A capa da Veja sobre José Dirceu na Papuda
Para comprovar suposta ilegalidade das regalias que gozaria José Dirceu na Papuda, Veja cometeu ilegalidade ainda maior. Detentos não podem ser fotografados, o ato configura abuso de poder, invasão da privacidade e, principalmente, um torpe atentado à ética jornalística
Paulo Moreira Leite, Istoé
A reportagem da Veja sobre a vida de José Dirceu na Papuda, sem apresentar um fato concreto, sem conferir um boato junto a quem poderia confirmar ou desmentir o que se pretendia publicar, é aquilo que todos nós sabemos. Não é séria nem respeitável.
Não passa de um esforço redundante para acrescentar uma nova camada de boatos (no juridiquês da Papuda eles se chamam “supostas irregularidades noticiadas”) para prejudicar os réus da AP 470, esforço redobrado depois que eles conseguiram vitórias importantes, como o reconhecimento do erro no crime de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Quem está sendo chamado a dar explicações e prestar esclarecimentos, na verdade, é o Ministério Público do Distrito Federal.
Num documento assinado pela Associação de Servidores do Sistema Penitenciário do Distrito Federal, seis integrantes do MP – todas são mulheres, por concidência — são acusadas de atuar contra a ordem na sistema prisional.
O pedido foi encaminhado ao Conselho Nacional do Ministério Público, o órgão responsável por examinar, julgar e punir desvios de comportamento por parte dos procuradores.
A acusação diz que elas estimulam a “publicação de fatos ou atos” que perturbam a “paz prisional ”.
A base é o artigo 198 da lei de execução penal, que diz que “é proibido ao integrante dos órgãos de execução penal e ao servidor, a divulgaçao de ocorrência que perturbe a segurança e a disciplina dos estabelecimentos …”
Conforme o documento, as procuradoras ajudam a promover a desordem entre os presos e suas famílias através da reprodução, no site do próprio Ministério Publico, de rumores e boatos que não foram comprovados nem confirmados. Através disso, conclui-se pela leitura do documento, cria-se um ambiente artificial de agitação e descontentamento entre a população encarcerada.
Sabemos como isso começa. Sem cometer a deselegância de perguntar quem assopra essas coisas (Fatos? Hipóteses? Delírios?) para jornalistas, estamos falando de suspeitas e hipóteses divulgadas por jornais e revistas com a técnica marota de sempre.
A partir de depoimentos anônimos, verbos no tempo condicional, fontes desconhecidas e outros recursos típicos de quem sabe que pode estar embarcando numa fria, publica-se uma reportagem recheada de (Fatos? Hipóteses? Fantasias? Delírios? ) que seriam graves se fosse demonstrado que são verdadeiros.
Em seguida, essa reportagem é reproduzida no site do ministério publico do DF – mais uma vez, sem qualquer checagem para confirmar sua veracidade.
Numa terceira etapa, estes “fatos” — imaginários ou não — aterrisam em documentos oficiais e são usados para prejudicar os réus e pressionar as autoridades do sistema prisional.
Em suas petições, o juiz Bruno Ribeiro, da Vara de Execuções Penais, cobra investigações para apurar “supostas irregularidades noticiadas”, definição cujo sentido desafia os estudiosos do direito e da língua portuguesa.
Convém não esquecer uma realidade elementar. Tudo o que é um suposto ser também é um suposto não-ser, ensina-se no jardim de infância da filosofia.
Se as irregularidades são apenas supostas, podemos supor, pela simples lógica, que elas também podem ser “regularidades “ – e, talvez, nada de errado esteja acontecendo, como se poderia pensar, supostamente.
O único elemento consistente no pedido de investigação reside no fato de as “supostas irregularidades,” terem sido “noticiadas. ”
Uma notícia, como se sabe, pode ser produzida a partir de uma apuração cuidadosa e responsável. Mas também pode ir para o papel somente porque lá pelas 19 horas um editor de jornal clicou “salvar” e depois “enviar” antes de mandar um texto para o leitor. O que isso tem a ver com Direito, com a Justiça, com a Liberdade de cada um? Nada.
Jornais e revistas erram todos os dias. Erram sem querer e erram por querer. Podem ter interesse na verdade, mas também ganhar com a mentira. São empresas comerciais e também atuam politicamente.
Têm interesses privados nem sempre transparentes, agendas ocultas e um padrão cada vez mais frágil de proteger.
Também contam com a proteção de um regime legal que não estimula posturas responsaveis. As vítimas de seus erros – e também falsidades – não tem direito de resposta. Empresas de faturamento bilionário são levadas a pagar – quando isso acontece – multas irrisórias.
Um exemplo recente. Depois de fugir durante oito anos de suas responsabilidades pela divulgação de uma denúncia irresponsável sobre contas de ministros no exterior, a mesma Veja, que agora denuncia Dirceu, está sendo chamada a pagar uma multa de R$ 100 mil para a família de uma das vítimas, Luiz Gushiken.
