Wolinski, o mestre que inspirou Laerte, Ziraldo, Angeli, Jaguar e Henfil
Conheça Georges Wolinski, o mestre de tantos outros mestres do cartum mundial que perdeu a vida no atentado ao Charlie Hebdo. No Brasil, sua obra chegou ao Pasquim, o maior símbolo da subversão do humor e da contestação política do país na ditadura militar
Maíra Streit, Revista Fórum
Ao pensarmos em ícones do humor inteligente no Brasil, rapidamente vêm à cabeça nomes como Jaguar, Laerte, Ziraldo, Angeli e Henfil. Mas todos eles passam da categoria de ídolos a fãs, quando se trata do cartunista Georges Wolinski, 80, morto na última quarta-feira (7) por radicais islâmicos. Ser o mestre de outros mestres tão respeitados é, de fato, uma responsabilidade para poucos.
Nascido na Tunísia em 1934, Wolinski mudou-se para a França ainda criança. Nos anos 1960, começou a desenhar para o jornal satírico Hara-Kiri, fundou o periódico L’Enragé e contribuiu ainda para outras importantes publicações, como Libération, Nouvel Observateur e L’Humanité. Ele é considerado uma das figuras marcantes de Maio de 68, onda de protestos que começou pedindo reformas educacionais e evoluiu para uma greve geral que balançou o país e o governo do presidente Charles De Gaulle.
Com o fechamento do Hara-Kiri, os jornalistas se reuniram para a criação de Charlie Hebdo, em 1970. Os temas políticos, religiosos e sexuais estiveram sempre presentes. Eles disputavam espaço entre as tirinhas ácidas e provocadoras, que ganhavam um toque a mais com os traços característicos de Wolinski, propositadamente simples e imperfeitos.
O autor costumava brincar que, embora ele não tivesse um partido político definido, o humor pertencia às pessoas de esquerda, “porque a direita tem muito compromisso com a ordem”. O pensamento criativo, a ousadia e a falta de pudor dos personagens chegaram ao Brasil como uma bomba, em uma época de extrema tensão e resistência ao regime militar.
Com influência do irreverente cartunista francês, os artistas nacionais passaram a se organizar em torno de um projeto que se tornaria um verdadeiro patrimônio do humor brasileiro: O Pasquim, idealizado por figuras como Millôr Fernandes, Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral. O semanário começou de forma humilde, com a pretensão de ser um jornal de bairro, e acabou como um sucesso editorial que incomodou – e muito – o sistema político vigente.
“Bebíamos avidamente aquele humor satírico, cáustico e muito engraçado. Para o ‘Charlie Hebdo’ nada é sagrado. É o humor em estado bruto. Na época da ditadura era o que precisávamos, um humor político direto e sem muita sutileza”, afirmou em seu site o cartunista Nani Lucas.
O cenário da contracultura da década de 1960 trouxe temas como sexo, drogas, feminismo, divórcio, comportamento e O Pasquim se manteve como um porta-voz das mudanças sociais. Em 1969, uma entrevista com a atriz Leila Diniz e suas polêmicas declarações fizeram com que fosse instalada a censura prévia aos meios de comunicação brasileiros. A Lei de Imprensa foi batizada, de maneira informal, com o nome da atriz.
Revolucionou também na linguagem, trazendo para o jornal expressões mais coloquiais, palavrões e gírias logo assimiladas pela classe popular. Em 1970, praticamente a redação inteira do Pasquim foi presa depois de ter publicado uma sátira do quadro “Independência ou Morte”, em que trazia Dom Pedro gritando, às margens do Ipiranga: “Eu quero Mocotó!”.
Durante os meses de detenção, o periódico continuou nas bancas, trazendo material de colaboradores como Chico Buarque, Rubem Fonseca, Glauber Rocha e Odete Lara. As prisões se sucederam e as bancas que vendiam jornais alternativos eram alvos costumeiros de atentados, até que muitas decidiram não aceitar mais esse tipo de publicação. O Pasquim ainda sobreviveu bravamente até 1991, quando fechou as portas, deixando seu nome de maneira definitiva na história do país.
Tanto Charlie Hebdo quanto O Pasquim – com seus diferentes contextos culturais e históricos – deixaram suas contribuições ao trazerem à tona uma arte provocadora, que instiga o pensamento crítico e a liberdade criativa. Infelizmente, o ataque em Paris nesta semana levou embora, de maneira violenta, o pai de todos os bons sátiros. Wolinski perdeu a vida ao lado dos também brilhantes cartunistas Charb (Stéphane Charbonnier), Cabu (Jean Cabut), Tignous (Bernard Verlhac) e outras oito pessoas na sede do jornal francês.
Em 2011, quando o prédio do Charlie Hebdo foi alvo de um incêndio criminoso por retaliação às caricaturas publicadas sobre o profeta Maomé, a resposta veio com o desenho de um muçulmano beijando um cartunista do periódico, com os dizeres: “O amor é mais forte que o ódio”.
Esperamos que, da mesma forma, o triste episódio possa reacender a discussão sobre a função transformadora da arte e daqueles que se arriscam na defesa do direito à contestação e ao livre pensar. Assim, quem sabe, novos artistas possam, aqui e lá, continuarem com aquilo que sabem fazer de melhor: ensinar-nos que o questionamento é a primeira e mais efetiva arma para a mudança de realidades.