A corrupção que passa em branco pela mídia hegemônica
A Operação Lava Jato é didática em revelar que a mídia relativiza a corrupção para atender seus próprios interesses. Para boa parte da imprensa, divulgar versões é mais importante do que divulgar fatos e se há corrupção no país, ela é obra de 'políticos,' nunca de empresas
por Fabio de Sa e Silva*
Tido, com acerto, como a maior expressão da consciência jurídica moderna (de matriz positivista), Kelsen começa sua famosa Teoria Pura do Direito com grande esforço para diferenciar a ordem jurídica de outras ordens sociais, algumas delas inclusive com caráter normativo, como a moral.
Em uma das passagens mais densas nesse sentido, o autor define a norma jurídica como um “esquema de interpretação”. Exprimindo, assim, uma relação situada no plano do dever ser, a norma jurídica tem vigência destacada da conduta (ser), ao mesmo tempo em que, por meio de atribuição da sanção, imprime a esta mesma conduta o significado (jurídico) de lícito ou ilícito.
Apesar das limitações próprias do momento em que escrevia a sua Teoria Pura, esta passagem de Kelsen antecipava questões que, um século depois, se tornariam triviais para a teoria do direito.
O giro linguístico, operado na filosofia ao longo do século XX, se refletiria de maneira inescapável neste outro terreno. A norma jurídica passaria a ser compreendida como construção discursiva – ou seja, resultado de processo cognitivo que articula texto e contexto e que produz enunciados com pretensão vinculante em relação aos destinos de uma comunidade política.
A partir desse estoque teórico, que começou a ser formado no século XIX e se consolidou no século XX, pode-se dizer com segurança que, para o direito, caracterizar uma pessoa (física ou jurídica) como corrupta requer estabelecer uma correspondência entre uma ou mais condutas desta pessoa e aquilo que um determinado texto legal designa – e sanciona – como corrupção.
Esta operação, por sua vez, encerra um processo fundamentalmente argumentativo, no qual, com o objetivo de convencer, as partes mobilizam argumentos e imagens (frames, diriam os estudiosos da comunicação) que permitam dar apoio para a tomada de decisão por quem tem a prerrogativa de aplicar a norma no caso concreto, determinando, assim, sua vigência e alcance.
É a consciência desse fato – de que a determinação da vigência e do alcance de uma norma jurídica jamais pode ser expediente meramente analítico –, que levou Kelsen a finalizar a Teoria Pura dizendo que o trabalho do jurista era capaz, apenas, de delimitar uma “moldura”, dentro da qual caberia ao aplicador buscar a resposta que entedia a mais correta. E foi como crítica da tentativa dos positivistas de obliterar esse possível espaço de arbitrariedade, inerente ao funcionamento de sistemas normativos modernos, que levou Warat a denunciar o senso comum teórico dos juristas, ou adeptos da crítica jurídica nos EUA a exporem a indeterminação do direito.
O estágio atual da Operação Lava Jato e, em especial, a forma como a imprensa passou a cobri-lo, convida a resgatar essas lições das prateleiras de introdução ao estudo do direito. Afinal, nas últimas semanas, jornais impressos e portais de notícias deram imenso destaque para elementos das defesas (jurídicas) de alguns dos acusados em função do caso.
“Corrupção partiu de políticos,” registrava uma das matérias, com base em trechos da defesa do doleiro Alberto Youssef. “Em nome de partido ou de governo,” Paulo Roberto Costa fazia “achaques” às empresas e aos empresários, assinalava outra matéria, reproduzindo trecho de peça redigida pelos advogados do vice-presidente da Engevix. “Se houve cartel, líder foi Petrobras,” destacava uma terceira matéria, a partir de trechos de peça apresentada pelos advogados da UTC, em procedimento administrativo que corre perante a própria Petrobras.
Para leitores desavisados, pode se tratar do gradativo aparecimento da verdade.
Pode até ser. Mas não é menos provável que se trate, ao inverso, da mobilização intencional de imagens, visando moldar o juízo jurídico sobre a conduta de tais personagens.
Tarefa esta, convenhamos, que ficou fácil no Brasil recente.
Para se contrapor à tese de que os fatos relacionados na ação penal 470, o chamado processo do mensalão, correspondiam apenas à prática de “caixa dois” e, por conseguinte, deveriam ter consequências penais relativamente pequenas, MPF e grande imprensa trataram de conformar um discurso alternativo. Nesse discurso, “políticos” em postos estratégicos no Estado drenavam recursos públicos para abastecer o “partido” e fortalecer o “projeto de poder”.
O ápice da história, como sabemos, foi o uso criativo da teoria do “domínio do fato” não apenas para condenar um personagem como José Dirceu, mas especialmente para buscar caracterizá-lo como “chefe de quadrilha”. Muito embora o crime de formação de quadrilha, ao final do julgamento, não tenha sido caracterizado aos olhos do Tribunal, tudo acabou se passando como se os repasses comprovados no processo fossem parte de um grande plano, no qual o Estado, a população e a própria democracia são vítimas do vilão “partido” e de seus integrantes “políticos”.
Embora tenha se mostrado poderosa no convencimento do Tribunal, a tese firmada pelo MPF e difundida pela imprensa ajudou a obscurecer os mecanismos pelos quais, desde muito antes do mensalão, a corrupção tem sido estruturada no país.
As características do sistema político eleitoral que transformaram a possibilidade de acesso a dinheiro – e não de realização de um projeto – no principal fator de articulação de interesses entre partidos políticos e poderes da República ficaram imunes à crítica.
O papel do setor privado e de funcionários públicos – todos reduzidos a “operadores” – foi, igualmente, desprezado.
E Aécio, conterrâneo de Marcos Valério e do antecedente nunca julgado “mensalão mineiro”, não teve pudores de dizer no debate da Globo, sob aplausos efusivos da claque, que para acabar com a corrupção no país “basta tirar o PT do poder”.
O que os advogados dos empresários e do doleiro Youssef pretendem agora, portanto, é tão somente invocar em favor de seus clientes a tese que, inusitadamente, o próprio MPF construiu. Se há corrupção no país, é obra de “partidos” e “políticos”. Cartéis – um jogo em que todos ganham, menos os contribuintes –, quando ocorreram, foram induzidos pela Petrobras. Empresários e doleiros, se entraram no esquema, foi por “concussão” ou “achaque”.
Parte da imprensa, para a qual divulgar versões parece ser mais importante que buscar os fatos, já indica que continuará se aproveitando da popularidade das velhas teses jurídicas sobre a corrupção e os corruptos – ainda que isto, no final das contas, sirva para blindar, de fato, as mesmas práticas que esses veículos adoram atacar.
Por onde irão Moro e Janot?
*Fabio de Sá e Silva é PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University; Research Fellow na Harvard University