A Lei da Ficha Limpa pode ser destruída pela PEC 89/2003
Publicado em 15 Ago, 2010 às 12h15
A Lei da Ficha Limpa, na prática, deverá ter curta existência.
O Congresso Nacional dá com uma mão para tirar com a outra.
Primeiro, aprova uma lei que cria severos efeitos concretos contra os políticos condenados judicialmente, para, logo depois, por outra lei, engessar a atuação das autoridades que os poderiam processar ou julgar.
Era mesmo estranho que políticos potencialmente sujeitos aos impedimentos da Lei da Ficha Limpa (muitos já condenados em 1ª Instância judicial) quisessem aprová-la.
Pois é. O Senado acaba de aprovar a Anti-Lei da Ficha Limpa – a PEC nº89/2003, amarrando definitivamente as mãos de Juízes e Promotores de Justiça.
Trata-se da mais pesada ameaça contra a independência funcional (garantia de isenção) de Juízes e representantes do Ministério Público, até aqui enfrentada.
As tentativas de edição, na última década, das chamadas Leis da Mordaça e da Algema contra Promotores de Justiça atuantes na apuração de crimes e atos de improbidade de agentes políticos não chegaram a esse ponto.
É que membros do Judiciário e MP, pelo texto original da CF/88, depois de passarem pelo estágio probatório (vitalícios), só podem perder o cargo por sentença judicial transitada em julgado, em caso de crime incompatível com a função, improbidade administrativa, exercício da advocacia, atividade político-partidária, recebimento de honorários ou custas, cumulação ilegal de funções, abandono do cargo. Outras condutas e faltas funcionais, aliás, não ficam sem sanção, passíveis que são de advertência, censura, suspensão, remoção.
Entretanto, se aprovada a PEC 89, poderão ser demitidos por deliberação do órgão a que estão sujeitos (Tribunal ou Conselho Superior, conforme o caso), em processo administrativo. E o pior, se antes se exigia, para a demissão, a prática de condutas tipificadas de forma expressa e precisa na CF ou na Lei Orgânica, pela PEC 89 bastará a caracterização de procedimento incompatível com o decoro de suas funções (conduta aberta a julgar-se ou não enquadrada conforme o critério subjetivo de quem estiver no comando institucional).
Juízes e Promotores, por conta da natureza de seu trabalho, já vivem permanentemente na corda bamba. De se imaginar como ficarão inseguros se e quando aprovada a PEC 89.
Coragem nenhuma será suficiente para fazer um Promotor instaurar um inquérito contra um prefeito do mesmo partido do governador.
A civilização levou milênios para concluir que certas autoridades precisam de tais prerrogativas, como condição indispensável para a correta atuação. Tanto é assim que não há país civilizado na história contemporânea que não adote os mesmos princípios. O legislador brasileiro, todavia, sem qualquer suporte científico, e numa penada, arvora-se em asseverar o contrário.
A sociedade brasileira, em razão dos sucessivos governos autoritários que enfrentou, aprendeu infelizmente a se omitir. Daí, entre as autoridades públicas, quem quer fazer não tem alçada e quem tem alçada não quer fazer.
Só fortes e estáveis prerrogativas do cargo, especialmente a independência funcional, a inamovibilidade e a certeza de que a demissão não ocorrerá sem motivo inequivocamente sério e justo podem assegurar que determinada autoridade não sofrerá represálias externas ou de sua própria corporação se tiver que perseguir poderosos.
Não é sem motivo, então, que, no país, só se viram poderosos agentes públicos processados, julgados e condenados por atos de improbidade, tanto na esfera civil como na criminal, depois da CF/88, que não pode ser agora alterada, nesse ponto, sob pena de danoso e lamentável retrocesso.
A história recente do país bem demonstrou no que deram atos ditatoriais como o que se pretende instituir.
Airton Florentino de Barros, Procurador de Justiça em São Paulo