(Des)encontro com Fátima Bernardes ensina a como não debater o racismo
Programa global se dispôs a debater o racismo, mas convidou para o debate apenas brancos e não abordou as consequências para as vítimas de agressões racistas. Ao contrário, justificou o racismo dentro de um “determinado contexto” - tudo com o carimbo de um “médico especialista”
Yure Romão, Mamapress
Venho acompanhando o decorrer do caso de racismo contra o goleiro Aranha através dos blogs, jornais, sites e programas de televisão e acredito que bons debates e boas discussões vêm sendo colocados em cena, sobretudo no que diz respeito ao racismo dentro do esporte e ao racismo que opera incessantemente no Brasil, seja através de xingamentos, humilhações, prisões sistemáticas e genocídios cotidianos que não param.
Nesse texto em especial gostaria de abordar o programa matinal do dia 9 de setembro da apresentadora Fátima Bernardes, que convidou Patrícia Moreira, a “gremista (,) acima de tudo” para dar suas “explicações”. Quero analisar o programa como um todo, em especial a fala e a presença de um médico.
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Primeiramente, o que me saltou aos olhos em um programa que debaterá o racismo, foi o fato de não haver nenhum negro compondo o palco onde estariam os convidados. Nenhum negro. Este fato já nos dá em primeira mão a intenção do programa, que certamente não estava disposto a realizar um debate, mas sim uma amplificação de um monólogo de amenização do racismo, onde cada fala só busca reforçar e embasar a fala do outro.
A parte da comoção popular, da utilização sensacionalista da imagem de uma pobre menina branca, com olhos lacrimejantes, beiços trêmulos, que acima de tudo ama seu time e pede perdão, já era de se esperar e não me causou espanto. É televisão, e parafraseando o teatrólogo Augusto Boal a respeito das novelas, só é preciso certa dose de empatia entre personagem e espectador para que a máquina de culpa, redenção dos pecados e final feliz comece a funcionar. Claro, dentro da televisão.
A discussão do programa se limitaria então a um apelo sensacionalista, colocando o racismo como um Mal intrínseco, que somente pessoas diabólicas, de aparência medonha e chifres na cabeça poderiam concretizar. – “Uma menina que é auxiliar de dentista, que ama futebol assim como todos os brasileiros, que pediu perdão e está chorando em rede nacional não pode ser malvada a esse ponto.” Pronto! Tá pronta a arapuca!
Só entra nessa quem quer. Só cai nessa arapuca quem não quer ver que o racismo no Brasil está muito além de bem e de mal, que na verdade ele está impregnado em todas as relações e todas as instituições, desde as escolas maternais onde crianças negras são vistas como “futuros marginais”, “hiperativas”, “com dificuldades de aprendizagem”, “encarnações do mal”, até a instituição máxima de nossa punição social: a cadeia, onde negros são amontoados como animais, como é o caso de Rafael Braga, um negro, morador de rua preso (e já cumprindo pena) por porte de detergente e substâncias inflamáveis durante uma manifestação no Rio de Janeiro. Isso claro, se não forem julgados e sentenciados a morte antes de chegarem aos tribunais, como foi o caso dos dois menores levados por dois policiais no centro da cidade há pouco tempo e um deles foi executado na floresta da Tijuca. Essas prisões e mortes estão previstas dentro de nossas instituições racistas e propagadoras do racismo. São amenizadas e muitas vezes naturalizadas.
Ser racista independe da índole ou do carácter da pessoa, é algo independente de ter amigos negros ou não, se você transa com negros ou não. Na hora em que o “bicho tá pegando” e que o teu está na reta, o racismo não aparece simplesmente. Não brota do nada como algo impensado e inconsciente, mas é o resultado de algo trabalhado e repetido todos os dias, em todos os lugares e necessário para que o “modus operandi branco” se mantenha no topo e a relação se mantenha vertical. Trata-se apenas de uma resultante instantânea de um racismo institucional e cotidiano.
O racismo não é um sentimento que aflora em determinados momentos, como as pessoas vêm tentando dizer. Ele é nada mais, nada menos que o não-sentimento por aquilo que é considerado um não-humano no momento da agressão. O racismo está presente em nossas vidas 24 horas por dia, 365 dias por ano. Não existe falar sem intenção ou não ter noção do peso de algo que vem sendo dito e propagado há mais de 500 anos nesse país. A intenção é extremamente forte, pesada e antiga, mesmo que pronunciada com doçura e carinho. Aqueles que alegam dizer algo racista sem intenção, estão duplamente errados: uma pelo insulto racista e outra pelo pouco caso que fazem do efeito desse insulto e do peso dele, ao usar essa justificativa.
Voltemos ao programa de Fátima Bernardes. Após o chororô apelativo e algumas frases sem nexo, ditas por Patrícia e possivelmente ditadas por seu advogado, entra em cena o personagem que me chamou atenção: o Doutor. A voz da ciência.