Lê-se na sentença assinada pelo desembargador Antonio Velinils que a revista “não tinha prova consistente” para dizer o que disse. Fez uma reportagem sem oferecer “um único indício de confiança.” Em vez de assumir uma postura prudente, como a situação recomendava, preferiu “insinuar que as informações eram, sim, verdadeiras.”
Mais tarde, quando o caso chegou a Justiça, a revista tentou justificar-se sem conseguir apresentar um único argumento aceitável para explicar o que fez, usando de subterfúgios e truques de linguagem, construiu uma “falácia de doer na retina,” acusa o desembargador, que ainda concluiu que Veja “abusou da liberdade de imprensa.”
É disso que estamos falando. Abusos. Os presos não constestam, na Papuda, as penas que receberam. Querem cumprir o que a lei determina. Lutam por este direito – o que dá uma ideia do absurdo que enfrentam.
Mas não é isso o que acontece. A repetição de pedidos de investigação das “supostas irregularidades noticiadas” está longe de configurar um esforço para se cumprir a obrigação de apurar e investigar todo indício de crime, o que seria natural.
O que se faz é criar um círculo vicioso. Lembra o fatiamento que Joaquim Barbosa inventou para apresentar a denúncia da AP 470?
Cada suposição leva a outra, que leva a seguinte, depois a próxima, e mais uma… num caldeirão de “irregulardades noticiadas” que não precisam ser provadas. Basta que em seu conjunto formem uma nuvem política, uma convicção maligna que pode levar muita gente acreditar que a Papuda é um presídio inseguro, instável, perigoso – e que o jeito é mandar os réus da AP 470 para um presidio federal, como um deputado do Solidariedade pretende fazer.
Claro que não seria uma medida fácil. Como recorda a Associação dos Servidores, a Papuda encontra-se entre os melhores presídios do país:
“Há mais de uma década não temos rebelião; nunca tivemos decapitação de seres humanos; há mais de seis anos não há homicídios intramuros; há inexistência de facções criminosas…”
A verdade, porém, é que tudo tornou-se perigosamente possível depois que Joaquim Barbosa confessou que havia manipulado as penas da AP 470 para conseguir condenações mais duras, em regime fechado. Assim, sem retratar-se.
Não importam os fatos, nem mesmo a lei. Importa a vontade do juiz.
Lembra da frase “A constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é”?
Quando uma “suposta irregularidade noticiada” não chega aonde se imagina que deveriam chegar, encontra-se um atalho para manter a pressão.
Foi assim com o telefonema de Dirceu. Nada indica que tenha ocorrido. Não se provou.
Em vez de se questionar a denúncia, o que se questiona é a investigação. A tese, agora, é que foi “ atípica. “ Por que não admitir uma “suposta denuncia” ou mesmo uma “denuncia suposta”?
O que está claro é que as “supostas irregulariades noticiadas” foram investigadas, apuradas – e só tinham valia como cortina de fumaça para estigmatizar os presos, reduzir seus direitos e impedir a progressão de suas penas.
As primeiras foram as célebres visitas em dias especiais. Elas não são uma raridade na Papuda, mas uma tradição, oferecida a todo preso considerado “vulnerável.”
Foi assim que, por oito anos, os familiares dos jovens de classe media que assassinaram o índio Galdino, em Brasília, visitavam seus filhos numa data diferente daquela reservada aos parentes de outros internos. Isso porque havia, entre eles, não só ministros de Estado, mas também um juiz federal, motivo para se tentar prevenir reações imprevistas por parte da massa carcerária.
Em nome do “combate ao privilégio” todas as visitas em caráter especial da Papuda foram suspensas no final de 2013. Em função disso, “muitos pais e familiares não se arriscam a visitar seus entes, junto a massa carcerária,” diz o documento dos servidores. “Fato lamentável!”, dizem os servidores.
Outro privilégio “suposto” foi a feijoada em lata que Delúbio e duas dezenas de colegas de sua ala no Centro de Progressão de Pena comeram. Num local onde há um fogareiro, panelas e uma cantina que vende até costelinha, o que se gostaria que presioneiros fizessem? Pedissem para serem algemados?
O que se vê, aqui, é um fato analisado e resolvido através de uma sentença do Superior Tribunal de Justiça:
“Foge ao limite do controle jurisdicional o juizo de valoração sobre a oportunidade e conviência do ato administrativo, porque ao judiciário cabe unicamente analisar a legalidade do ato, sendo vedado substituir o Administrador Público.”
O que se diz aí é que mesmo cidadãos condenados a viver atrás das grades tem direitos que devem ser respeitados, o que inclui, inclusive, o respeito pela divisão de poderes que caracteriza o regime democrático.
Não é preciso acrescentar mais nada, certo?
Num país que assiste a passagem dos 50 anos do golpe de 1964, é bom refletir sobre o que acontece com seus prisioneiros. Não custa recordar que a face mais horrenda da ditadura foi construída em seus cárceres.