Considerações eleitorais: a suposta divisão e a razão do voto
O Brasil está dividido, mas não ideologicamente. Não foram a grande mídia, as redes sociais ou as ideologias que decidiram as eleições. Esses aspectos tiveram sua importância, mas o significado da vitória de Dilma passa pela percepção do povo, que começa a entender que faz parte do país e que o governo exerce impacto direto em sua vida
Anita Guerra*
Foi a minha primeira eleição. Mas há anos venho me formando politicamente e ideologicamente — dentro do contexto do governo do PT, como toda a minha geração. Cresci, ideal e fisicamente, nos governos de Lula e Dilma. O que sei da era FHC aprendi estudando e ouvindo os que viveram plenamente essa época.
Claro que tenho críticas ao PT, a alguns aspectos dos últimos dois presidentes, assim como tenho — menores e menos importantes, porém reais — críticas ao PSOL, protagonista da utopia política atual, especialmente entre os jovens. O PT já assumiu esse papel, um dia. Uma utopia bonita e nem tão utópica, que vai se tornando mais próxima e possível a cada vitória na Câmara, a cada deputado eleito, a cada voto que é conquistado.
Votei na Dilma no primeiro e no segundo turno. No primeiro foi um pouco mais difícil tomar essa decisão. Uma identificação muito grande com o PSOL e com a candidata Luciana Genro quase me fez mudar meu voto algumas vezes durante os dias que antecederam a primeira ida à urna, mas a admiração que eu sinto pela atual presidenta e pelo que seu partido realizou nos últimos doze anos — apesar de tudo — falou mais forte, além do medo de um segundo turno, fosse com Marina ou Aécio.
Acho que sempre vi o PT como uma utopia que se tornou real, como o PSOL é atualmente. Parte por influência familiar, parte pela beleza de programas assistencialistas como o Bolsa Família, o ProUni, o Mais Médicos e muitos outros, que ensinam sim a pescar e muito mais do que isso, ajudam o país a ser mais justo e rico em muitos sentidos. E ajudam o país a se unir com o povo, contra a ideia que sempre foi muito presente de que são duas coisas separadas, contra a imposição dos governos anteriores de uma percepção de que o Brasil está crescendo apesar do desemprego, da fome e da miséria. Esta percepção foi utilizada às avessas pelas propagandas do PSDB no segundo turno: “Não tem desemprego, a miséria diminuiu consistentemente, o país saiu do mapa da fome, mas o PT trouxe de volta a inflação e a economia está estagnada”, com acusações extremamente questionáveis. Ouvi muitas variações dessas propagandas serem repetidas sem nenhuma reflexão ou questionamento por diversos tipos de pessoas, incluindo um motorista de ônibus que teve sua qualidade de vida melhorada no governo petista e havia sido contra o impeachment de Collor porque ele “abriu o mercado”. Esse mesmo motorista afirmou também, apesar de sustentar um discurso violentíssimo contra o PT nos casos do mensalão e da Petrobras, que deveríamos “deixar o Aécio roubar um pouquinho”.
Todo o processo do segundo turno me afetou de forma muito intensa, não apenas pelo constante discurso de ódio disfarçado de liberdade de expressão, mas pelas inúmeras contradições dos defensores do candidato do PSDB — entre milhões de outras, a que mais presenciei foi o apoio de estudantes de universidades federais à Aécio —, pelo cinismo — tanto dos eleitores quanto do próprio candidato — e pela explosão do preconceito de classe que as eleições explicitaram e trouxeram à tona. Ao mesmo tempo, tento ver um lado positivo na exposição desse discurso reacionário, conservador e fascista personificado por notórias figuras públicas como Constantino e Lobão e por milhões de anônimos — esse pensamento sempre existiu no Brasil, a visibilidade e violência que ele assumiu nas últimas semanas geram uma oposição e uma resistência reforçadas, como veio acontecendo com a luta LGBT desde que Feliciano assumiu a liderança da Comissão dos Direitos Humanos na Câmara no ano passado.
Além do preconceito de classe, o machismo e a própria homofobia têm um papel muito forte no discurso contra a reeleição de Dilma. O homem branco e heterossexual da classe média “tradicional” — e todos os que ele influencia por sua opressão histórica — não aceita ver uma mulher forte no poder de um governo popular e assistencialista. Tive o desprazer de ouvir a presidenta sendo chamada de “piranha, escrota e sapatão” de um expoente desses opressores, que ganhava “só” cinco mil reais — além da aposentadoria — porque a Dilma “acabou com a Infraero”, onde ele trabalhava. Não satisfeito, ao perceber que nossa mesa se compunha de um gay e um casal de lésbicas e ser chamado de homofóbico, afirmou não ser preconceituoso, afinal sua irmã era lésbica — “mas a Dilma é sapatão, não lésbica!”, afirmou, reforçando a objetificação das mulheres tão presente na nossa sociedade, onde os piores adjetivos que podem ser dirigidos a uma mulher são relacionados com “desvios morais” da própria sexualidade, que diminuem o papel de opressor do homem e o faz temer tanto uma mulher forte no cargo mais alto do governo.
