h da manhã, eu estava comprando as coisas para o almoço, estava com a minha filha, e uma mulher começou a falar comigo os negócios de Jesus, e não sei o quê e dedo na minha cara. E eu falei: ‘Cara, não vou deixar ela falar assim na frente da minha filha’. Eu fui reagir, quando eu reagi, eu olhei para a minha filha e a cara dela de apavorada com a minha capacidade de reação, fez com que fosse pior do que ela ouvir a mulher gritar contra mim. Entende? Então, assim, eles nos colocam num lugar que não existe saída boa. Porque também, dizer assim: ‘Então, quando não concorre, deu a vitória a eles’. Vão à merda. Nenhuma de nós quer ser nome de rua, nenhuma de nós quer ser heroína. A gente quer conseguir transformar a política. Então, eu acho que isso tem muito a ver também com a lógica masculina de exercício do poder, sabe. Eu sempre brinco da estátua. No fundo, no fundo, todo mundo quer virar uma estátua. Eu não quero, eu quero ver a minha filha crescer, sabe.
Tem uma frase que é atribuída ao Marighella. Eu gostei muito que no filme com o Seu Jorge, com o Wagner, eles ressignificaram essa frase, porque eu morria de medo como ela estaria no filme porque eu detesto essa frase. O Marighella teria dito: ‘Eu não tive tempo para ter medo’. Cara, então eu sou uma desocupada, porque eu tenho medo por mim, eu tenho medo pela minha filha, eu morro de medo pelas minhas amigas que vieram depois de mim. Se eu pudesse, eu protegia todas elas desesperadamente, entende? Então, não é sobre não ter medo, é o contrário, é sobre sentir medo e seguir lutando apesar de um medo enlouquecedor, paralisante. A gente olha e fala: ‘Cara, mas eu não posso parar’. Por quê? Porque não é facultado a mim deixar de lutar mesmo com medo, porque também esse lugar do superpoder… A Marina (sócia de Manuela) esses dias estava lendo um texto e disse: ‘A Manu não quer mais ouvir que ela é forte, ela vive debatendo isso’. Por quê? Porque esse lugar não é sobre mim, é óbvio que eu sou muito forte, eu sou forte como poucos homens são fortes, dos que eu convivi minha vida inteira e, se eles soubessem a quantidade de ameaças que eu já li, que vocês sequer cogitaram em hipótese, dos medos que eu já senti, vocês provavelmente passariam o dia me enviando mensagem de solidariedade, como acontece quando eu torno pública uma, ou quando a Talita torna pública uma, ou Daiana torna publicar uma, eu não sou exclusividade. Mas essa ideia da força dá uma ideia de um atributo diferente. ‘Aí, ela é diferente’. E aí eu comecei a me revoltar quando as mulheres me diziam: ‘Aí, cara, eu te admiro tanto, tu é muito muito mais forte do que eu’. E eu pensava: ‘Cara, tá aí, parece que é incomum, quando na verdade a política que a gente defende é das pessoas comuns, é que as mulheres comuns, mães, donas de casa, professora, líder comunitária possam se olhar naquele lugar e não olhar no lugar de pensar ‘aquilo não é para mim’. Então, para tentar resumir a ópera, atinge em muitos lugares. Me atingiu em lugares emocionais, físicos. Teóricos me fizeram refletir sobre o tipo de organização política que a gente tem, sobre as razões pelas quais essas violências são naturalizadas, são invisibilizadas, sobre a forma como nós tratamos da rejeição às mulheres e aos homens. Tu vê, o Lula, a quem eu defendia em 2022 e defenderei em 2026, é um líder com uma rejeição altíssima e nós sempre soubemos que tínhamos que defendê-lo, porque nós sempre soubemos das razões políticas da rejeição a ele. Mas a rejeição das mulheres é o quê? ‘Ah, mas Maria do Rosário tem uma rejeição altíssima’ Sim, o Luiz Inácio também. Qual é a diferença entre os dois? Por que nós pessoalizamos a rejeição dela e não pessoalizamos a rejeição do Lula? Porque o corpo do Lula é um corpo político, é um corpo de homem, e o corpo dela é para ser visto como não político. Então, fez eu elaborar muito mais sobre tudo e também entender essa dimensão de gênero com uma outra pegada.
A gente falou da Manu que usou uma bonequinha na sua primeira campanha. Agora que tu está saindo do partido que tu sempre militou, qual foi uma coisa que te mudou, que te transformou, nesses 25 anos?
Manuela d’Ávila: Cara, com certeza, com certeza, assim, disparado, a coisa que mais me transformou politicamente e pessoalmente, mas sobretudo politicamente, foi a maternidade. Porque eu não tinha a dimensão do que é o trabalho reprodutivo na sociedade como eu tenho hoje, e talvez muitas vezes eu tenha subestimado. Então, quando eu me elegi há duas décadas, eu não era a Manuela que olha o mundo a partir das questões de gênero e raça como eu sou hoje. Eu continuo uma mulher marxista, que acredita que a chave principal de leitura da sociedade é a questão de classe, mas eu compreendi que nem todos os corpos dentro da classe trabalhadora são iguais. Então, eu rompi com certas visões dogmáticas que eu tinha sobre raça, sobre o Brasil, sobre imaginar um Brasil menos violento do que é, e eu compreendi a dimensão do trabalho reprodutivo na estruturação do capital, o que eu subestimava.
