O latifúndio e a pérola de Kátia Abreu
Se latifúndio não existe, por que tantas mortes no campo? Em 2014, foram registrados dezenas de assassinatos. Entre as vítimas, pessoas de comunidades tradicionais, assentados, sem-terra, pequenos proprietários e sindicalistas. Ao contrário do que diz Kátia Abreu, nova ministra da Agricultura, as propriedades improdutivas não só existem como estão crescendo
Cristiane Passos*, Brasil de Fato
2014 inverteu a lógica de violência que vinha se mantendo nos últimos anos. Foram seis membros de comunidades tradicionais assassinados, conforme dados preliminares da CPT. A luta organizada desses povos e a atenção midiática que se voltou para suas pautas em todo o mundo pode ter freado a investida do capital contra suas vidas. Em compensação, tal investida voltou-se para os assentados, pequenos proprietários, trabalhadores sem-terra, posseiros e sindicalistas, que perderam 28 militantes nesse ano.
Apenas no mês de julho foram 7 assassinatos em 4 estados, em somente 20 dias. No mês de agosto foram 4 em uma semana, sendo 3 assassinatos no estado do Mato Grosso. A violência do latifúndio e do agronegócio contra os povos do campo continua a ameaçar a soberania dos territórios e a luta por direitos humanos. A diretoria e a coordenação executiva nacional da CPT divulgaram Nota Pública com as denúncias de assassinatos e repúdio à onda de violência que se mantém no campo, intensificada nos meses de julho e agosto desse ano.
Segundo semestre com matança
No dia 13 de agosto, foi assassinada a tiros a ex-presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de União do Sul (STTR), em Mato Grosso, Maria Lúcia do Nascimento, que morava no assentamento Nova Conquista II. Tanto ela quanto outras famílias assentadas e dirigentes do STTR local já haviam sofrido ameaças do dono da fazenda, Gilberto Miranda, registradas em Boletins de Ocorrência e em atas de denúncias feitas diretamente ao Ouvidor Agrário Nacional, desembargador Gercino José da Silva Filho. As ameaças foram testemunhadas, inclusive, por oficiais de justiça.
Já no dia 16, o presidente da Associação de Produtores Rurais Nova União (ASPRONU), Josias Paulino de Castro, 54 anos, e sua esposa, Ireni da Silva Castro, 35 anos, foram assassinados, no Distrito de Guariba, Município de Colniza (MT). Em 5 de agosto, Josias havia participado, em Cuiabá (MT), de audiência com o ouvidor Agrário Nacional, desembargador Gercino, e com várias outras autoridades do estado de Mato Grosso. Josias denunciara políticos da região por extração ilegal de madeira, a Polícia Militar por irregularidades e órgãos públicos por emissão irregular de títulos de terras, assim como a existência de “pistoleiros” na região.
Josias, segundo o site Pantanal, nesse mesmo dia teria afirmado: “Estamos morrendo, somos ameaçados, o governo de Mato Grosso é conivente, a PM de Guariba protege eles, o governo federal é omisso, será que eu vou ter que ser assassinado para que vocês acreditem e tomem providências?”
No Pará, estado campeão em assassinatos até o momento, com oito casos, a história se repete. Félix Leite, vice-presidente da Associação de Acampados Divino Pai Eterno, em São Félix do Xingu, foi assassinado a tiros quando retornava do trabalho, no dia 18 de julho. Ele já havia registrado boletim de ocorrência sobre as ameaças de morte que vinha sofrendo. Outras quatro lideranças da Associação também estão ameaçadas de morte, e uma delas, Lourival Gonçalves, chegou a levar quatro tiros num atentado ocorrido no dia 16 de abril.
No dia 12 de agosto, no Sudeste do Pará, Maria Paciência dos Santos, 59, foi atropelada por um caminhoneiro que avançou sobre os 1.500 manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que marchavam pela BR-155, chamando a atenção para o descaso com a Reforma Agrária. O local é próximo à curva do “S”, onde ocorreu o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. O trânsito estava liberado em uma faixa, mas foi bloqueado pelos manifestantes após o brutal assassinato de Maria, que morreu na hora.
Em Bom Jesus do Tocantins (PA), no dia 17 de setembro, Jair Cleber dos Santos e Aguinaldo Ribeiro morreram após serem baleados, juntamente a Antônio Alves e Daniel, pelo gerente da fazenda Gaúcha. Os trabalhadores sem-terra integravam as 300 famílias que ocupam a fazenda desde 2009. Já haviam sido registrados 12 boletins de ocorrência contra o gerente da fazenda devido a ameaças de morte que esse fazia contra as famílias.
