O que podemos aprender com “Chicken Little”: uma resposta lúdica (ou lúcida) ao atual panorama brasileiro
Ângelo Menezes*
Em 1943, em meio a Segunda Guerra Mundial, o Walt Disney lançou uma série de curtas. Um deles, em especial, chamava-se Chicken Little, baseado na fábula “O Céu Está Caindo” (ou, no original, “The Sky if Falling”).
A história é bem simples. Ela ocorre no terreno de uma fazenda (um galinheiro), sendo os seus personagens: a) o Doutor Galo, inspetor-chefe dos galinheiros e diretor da produção de ovos; b) as donas galinhas, que passam o dia batendo papo, tricotando, jogando cartas e fofocando; c) O Conselheiro Peru e a turma grã-fina, que passam o dia inteiro a discutir sobre como reformar o mundo; d) a “turma do abafa” que vive se esbaldando nas escolas de música; e) os gansos e patos, que vivem nos botequins; f) finalmente, o herói, o pintinho ingênuo, campeão de ioiô, um pouco cabeça mole, mas um rapaz direito, “um menino de família”.
No começo da história o galinheiro é mostrado como um local próspero, onde seus cidadão não tem maiores receios, já que vivem atrás de uma alta cerca de madeira, que impede a entrada de predadores.
Um dia, a raposa “esperta e malandra” aparece, interessada em devorar os habitantes do galinheiro. Por qual motivo ela não entraria no galinheiro? Pela alta cerca? Pelos cadeados? Pela espingarda do fazendeiro? Para que enfrentar todos esses obstáculos e devorar apenas uma galinha?
“Não haveria um outro método, menos perigoso (ou com menores externalidades negativas para ela), para devorar todas essas galinhas?”, indaga-se a Raposa. “A psicologia!”, responde para si, sacando um livro.
Assim ela faz uso de uma estratégia dividida em quatro partes: a) “Para influenciar as massas dirija-se, primeiro, ao menos inteligente.”; b) “Se tiveres que contar uma mentira, não conte uma pequena, conte uma grande”; c) “Destrua a confiança do povo em seus chefes”; d) “Pelo uso da bajulação, uma pessoa insignificante acaba-se convencendo-se das suas qualidades de chefe”.
Mas como a “Raposa Esperta e Malandra” coloca esse plano em prática? Bom, primeiro ela vê em Chicken Little, o herói, o pintinho ingênuo, o personagem que precisava para colocar em prática as letras “a” e “b” do seu plano. Com fumaça, um regador e um pedaço de madeira onde estava pintada uma estrela, ela faz o Chicken Little acreditar que o céu estava caindo (lembre, uma mentira pequena não é suficiente).
Chicken Little alardeia para todo o galinheiro o que achava que estava acontecendo (“o céu estava caindo!”, gritava) e todos entram em pânico, até que Doutor Galo, com sua sensatez habitual, mostra para todos que aquela estrela, na verdade, nada mais era do que um pedaço de madeira.
O galinheiro volta a sua rotina normal, mas cercado de dúvidas: afinal, o céu estava caindo ou não?
A Raposa, esperta e malandra como sempre foi, percebe então, que a única coisa que a separa de todo o galinheiro é a sensatez do Doutor Galo. Resolve, então, colocar em prática, a letra “c” do seu plano.
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Primeiro, inicia plantando o “medo” e “previsões apocalípticas” com as donas galinhas (aquelas mesmas que adoravam fofocar). Enquanto elas jogavam cartas e conversavam sobre suas convicções de que o Doutor Galo estaria certo sobre aquela estrela ser só um pedaço de madeira, a Raposa, do outro lado da cerca, sussurra: “Escuta meninas, mas e se ele estiver errado? Errar é humano, não é? E se ele estiver enganado, todos nós morremos, não é?”.
Para o Conselheiro Peru e a turma Grã-Fina, a Raposa sussurra: “Na minha opinião, o Doutor Galo tem tendências totalitárias definidas, está querendo se impor, nós podemos decidir se o céu está caindo ou não.”
Para os Patos e Gansos, sussurra: “Ei pessoal, ouvir dizer que o Doutor Galo deu pra beber agora, anda meio maluco.”
Todos os boatos passam a correr pelo galinheiro, até que a máxima de “O Doutor Galo já perdeu todo o prestígio” fica bem fixada na mente de boa parcela do galinheiro. Isto posto, bastava apenas convencer o herói, o pintinho ingênuo, Chicken Little, das suas qualidades de chefe (letra “d”).
Através da cerca a Raposa sussurra para Chicken Little: “Vamos! Não perca tempo, eles te obedecerão, você nasceu para ser chefe, vamos!”. Com o ego inflado Chicken Little vai até a praça e grita para todos: “Atenção, eu sou o novo Chefe, vou salvar vocês, vocês tem que me obedecer.”.