Diante de tudo isso, a vitória de Dilma representou, para mim, quase a moral de uma fábula, de um conto de fadas, o verdadeiro bem vencendo o mal aterrador — apesar de não achar que seu governo seja perfeito. Mas estar no meio de uma praça lotada de pessoas vestindo vermelho, gritando, cantando e comemorando com uma alegria única aqueles 3% de diferença, depois de semanas de dúvida e preocupação, me fez pensar na multidão vestida de azul e de camisa da seleção cantando o hino nacional com a mão no peito que faz parte da imagem que eu criei da ditadura militar na minha cabeça. Imagino essa multidão como um fantasma que voltou para assombrar o país, mas a verdade é que ela nunca foi embora. Collor, em um dos debates entre ele e Lula, afirmou que o povo não deve levantar a bandeira vermelha do comunismo, mas sim a que está no coração de todos — a bandeira do Brasil. Variações dessa frase foram reproduzidas tanto por Aécio quanto por Marina Silva, além de estarem presentes em diversos cartazes de manifestações pró-Aécio, pró-impeachment da Dilma e pró-intervenção militar. A ditadura deixou cicatrizes muito fortes na sociedade, o que impede que ela retorne, pela lembrança das perseguições, torturas e mortes, mas ao mesmo tempo mostra o quão forte foi a imposição social de uma mentalidade autoritarista, fascista e anti-democrática nesse período. E Dilma representa a resistência à essa imposição, tanto por sua atuação durante a ditadura quanto por seu papel atual.
O Brasil está dividido, mas não ideologicamente. Não foram a grande mídia, as redes sociais ou posições políticas que decidiram as eleições. Esses aspectos tiveram sua importância, naturalmente, mas o que a vitória de Dilma mostrou é que o povo está percebendo que faz parte do país, que o governo tem um papel de assistência e tem impacto direto em sua vida. E isso nada tem a ver “compra de voto” — não se pode fazer políticas para ajudar o povo porque ele vai ver que sua vida mudou e irá votar no governo que o ajudou? É uma visão elitista de uma classe média revoltada ao ver as classes mais baixas decidindo o rumo do país, de uma minoria opressora que considera suas vontades superiores às de quem necessita de assistência e seu voto mais valioso que o de sua empregada doméstica. E ao mesmo tempo em que essa classe média reclama da violência e brada para quem quiser ouvir que na Europa ninguém é assaltado, ela também faz de tudo para a manutenção das desigualdades sociais, como se fossem dois fatores independentes. E, apesar dos diplomas de que tanto se orgulham, esquecem que na Europa há menos assaltos justamente pela presença de políticas sociais básicas para uma maior igualdade entre classes, ou no mínimo uma vida decente ao trabalhador. Quem decidiu as eleições não foram as pessoas que ficaram diariamente fazendo campanha nas redes sociais, mas sim a metade da população que não tem acesso à internet. A reeleição da presidenta mostrou que a hegemonia do pensamento da grande mídia, que é praticamente a única que atinge essa parcela, está sendo aos poucos superada — pela simples percepção desse apoio ao povo por parte do governo e por programas como o ProUni, que dão acesso a outras visões de mundo. O Brasil está dividido principalmente de forma prática, entre as classes sociais.
A disputa dentro das classes é minoritária, mesmo que importante. Existe uma parte da classe média que deseja um governo mais justo e popular, que é contra a desigualdade e a exploração, mas é uma minoria que não tem tanto peso no resultado final. Basta olhar os mapas das eleições. O do Rio de Janeiro, por exemplo, é bem claro: Aécio foi o mais votado nas zonas que contam com a presença histórica de uma classe média “tradicional”, com destaque para Barra, Zona Sul e Tijuca, enquanto Dilma venceu na maior parte das zonas Norte e Oeste, menos favorecidas em termos financeiros e estruturais. Em Nova Iguaçu e São Gonçalo, municípios localizados na região metropolitana, a vitória da presidenta por zona eleitoral foi quase unânime. Até em São Paulo, onde o candidato do PSDB obteve quase 64% dos votos, vê-se a presença de zonas periféricas onde Dilma venceu, como a de Parelheiros, onde 60% dos votos foram dirigidos à sua reeleição. Em escala nacional essa divisão também é óbvia — o Norte e o Nordeste, as regiões que recebem mais assistência em diversos âmbitos por parte do atual governo, apoiaram quase majoritariamente a reeleição da presidenta. O fato de Miami ter sido a cidade onde Aécio obteve mais votos percentuais — 91,79% —, enquanto Dilma venceu com 93,93% em Belágua, no interior do Maranhão, também explicita a divisão em termos classistas do Brasil. A divisão não é entre ideologias de esquerda e direita, nenhuma pesquisa sobre o percentual de leitores de Marx na população de Belágua foi divulgada até esse texto ser escrito — apesar da existência de um cafezal comunitário e de um engenho destinado ao consumo da comunidade antes de sua fundação oficial —, mas o município é o décimo terceiro em percentual de famílias que recebem o Bolsa Família.
Termino esse texto com a seguinte declaração de Marilena Chauí, professora, filósofa e fundadora do PT: https://m.youtube.com/watch?v=JJpK5mefsdY
Felizes quatro anos.
*Anita Guerra é graduanda em Comunicação Social na UFRJ e colaboradora do Pragmatismo Político