Se em um primeiro momento tentaram nos fazer engolir que havia uma “incoerência” no fato de uma menina de ar “angelical” ter um ato racista, apelando para nossas crenças e para as imagens de bondade com cabelos lisos e pele branca que reproduzimos do jogo televisivo, das revistas, clipes e afins; em um segundo momento temos a Ciência para carimbar o passaporte de inocência e de pureza de Patrícia, usando o argumento do “Inconsciente” ou de uma possível “histeria coletiva”, em que tomada pelo impulso, a jovem foi quase que obrigada a insultar o goleiro Aranha. Nas duas explicações, Patrícia não estava no controle de suas ações. Nas palavras do “Doutor” :
-“Essa não é a primeira história, existem diversas histórias de pessoas que se envolvem em confusões, manifestam uma opinião que muitas vezes não é dela e acaba arcando com as consequências por ter sido flagrado ou detectado […]” (Médico Fernando Gomes Pinto-neurocirurgião e neurocientista);
O “Doutor” continua sua explicação, amenizando a situação dizendo que não é a primeira vez que esse comportamento acontece. Pausa dramática. Puta que o pariu! Se esse é um comportamento que se repete, isso deveria nos chocar e nos inquietar na busca de uma solução para esta merda e não nos apaziguar, naturalizando a gravidade do ocorrido, que inclusive gerou consequências jurídicas para a equipe e para os torcedores. Mais uma vez é a voz do programa gritando em nosso ouvidos.
O que esse médico faz nessa fala e nesse programa específico, cujo o tema era o racismo é absurdamente grotesco. Ele simplesmente legitima uma atitude racista de qualquer pessoa, sob a alegação de que em situações como essa o cérebro não é controlado mais pela pessoa e passa a agir sozinho. É a biologia mais uma vez controlando as ações sociais do ser humano. Digo “mais uma vez” porque no início do século XX, baseado no discurso cientificista, o mundo acreditou por muitos anos que fatores biológicos determinavam ou não tendências criminosas e por conta disso, pessoas com nariz largo, cor mais escura, lábios grossos tinham maior propensão a serem criminosos ou a cometer delitos. Estudos “comprovados” dessa época, diziam que o cérebro do negro era menor que o do homem branco. Racismo fantasiado de ciência. Agora o argumento é o mesmo, mas com o objetivo de inocentar aquele que comete o crime e curiosamente não se trata de um negro, mas de uma menina branca.
Para finalizar, gostaria de compartilhar com vocês, leitores, as estratégias que meus olhos e meus ouvidos não conseguiram deixar passar em branco nesse programa que se propõe a falar sobre o racismo. Com apenas convidados brancos, o programa apresenta a imagem de uma jovem indefesa, oprimida e arrependida, não promove um discussão real sobre o racismo, sobre suas consequências para as vítimas de agressões racistas e legitima a atitude da jovem que grita “macaco” influenciada pela euforia da massa e pelo calor do momento. Tudo isso carimbado e assinado pela presença de um médico que justifica e naturaliza a atitude da moça dentro de um determinado contexto.
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Note-se que nesse programa não se coloca em dúvida se o ato foi racista ou não, mas tenta-se o tempo todo amenizar a situação frente a população, ao dizer que trata-se de um ato frequente em situações como essa. Está na hora de atacarmos de frente essas estratégias de apaziguamento, amenização e relativização do racismo, que acabamos aceitando muitas vezes em nossas vidas por conta das complicações e dores de cabeça que podem nos causar. Nossas cabeças estão a prêmio há muito tempo com dores ou sem. Não importa o que façamos sempre se dá um jeito de inverter a situação para amenizá-la. Ataquemos então esses mecanismos de apaziguamento, essas estratégias de inversão, essas estruturas pré-prontas que dizem discutir o racismo e que não apresentam nada além de explicações e justificativas para atos racistas, essas mesas de debate que só possuem uma única voz e dizem contemplar a todos sob a fantasia da neutralidade.
Combatamos esse neutro que nos silencia em todas as esferas políticas, esse “Somos todos da raça humana” que inclui todos somente até o momento em que somos desumanizados, animalizados e então o discurso de igualdade do ser humano vai por água abaixo e os direitos deixam de existir. Xingar de “macaco” dentro de um estádio é um ato de animalização através do discurso, mas que ultrapassa a esfera do mesmo sempre que se amontoam negros em celas da prisão, sempre que “Candelárias” se repetem, sempre que “Cláudias” são arrastadas pelas ruas da cidade, sempre que falam por nós, sobre nós em programas de televisão e nos silenciam ou fingem não entender o que falamos, como se fôssemos animais. O chamar de “macaco” é muito mais do que uma simples ofensa oral. É reflexo de todo um pensamento de animalização do negro desde o período da escravidão e que perdura até os dias de hoje. Não há nada para amenizarmos, o caso é muito mais grave do que imaginamos e o buraco é muito mais embaixo. Façamos ouvir nossas Vozes!
NENHUM PASSO ATRÁS.