O Doutor Galo tenta, mais uma vez, impedir um pânico generalizado e afirma que o céu não está caindo, enquanto Chicken Little retruca dizendo que está caindo sim. A população do galinheiro fica no meio de tudo, sem mais dar tanta credibilidade as afirmações do Doutor Galo.
O Doutor Galo pede, então, para que Chicken Little provasse que o céu estava caindo (“Se o céu está caindo, por que ele não cai na minha cabeça?”). A Raposa Malandra, com toda sua sagacidade, do outro lado da cerca, pega outra estrela de madeira e a atira na cabeça do Doutor Galo, que cai inconsciente.
O pânico se generaliza, todos correm para Chicken Little perguntando o que fazer. Inocente como sempre foi, ele escuta a voz que estava além da cerca, ordenando, assim, uma fuga em massa para a gruta – onde lá esperava, enfim, a Raposa.
Desde as manifestações de Junho do ano passado, uma coisa silenciosa, dentro de mim, incomodava bastante. Na minha mente, os gritos de “sem partido”, as cenas de criminalização (ou melhor, de apartheid) dos movimentos sociais e coletivos ao longo das manifestações, quando foram obrigados a exercer seu direito de manifestação (por pautas sólidas, frise-se) em outro lugar – impedidos de ocuparem o mesmo espaço daquela população “sem partido” que se manifestava “Contra a corrupção” (até hoje me pergunto quem, em sã consciência, seria a favor) dentro da sua cordinha e zona de conforto –, continuaram ecoando até hoje.
O tempo passou e com o acirramento do processo eleitoral, o que vivi, especialmente nos últimos meses (e, especialmente, no dia de hoje), me fez recordar bastante o que li nos meus livros de história:
1) “Exaltação a bandeira nacional e suas cores” – e longe de mim não gostar do Brasil e não ter orgulho de ser brasileiro, assim como o tenho de ser Nordestino, Potiguar, Papa Jerimum e falar “painho”/”mainha”.
2) “Exaltação do hino nacional (geralmente cantado a plenos pulmões e em looping ad eternum).”
3) “Exaltação do dever de defender a pátria, de combate aos que ‘estão do outro lado’ ou que são ‘criminosos por compactuar com o governo Y’, ou, ainda, na visão de alguns formadores de opinião pública, são ‘coniventes, indiferentes, cúmplices ou alienados’[1].”
4) “Exaltação ao dever de combater o mal do comunismo/socialismo/marxismo/bolivarianismo (insira o seu termo predileto).”
5) “Inconformação com o resultado de um pleito democrático – devendo frisar que existe sim, um partido dizendo que ‘sabe perder’, ‘que vai cobrar’, mas que no backstage lança notas conclamando o ‘povo’ para combater o seu representante democraticamente eleito (ou dá entender a isso, na medida em que protocola um sem número de pedidos de auditoria das eleições junto ao TSE) [2].”
6) “Inconformação consubstanciada em pedidos (milhares) públicos (que até ontem estavam restritos as redes sociais e, hoje, tomaram a Av. Paulista) para que haja uma intervenção militar como meio de ‘salvar o país’.”
Meu objetivo, com esse texto não é defender o “Doutor Galo” (se é que aqui ele existe), sequer pintar o Brasil como um “galinheiro próspero e feliz”. Em todos os meus textos e crônicas sempre deixei destacadas minhas (não poucas) ressalvas ao atual governo.
Sequer atribuo o papel de “Raposa Malandra e Esperta” a um político (ou partido) “X” ou “Z”.
Apenas gostaria de lembrar aos que aplaudem as “marchas pela família brasileira” (nos mesmos moldes daquelas ocorridas em Março de 1964, reunindo mais de 500mil pessoas em São Paulo – um Estado “não-bovino” [3]), que o ufanismo desvairado, ora enaltecido, foi o responsável pelo período mais triste da história brasileira.
Se vocês esqueceram? Não posso responder. Apenas reafirmo que os livros de história, os documentários e os depoimentos que escutei ao longo da minha vida, impediram que todos aqueles acontecimentos jamais passassem despercebidos diante dos meus olhos.
Continuarei com meus reclames por uma Reforma Política popular, transparente e consulta; por uma política econômica que seja, de fato, mais eficiente e contemple todos os setores da sociedade – sem deixar de lado, especialmente, a justiça social, tão importante para uma sociedade tão desigual como a nossa; por mais discriminações inversas e uma efetiva tutela dos grupos vulneráveis; por um país que pode (e será) melhor.
Farei tudo isso, ocuparei as ruas, mas sempre sem dar ouvidos aos impropérios propalados, do Oiapoque a Chuí, pelas “raposas espertas e malandras”.
Para A Gruta, jamais!
*Ângelo Menezes é Mestrando em Direito Constitucional pela UFRN, Professor Colaborador da disciplina de Direitos Humanos Fundamentais do curso de Direito da UFRN e colaborador em Pragmatismo Político
[3] http://www.infoescola.com/historia/marcha-da-familia-com-deus-pela-liberdade/