Morgan Freeman e a arte de dizer besteiras
Ao negar o racismo, Morgan Freeman se transforma num inocente útil. No Brasil, esse mesmo discurso já foi apropriado por conservadores empenhados em minorar os preconceitos raciais
O ator Morgan Freeman tem algo a dizer sobre o racismo e não são palavras sábias. Em entrevista ao canal CNN, Freeman afirmou que os problemas atuais de desigualdade social nos Estados Unidos não têm nada a ver com discriminação racial.
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Durante a entrevista, o apresentador do CNN Newsroom Don Lemon, também negro, pergunta ao ator sua opinião sobre a preocupação do presidente Obama e dos democratas com o avanço das disparidades sociais.
Freeman respondeu que acha válida esta preocupação. “Nós temos uma sociedade bem mais vibrante quando não existe um abismo entre os que têm e os que não têm”, disse ele, para em seguida falar da importância da uma classe média ampla para movimentar o mercado consumidor.
Na sequência, Lemon pergunta se as questões de cor têm alguma relação com o assunto. O ator de “Conduzindo Miss Daisy” foi enfático na resposta: “Hoje? Não! Eu e você, nós somos a prova. Por que raça teria alguma coisa a ver com isso? Concentre-se no que você quer fazer e vá em frente”.
Ele finaliza afirmando que o racismo existe, mas é um problema fazer dele uma preocupação maior do que realmente é. Proferidas por um ator negro de voz grave e imponente que emprestou a face para interpretar o próprio Deus, tais afirmações já estão abastecendo a artilharia de todos os que vêem uma chance de repetir o mantra da “meritocracia”contra tudo.
Para citar apenas um dado: segundo o Centro de Soluções de Política Global, nos Estados Unidos, os brancos têm um patrimônio líquido médio mais de 15 vezes maior do que os negros (US$ 111,740 contra US$ 7,113), e mais de 13 vezes maior do que os latinos (US$ 111,740 contra US$ 8,113 dólares).
Antes, Freeman já havia dado uma entrevista ao “60 minutes”, em 2005, que virou baluarte da negação ao racismo.
Morgan Freeman é um grande ator e sua visão a respeito das tensões raciais na realidade norte-americana não desabona sua carreira, é claro. Mas ao negar o racismo, além de cego, ele se transforma num inocente útil. No Brasil, o discurso já foi apropriado por brancos empenhados em minorar os preconceitos raciais, sob a argumentação de que vivemos em uma sociedade mestiça e há chances iguais para todo o mundo.
Analisando bem, dá para ver que a ideia mostrada nos fragmentos de entrevistas de Freeman já vem sendo usada há décadas. Os resultados estão aí, nas estatísticas nem um pouco gentis com os negros e índios.
A resposta ao argumento de Freeman vem de uma conterrânea dele. Mellody Hobson é presidente de um grupo de investimentos e esposa de George Lucas. Anos atrás, ela e o amigo Harold Ford, então candidato ao senado, estavam em uma empresa de Nova York onde fariam um almoço de negócios. Abordados pela recepcionista, foram orientados a se dirigir para a cozinha e vestir os uniformes. Ela os confundiu com copeiros ou profissionais de limpeza.
Hobson contou esta história em uma palestra no TED, na qual ela defende a necessidade de discutir o racismo e colocar o assunto em evidência, por mais desconfortável que seja. São argumentos irrefutáveis, pois vêm de uma mulher que faz parte do 1% da sociedade americana e poderia invocar a falácia da meritocracia para contestar a existência de discriminação racial.
Comparado a ela, Morgan Freeman é um canastrão.
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Marcos Sacramento, DCM