E qual é a avaliação dessas eleições de 2024 e que lições tu acha que se pode tirar delas para as próximas?
Manuela d’Ávila: Apesar de ter só 43, eu sou de um tempo em que a gente sempre saia do grande para o pequeno, da conjuntura nacional, internacional, para chegar no local. E eu acho que a gente tem feito análises muitas vezes reducionistas sobre o tema das eleições municipais. Vê bem, a gente vive no mundo com uma crise sem precedentes, o povo palestino está sendo dizimado, as crianças estão sendo exterminadas, as mulheres estão sendo executadas e não existem organizações multilaterais capazes de parar o Estado de Israel. Esse é um dos exemplos do mundo que a gente vive. Nós enfrentamos em Porto Alegre uma catástrofe climática que hoje o povo de Valência vive na Espanha, com números ainda mais assustadores, numa velocidade ainda maior do que foi a tragédia do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre, para tocar em uma outra crise, a climática. O fluxo de pessoas no planeta, de refugiados das guerras, de refugiados do clima, a maneira como os países lidam com esses fluxos migratórios, a crise do mundo do trabalho em transformação, um trabalho que cada vez se trabalha mais e se tem menos dignidade, a extrema-direita e ascensão em diversos países. Então, às vezes, eu acho que nós abstraímos essa realidade internacional para pensar o que foi o processo que o Brasil viveu na última década, desde o não reconhecimento da eleição da Dilma pelo Aécio, passando pelo golpe, pela prisão do presidente Lula, chegando no governo Bolsonaro e na eleição do Lula em 22. Uma eleição que nós vencemos uma frente amplíssima por uma margem pequeníssima. Então, eu acho que nós tiramos interpretações apressadas do resultado de 2022. Por exemplo, em Porto Alegre se tinha uma leitura de que o Lula ganhou. Ok, o Lula ganhou, mas quem ganhou? Qual Lula ganhou. Ganhou esse esforço imensurável de todo mundo, diante do extermínio de 700 mil brasileiros na pandemia, que defende a democracia com bases muito largas. Então, eu acho que a gente subestima a dimensão do buraco em que a gente está metido, o que representa a eleição do presidente Lula, para pensar na eleição municipal. Acho que tem uma subestimação, eu não estou falando de A ou B, mas de forma meio generalizada, de todos nós. Quando a gente pensa a nossa realidade, eu acho que é o natural olhar para cá e abstrair, porque isso é um esforço mais coletivo mesmo para pensar a realidade.
De alguma forma, também se questiona como o Melo venceu após a enchente, como se fosse só essa a discussão.
Manuela d’Ávila: Exatamente, como se todas as qualidades e os defeitos estivessem focados nos candidatos. Esses dias a minha sogra mandou uma mensagem e disse: ‘Pô, mas ninguém mais vai querer concorrer assim, porque quando o cara ganha não tem talento e nem mérito nenhum, aí quando perde a culpa é toda dele’. Tu coloca o super papel do indivíduo na história. Isso tem tudo a ver com o tempo que a gente vive, dessa maximização dos indivíduos, das redes sociais. Óbvio, o neoliberalismo já era isso do ponto de vista ideológico, eu reflito mais do ponto de vista da disseminação mais coletiva mesmo, social, da naturalização disso. Então, eu acho que a gente fez o melhor que poderia fazer com a forma que nós lemos a realidade em 2024. Nós ficamos felizes com a condição de uma chapa de esquerda, que é uma vitória imensa, de fato, abstraímos a necessidade de amplitude. Deveríamos, na minha interpretação, ter buscado setores mais largos. Acho que minimizamos o peso de uma dimensão de transformação do tecido social que nos apoia e acho que fizemos uma disputa aquém do necessário antes das eleições no tema da enchente, quando nós, num certo sentido, compramos a ideia de que não deveria se politizar o debate sobre as consequências da enchente, quando tudo é político. A emergência climática é política, é um tipo de mundo que nós vivemos que colapsa o planeta e põe a espécie humana em ameaça. É política a decisão de destruir a estrutura pública para conseguir dar conta do sistema de proteção da cidade. Não por nada estava na pauta de 2020 de uma forma assustadoramente premonitória. As pessoas diziam assim: ‘Nossa, parece uma premonição’. Não, o único mérito que eu tinha foi ouvir os trabalhadores do DMAE, do DEP, quem constrói a cidade, e acreditava no papel do estado para a proteção da cidade. Mas pensa que tudo isso, como diz o Melo, era inevitável. Quem esteve na linha de frente, como eu estive, o Instituto esteve nos abrigos, sabe que nós não tínhamos assistência social na cidade de Porto Alegre para dar conta. E as nossas assistentes são extraordinárias, não estou falando sobre elas. Nossa rede de assistência é extraordinária. Não tinha gente, pessoal, efetivo, porque todos os serviços públicos foram destruídos, todos, todos. A saída para o abrigo, a volta para casa, o acompanhamento das pessoas, tudo foi feito por voluntários. Então, quando o povo dizia ‘é o povo pelo povo’, o povo tinha razão não na chave que esses decrépitos da extrema-direita diziam, é o povo pelo povo porque eles destruíram o estado, porque eles abandonaram o povo à própria sorte. Porque os ricos, mesmo na tragédia, conseguem ir pra praia, como sugeriu o Melo. E é o povo que, ainda agora, paga as consequências da enchente.
Então, eu acho que é uma situação muito difícil a que a gente se encontra, é uma ofensiva muito grande da direita. Por isso que pra mim é tão importante que a gente volte, vire a chave e não faça leituras erradas. Por exemplo, tem uma leitura corrente que diz que nós precisamos refutar uma certa esquerda que disputa valores. Como assim? A gente vai ficar na chave de nos defender dos falsos valores que a extrema-direita diz que nós defendemos? Eu quero disputar valor, porque eu não acredito que o povo brasileiro não seja solidário como a extrema-direita faz parecer. Eu vi na enchente. Eu tenho encontrado muitas crianças trabalhando, é algo que fez eu ser quem eu sou. Eu fui uma criança que via isso acontecer e não me conformava, e é algo que eu realmente não imaginei chegar aos meus 40 anos vendo, com tudo que a gente já fez no Brasil nos últimos anos. Mas, aí, eu me lembrei que, durante aquelas semanas de maio, eu cheguei dos Estados Unidos exatamente na enchente em Porto Alegre, a gente via as pessoas ganhando comida na rua. Por quê? Porque essa solidariedade que abraçou Porto Alegre e o Rio Grande do Sul faz parte do que nós somos. Aí a gente vai acreditar que o povo é um contra o outro que nem a extrema-direita diz? Eu quero disputar esse valor. Eu não acredito que o povo de Porto Alegre é a favor de espancar a criança gay, eu não acredito. Eu acredito que as mães dessa cidade, mesmo as que não entendem a orientação sexual dos seus filhos, têm medo quando veem que o seu menino é mais vulnerável no ambiente escolar e querem que ele seja protegido. A gente vai deixar de falar sobre isso? A gente vai acreditar que o nosso povo tem a cara desses líderes horrorosos, violentos, que defendem a barbárie? Não, então ao contrário, eu acho que a gente tem que retomar a disputa dos valores de quem nós somos. Nós somos aqueles que acreditamos na solidariedade, nós somos aqueles que sentimos a dor do outro, que, quando vemos uma pessoa com fome, nos indignamos. Por que nós somos quem nós somos? Qual é a tua história? Eu sei a minha, eu sei a história da Manuela que era uma menina de classe média e que se engajou na política porque não acreditava que as outras crianças não tinham casa para dormir. Então, esses somos nós e eles tentam falar por nós quem não somos. Porque nós reconhecemos todas as famílias somos contra as famílias? Não, eu sou a favor da minha família, na qual o meu enteado é criado como filho pelo valor mais maravilhoso de todos, que é o amor, não é o sangue, não é o patrimônio. Então, a gente não pode cair nessas explicações simplistas. Na escolha de candidato, era muito comum a gente ouvir: ‘Não, mas não dá para ser uma mulher, porque o povo…’ Cara, será que é sobre isso ou será que é sobre a nossa falta de vontade de bancar os debates que têm que ser bancados. O que a eleição dos nossos parlamentares indica? O que ela indica? Não é só renovação geracional. A renovação geracional é importante, evidente que é. Mas, se ela não é provida de renovação política, de sentido, ela não é renovação. A gente fala de honrar quem veio antes. A gente aprende isso em qualquer lugar, dentro de casa com os mais velhos, nas religiões, nos povos originários com a ancestralidade, nós feministas com as que vieram antes, nós sempre saudamos os que vieram antes. Então, a renovação não é etária, ela é política. E o nosso povo de esquerda deu sinais. A bancada que elegeu é diferentona, diferentona desse padrão, diferentona no bom sentido eu estou falando. Tem um sinal como teve em 20. Em 20, a gente fez aquela onda e veio a bancada antirracista. Agora, tem a Natasha e a Atena, tem a Grazi, tem o Giovani com o mandato coletivo, a Juliana, é uma bancada que expressa um outro sentido. Opa, tem algo acontecendo aqui. É muito mais do que a mera reprodução do desenho dos partidos. Talvez seja até o sinal de que, sim, ‘nós estamos com vocês’.
Eu sempre cito essa frase do Neruda que é a frase que eu mais gosto, cara, que é foda um poeta comunista com o pensamento dialético. O soneto mais bonito dele, um soneto de separação, de amor, termina com ele dizendo: ‘Nós dois, os dois de então, já não somos mais os mesmos’. Então, talvez a eleição da nossa bancada seja a expressão dessa frase do Neruda. Nós continuamos juntos, mas nós não somos mais os mesmos. Eu acho que é um sentido para a gente pensar.
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