Um corpo que cai e uma sociedade que afunda
A polícia que arremessa (a) gente no precipício
Eliana Alves Cruz, ICL
A cada nova tragédia envolvendo crueldade policial é só puxar a gaveta e sacar a nota oficial: “Um caso isolado… repudiamos veementemente… as imagens serão analisadas… serão retirados das ruas…”. Na outra ponta aparecem rostos, quase sempre negros, mas também alguns brancos, todos periféricos e chorando a dor de um irmão, um sobrinho, um filho… no meio estamos nós, prisioneiros e prisioneiras de um Estado — vamos dar o nome das coisas — assassino.
A nota oficial pode contar a história da carochinha que ela quiser, mas o desfile de horrores que todos os dias passa diante dos nossos olhos revela que caso isolado é o da força armada protege ao invés de devorar quem deveria proteger.
Não se espera nada de quem está totalmente fora da lei e das regras mínimas de civilidade. Já dos agentes e operadores desta mesma lei, dos operadores da segurança pública espera-se, no mínimo, preparo para lidar com os primeiros a ponto de não que se transformem neles.
Tudo isso já sabemos, é chover no molhado. O que também sabemos, mas estamos evitando enfrentar é que, além de não ser caso isolado, um bocado de gente, um pedaço gigante deste país, aprova o policial que arremessou o jovem da ponte, o sargento aposentado que atirou em crianças que apenas queriam avisar de um problema em seu carro, o outro agente a paisana que atirou nas costas do jovem que furtou quatro pacotes de sabão, o que não quis pagar o moto táxi e matou o jovem motorista que reclamou a queima-roupa em plena luz do dia… tem muita gente aplaudindo.
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Uma quantidade indecente de brasileiros e brasileiras naturalizou a tal ponto o terror, que até oferece um dos bens mais preciosos de uma democracia — o seu voto — em quem o promove, elogia, exalta e perpetua. São multidões que se enxergam como vítimas dos “vagabundos” (e colam este adjetivo com critérios aleatórios e não comprováveis em qualquer pessoa que lhes pareça suspeita).
Na esteira da sequência de barbáries promovidas pela polícia de São Paulo nos últimos tempos, tivemos que assistir a inacreditáveis discursos de minimização e até justificativa de tais atitudes por parte de políticos igualmente eleitos pela mesma multidão que odeia acima de tudo. Simplesmente cultiva o ódio com dedicação e afinco.
A sociedade civil organizada se mexe. São convocados atos, muitas organizações apoiam vítimas e seus parentes, pressionam autoridades e a mídia hegemônica a não atenuar e, principalmente a não esquecer, um histórico de violência policial que envenena a possibilidade de liberdade e vida nas periferias há décadas, séculos… e joga da ponte a chance de qualquer paz e conciliação.
O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, afirmou “ações isoladas como essa não podem denegrir (sic) a imagem de uma instituição que tem quase 200 anos de bons serviços prestados para a nossa população no estado de São Paulo”.
Declarações e notas oficiais quase sempre são mais um tiro nas costas de cada um e cada uma de nós. Nem entro aqui nas escolhas semânticas de alguém descompromissado com os marcos civilizatórios da linguagem no século 21. Apenas volto na linha desses dois séculos da polícia criada para proteger terras, bens e cidadãos de bem em São Paulo ou em qualquer lugar deste território nacional. Os bons serviços prestados excluem a “raia miúda”, a gente preta, os que se enquadravam na “lei da vadiagem” apenas por existir.
Desde a escravidão até as grandes chacinas dos anos 90 do século 20, desaguando nas imensas mortandades não registradas e não computadas há que se perguntar: Bons serviços prestados a quem, cara pálida? Mas o secretário Derrite acredita piamente no que disse e aí reside o problema.
Paradoxalmente, olhando este mesmo histórico ancestral de arbitrariedades mortíferas, o número de corpos até diminuiu. A sensação geral de ladeira abaixo vem do fato de que, como disse o ator Will Smith sobre o racismo, os atos nefastos dos agentes da lei estão sendo filmados.
Ninguém arremessa uma pessoa de uma ponte, por menos alta que ela seja, sem a intenção de ferir gravemente ou eliminar. O impulso alegado pelo tal policial é guiado por uma pulsão grave de morte. Sem contar o símbolo de desprezo e humilhação. O córrego raso, sujo, onde ninguém se banha por vontade.
E de fato isolado em fato isolado, é mais um corpo que cai e nos carrega junto como sociedade. A pergunta que se faz é sobre qual será o próximo a tombar nesta engrenagem aniquiladora sem fim. No entanto, o medo que se sente de ser a próxima vítima só arrepia a espinha dos mesmos alvos vulneráveis. Os outros? Estes continuarão infinitamente a dizer que “os fatos serão rigorosamente apurados”.
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