Maranhão
O estado do Maranhão, até o momento, registrou cinco assassinatos. Em todos os casos a motivação foi a disputa por terra. Isso em um estado que vem contabilizando mortos na luta pela terra, e cujas lideranças estão sendo dizimadas nessa batalha. Foi o segundo estado com o maior número, até o momento, de mortes no campo, juntamente com o estado de Mato Grosso.
Em um dos casos, a vítima, após a investigação da polícia maranhense, virou ré. Conforme relatório da polícia, o líder camponês Raimundo Rodrigues, conhecido como “Brechó”, assassinado em fevereiro desse ano, estaria envolvido em uma rixa entre famílias, o que teria motivado o seu assassinato. Contudo, testemunhas confirmaram a motivação do assassinato de Brechó, bem como a denúncia de ameaças de morte que este vinha sofrendo por causa da sua luta pela conquista da terra no município de Timbiras (MA).
De acordo com denúncias da CPT Maranhão à época, a polícia sequer foi ao local ouvir as testemunhas do caso, inclusive as pessoas que estavam com ele no momento da emboscada. O que as autoridades fizeram, prontamente, foi assumir a tese de crime de “vingança motivada por uma rixa entre famílias que residem no povoado Bondaça”.
A mesma posição foi assumida pelo delegado Rômulo Vasconcelos, que chegou a dizer a um agente da CPT Maranhão, que “o crime nada tem a ver com conflito por terra, trata-se de briga de família. A Comissão Pastoral da Terra é que quer transformar em conflito por terra”.
A delegada geral da polícia civil do Maranhão, Maria Cristina Resende, havia feito afirmações semelhantes, em maio de 2012, quando ao avaliar a situação na comunidade de Brechó, em Timbiras, disse que “não há disputas agrárias envolvidas. Trata-se de problemas pessoais entre vizinhos nos assentamentos, ou de acertos de contas do tráfico de drogas, em áreas indígenas”.
Conforme denúncia da CPT Maranhão, inúmeras vezes as lideranças procuraram as autoridades do Sistema de Segurança Pública do estado do Maranhão para denunciar os atos de violência contra as famílias. Há vários Boletins de Ocorrência registrados na Delegacia de Polícia Civil de Timbiras (MA). As denúncias foram completamente ignoradas pelas autoridades do estado do Maranhão e também pelas federais. Em Nota Pública a Pastoral destacou que “Raimundo Rodrigues da Silva (Brechó) constou na lista dos camponeses ameaçados de morte, publicada pela Comissão Pastoral da Terra, em 2012. Sua morte é mais um caso de morte anunciada”.
Mato Grosso, assim como o Maranhão, tem cinco assassinatos nesse ano de 2014. Além dos três assassinatos no mês de agosto, já destacados nessa matéria, mais duas pessoas, novamente um casal de assentados, foram mortas, em janeiro, por não quererem vender seu lote no assentamento em que viviam. Maria do Carmo Moura e Gonçalo Araújo foram executados a tiros e golpes de marreta. O filho do casal, de 22 anos, conseguiu fugir, mas ainda foi atingido por um tiro no braço. 2014: menos ameaças, mais tentativas.
Assassinatos
Os dados parciais do Cedoc Dom Tomás Balduino nos mostram, também, um aumento expressivo na quantidade de tentativas de assassinato. Em contrapartida, as ameaças de morte se reduziram abruptamente. Se em 2013 foram 15 tentativas de assassinato, conforme os dados finais registrados e publicados no relatório Conflitos no Campo Brasil 2013, em 2014 foram 52 tentativas de assassinatos nos dados ainda parciais, registrados pela CPT, entre os meses de janeiro e novembro.
A conclusão a que podemos chegar com esse número é que o poder privado, principal responsável pelos casos de violência contra a ocupação e a posse nos conflitos por terra, não está mais ficando somente nas ameaças. Está indo para as vias de fato. Nas 481 ocorrências de violência contra a ocupação e a posse por ora registradas pela CPT, 411 foram causadas pelo poder privado. O capital está cada vez mais armado contra os povos do campo.
A força da luta de todos esses povos, contudo, não se esvai junto ao sangue de seus lutadores e lutadoras. Os mártires motivam ainda mais o dia a dia dos povos do campo, na luta contra a impunidade, o saque das riquezas naturais, bem como das terras e dos territórios. Como dizia Dom Tomás Balduino, bispo fundador da CPT e que nos deixou no ano de 2014, “Direitos Humanos não se pedem de joelho, exigem-se de pé!”. De pé, portanto, a luta dos povos continua. (CP)
*Cristiane Passos é mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Cultura e Meios de Comunicação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduada em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela UFG. Assessora de Comunicação da Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT)