O que Dilma precisa fazer para não ter o mesmo destino de FHC
Ainda há tempo de fazer o que deveria ter sido feito no dia seguinte às eleições para evitar o mesmo destino do segundo governo FHC, que se arrastou sem nada produzir até o fim do mandato. Confira os 6 atos da atual crise política brasileira
Luis Nassif, Jornal GGN
Ato 1 – como construir um desastre em quatro meses
Terminada a eleição, Dilma Rousseff sai vitoriosa. Foi ela quem imprimiu o ritmo final de campanha, intuiu a hora de atacar e garantiu a vitória no segundo turno. Saiu das eleições extenuada física, psicológica e emocionalmente, mas com a sensação de ter-se graduada com louvor em política: nessa eleição a vitoriosa havia sido ela, não Lula.
Assessores alertavam que o terceiro turno não esperaria a trégua tradicional: começaria no dia seguinte às eleições. Virando a esquina estava a bocarra da Lava Jato, os problemas da Petrobras, o desajuste fiscal, o início do desemprego e derrotados que saíram da campanha babando sangue.
O período deveria ser aproveitado para a freada de arrumação, preparar o segundo governo, juntar ideias, organizar grupos de trabalho em cada área. Os desafios a serem superados eram enormes: montar uma estratégia defensiva de resposta à Lava Jato e de saída para a Petrobras; um plano de governo para a agenda positiva; e um trabalho de recomposição da base de apoio.
Mas Dilma sumiu do mapa. Trancou-se por dois meses, com raríssimas aparições públicas, empenhando-se exclusivamente em montar um ministério para chamar de seu. Fechou-se a qualquer sugestão, inclusive de Lula – que se afastou dela.
Entre 5 de novembro e 15 de fevereiro foram 8 aparições públicas – sem discurso, a não ser os protocolares. Seu eleitorado se sentiu abandonado; sua equipe, perdida.
No final do ano todos os Ministros já tinham preparado suas cartas de demissão, colocando simbolicamente o cargo à disposição da presidente. Em fevereiro, pouca coisa decidida. Ministros, secretários, assessores sem saber se colocavam filhos na escola, providenciavam a volta para seus locais de origem, procuravam emprego. As empresas públicas em suspenso, sem planejamento, os Ministérios paralisados, aguardando as definições.
As únicas decisões de Dilma foram entregar a Fazenda a um economista ortodoxo e montar um conselho político para assessorá-la nas estratégias parlamentares.
Quando a longa gestação chegou ao fim, abriu-se o baú da reforma ministerial aguardando que dele saltasse o Anjo Gabriel, anunciando a anunciação. Em seu lugar, pulularam sacis, lobisomens, boitatás e mulas sem cabeça – especialmente as espécies sem cabeça.
O governo perdeu fragorosamente as eleições na Câmara – único objetivo de um Ministério político -; a base de apoio esfacelou-se. O Ministro Joaquim Levy anunciou um pacote fiscal que, necessário ou não, atropelava todo o discurso de campanha de Dilma. Além de abandonado, agora seu eleitorado sentia-se traído, porque sem explicações, pedidos de desculpas, autocríticas seja lá o que lhe permitisse criar um álibi qualquer para continuar defendendo Dilma.
Sem a blindagem na opinião pública, Dilma viu-se acossada por um exército de tiranossauros, uma fauna exótica onde se misturam Fernando Henrique Cardoso (o Marcello Reis do PSDB), Lobão, Aécio, Marcello Reis (o FHC do “Revoltados, Já”) e, por trás, José Serra – com sua notável capacidade de sumir na hora do pau e arrotar valentia nos bastidores (alô, alô! Você que convive com Serra: não é isso mesmo?). Todos devidamente pautados por Marcello Reis, brilhante intelectual emergente desses tempos e cólera, na verdade uma zebra que assumiu a liderança da oposição, dando o tom primário e a palavra de ordem tosca para seus seguidores, além de estimular um comércio crescente de camisetas com ofensas a Dilma.
FHC assimilou o discurso com uma pequena copidescagem para torná-lo mais elegante, o Príncipe curvando-se aos fatos e conformando-se com o sub-comando de um exército saído das profundezas do tempo. Aloyzio Nunes foi a seco, em alguns momentos superando o grande Marcello Reis. E, assim, a oposição foi, a reboque de Marcello e da mídia.
A passeata do dia 15 entra nos telejornais, na agenda de eventos dos jornais impressos, no alarido dos locutores de rádio, firmando-se como grande atração do dia, a ponto de deslocar o horário de um jogo de futebol.
Foi duro o choque de realidade.
Nos dois meses de retiro, a interlocução de Dilma foi só com Aloizio Mercadante, que mais ouviu do que falou, mais obedeceu do que aconselhou e acabou levando a culpa por muitas decisões que não foram dele.
Em prazo recorde, o capital acumulado nas eleições se esvaiu. O handicap de Dilma passou a ser a outra face da moeda: a cara rancorosa do comandante Marcello Reis, do sub-comandante FHC e a desenvoltura agressiva de Eduardo Cunha.
Seguiram-se vários movimentos trôpegos de quem tenta entender o tamanho da jamanta que a atropelou. E toca a juntar os cacos.
Antes de entrar nesse terreno, alguns dados para entender o fator Dilma Rousseff.
Ato 2 – entendendo o fator Dilma
Dilma tem aspectos bastante semelhantes ao do ex-presidente Itamar Franco. Ambos sempre se viram na dimensão de pessoa física, não da institucionalidade do cargo, ou como representantes de projetos, de ideias.
Dilma só reage quando a pessoa física é atingida. Se o PGR (Procurador Geral da República) sugere a demissão da diretoria da Petrobras, afeta a autoridade pessoal de Dilma e ela reage. Se alguém insinua seu conhecimento das falcatruas, também reage indignada. Se os ataques são contra o governo, as instituições, a democracia ou o PT, ignora em nome do republicanismo.
Vasculhando a história do país, não se encontrará presidente mais honesto, patriota e anti-arreglos. Dilma abomina qualquer forma de desonestidade e mesmo da manipulação pessoal do interesse público. E a pessoa física não consegue aceitar situações que o homem de Estado acataria de forma pragmática em nome do projeto político.
Foi assim que Dilma tomou-se de uma ojeriza expressa por Eduardo Cunha, quando chegaram ao seu conhecimento rumores sobre os jogos de interesse bancados pelo deputado.
Por duas vezes Cunha enfiou em uma medida provisória a possibilidade de construção de aeroportos particulares, medida que interessava diretamente à Camargo Correia e à Andrade Gutierrez. Por duas vezes, Dilma vetou.
Nos bastidores, falava-se em financiamento de até R$ 80 milhões para a bancada de Cunha, caso a medida passasse. Outra participação ativa foi na Lei dos Portos, um lobby explícito em favor de grupos portuários.
Esse maneira de pensar e agir foram decisivas na montagem da estratégia política de não aceitar qualquer acordo prévio com Eduardo Cunha nas eleições para a mesa da Câmara. E explica grande parte dos conflitos com Lula, cujo pragmatismo abriu espaço para o fortalecimento dessa fauna.
E, aí, entra-se em um terreno pantanoso, ainda não suficientemente analisado pelas instituições nacionais, especialmente pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e pelo Ministério Público: o avanço político do crime organizado.
Ato 3 – o avanço político do crime organizado.
A lista HSBC expõe, de forma ampla, o que foi o ambiente cinza do mercado financeiro internacional depois da liberalização financeira, uma mixórdia onde se misturavam caixa 2, dinheiro do narcotráfico, do terrorismo internacional, da corrupção política, das jogadas financeiras.
É essa zona cinzenta que favorece a proliferação do crime.
Na política também existe uma zona cinzenta, um cenário que favorece a expansão da influência do crime organizado. No caso brasileiro, a zona cinzenta ganhou dimensão quando o STF implodiu o sistema partidário e permitiu a proliferação dos pequenos partidos. E, depois, quando o financiamento privado de campanha decidiu investir na sua própria bancada, em vez de bancar políticos individualmente.
Sempre houve políticos bancados pelo crime mas, em geral, eram subordinados à organização partidária que restringia sua capacidade de atuação no Congresso. Com o pluripartidarismo à brasileira, esse disciplinamento deixou de existir. Abriu-se uma caixa de Pandora de difícil equacionamento, especialmente depois que os partidos majoritários passaram a se engalfinhar em uma luta fratricida.
Os elogios de líderes do PT e do PSDB a Eduardo Cunha, no seu depoimento espontâneo à CPI da Petrobras, é um dos episódios mais vexatórios da história do Congresso e mais significativo desses tempos sem rumo.
O avanço do crime organizado não se deu apenas na atividade parlamentar, mas também em outros territórios extra-institucionais, como a imprensa.
O episódio que inaugurou essa nova fase foi a parceria entre a revista Veja e a organização criminosa de Carlinhos Cachoeira.
Não era mais a imprensa se aliando a colarinhos brancos sofisticados, a golpistas do mercado financeiro, a banqueiros suspeitos, mas à corrupção chula de bicheiros e contraventores.
Cachoeira elegeu um senador, Demóstenes Torres.
Veja transformou-o em um cruzado contra a corrupção, deu-lhe status de celebridade no mercado de opinião. Com o poder conquistado, Demóstenes fazia os jogos de interesse de Cachoeira e da Abril (na matéria da Veja, foto ao lado, apenas Demóstenes é réu, os demais são apenas coadjuvantes para deixá-lo em boa companhia).
A CPMI de Cachoeira poderia ser o início da grande luta política contra o crime organizado ao desvendar as ligações de Cachoeira com a Veja e com empreiteiras – como a Delta -, que por sua vez mantinham ligações estreitas com o mundo político, a começar do então governador do Rio Sérgio Cabral.
A CPMI mostrou a especialização que se formara no mercado de corrupção. O bicheiro prospectava contratos e licitações no setor público, passíveis de corrupção, uma atuação que poderia começar nas discussões de projetos de leis e emendas orçamentárias e se desdobrar por repartições públicas federais e estaduais; aliava-se a uma empresa parceira, que assumia a fase legal do projeto; garantia a blindagem com a parceria com a mídia e com os padrinhos políticos.
Na série “O caso de Veja” narro como essa parceria provocou o escândalo Marinho que alijou dos Correios o esquema Roberto Jefferson para a entrada de parceiros de Cachoeira – uma outra quadrilha, desbaratada dois anos depois pela Polícia Federal.
O Ministério Público cochilou ao não avançar nas investigações abertas pela CPMI de Cachoeira. Seria o ponto de partida para o início da verdadeira guerra contra a corrupção política mais visceral, aquela que envolve o crime organizado.
A Lava Jato abre uma nova possibilidade para se desbaratar esse modelo, ao identificar seus desdobramentos regionais. E o MPF terá que sair da zona de conforto e enveredar por caminhos nunca dantes navegados: as interseções do crime organizado com o país institucionalizado, incluindo aí a mídia e o Congresso.
É nesse terreno pantanoso que a pessoa física Dilma Rousseff precisa entrar, enfrentando um jogo sujo, tomada por pruridos próprios das pessoas de bem, mas sem o senso prático das pessoas de Estado, juntando os cacos e retomando as redes da governabilidade. E a mãe de todas as batalhas, o por assim dizer caco-mor, é a recomposição da base política.
Ato 4 – o início da reação política.
Em 2010, Dilma tinha à mão o maior conhecedor de Congresso, o vice presidente Michel Temer. Dilma esvaziou-o tanto que, tendo por alavanca apenas a atuação sobre comissões temáticas da Câmara, o notório Eduardo Cunha logrou o controle do PMDB.
Na 5a feira foi anunciado o novo conselho político, desta vez enriquecido por profissionais: Michel Temer, Eliseu Padilha, Eduardo Braga, Gilberto Kassab e Aldo Rebello, o mais diplomático de seus Ministros, mantido Aloizio Mercadante, o menos político de seus ministros.
Foi tão rápida a decisão que na 5a, por volta das 19:30, Kassab ainda não sabia do novo conselho. E Padilha foi avisado pelos jornais.
Será um trabalho complexo, que ajudará a definir a nova base de apoio e, com ela, um novo Ministério. O atual morreu de velhice prévia.
Não será tarefa fácil. Cunha impõe um receio aos adversários que vai muito além do mero confronto político, como atesta a maneira cautelosa com que o vice presidente Temer refere-se a ele.
Mas nenhuma estratégia política será bem sucedida sem se construir um cenário econômico razoável. Por isso mesmo, o segundo caco a ser juntado é o econômico.
Ato 5 – recompondo o incêndio econômico
Ainda há muito fato negativo pela frente, os desdobramentos do pacote fiscal, o aumento do desemprego, da inflação. Mas o governo começa a despertar da inércia.
O primeiro ato foi a substituição de Graça Foster na presidência da Petrobras. A teimosia de Dilma atrasou por seis meses o ajuste e quase deixou o gigante de joelhos. A entrada de Ademir Bendine, com um plano claro de reestruturação, deu início à volta à normalidade. Já se tem um plano de ação pela frente, com a negociação com as agências de rating e os credores.
O segundo ato – já na reta final – foi a montagem do grupo de bancos públicos e privados para garantir a manutenção da rede de fornecedores da Petrobras nessa fase mais crítica.
O terceiro ato – em andamento – é o redesenho das concessões em infraestrutura e o encaminhamento do PAC 3. Não se pretende iniciar obras novas, nem novos investimentos, dada a penúria fiscal, mas completar as que estão em andamento.
No campo das concessões, o Planejamento já está trabalhando com o setor privado na definição dos projetos executivos, dentro da modalidade de licitar também o projeto. As conversas estão indo bem, os primeiros resultados deverão aparecer em breve e as primeiras licitações deverão ocorrer até o final do ano.
Em geral, leva 9 meses entre o início dos trabalhos e a licitação na rua. Haverá um interregno até o final do ano e, depois, entrará em voo de cruzeiro.
Enquanto isto, haverá um longo desafio pela frente de restaurar o ânimo social do país.
Ato 6 – a dura reconquista da confiança
É forçar a barra julgar que as reações contra Dilma e o PT sejam meras manifestações das classes A e B. Pode ser uma visão paulistana ou carioca, mas o ódio contra o PT e contra Dilma desceu na escala social.
Gilberto Carvalho já alertara, antes mesmo das eleições, sobre a profundidade da resistência contra ambos.
Será necessário um penoso processo de reconstrução da credibilidade perdida, algo que passa pela retomada do crescimento (que dificilmente ocorrerá antes de dois anos), pela definição de um programa de governo que possa mostrar a retomada do futuro, mesmo que em algum ponto distante, pela revitalização dos programas sociais, pela retomada de políticas industriais eficientes.
O governo tem todas armas à mão. Os últimos anos geraram um enorme estoque de ideias centrais em diversas áreas, no desenvolvimento regional, nas políticas sociais, nos componentes de políticas industriais modernas, nos modelos de parceria universidade-empresas, nos próximos passos das políticas educacionais.
Mas há um problema crítico de comunicação interna no governo.
Dilma não tem a menor ideia sobre os estudos já desenvolvidos, as ideias-chave já gestadas, para poder tecer as amarras de um plano integrado de governo.
Ainda há tempo de fazer o que deveria ter feito no dia seguinte às eleições: um enorme brainstorm juntando todas as áreas do governo, com assessoria de bons gestores e bons analistas políticos, visando renascer das cinzas as ideias centrais sobre o que poderá ser o segundo governo Dilma.
Para não ter o mesmo destino do segundo governo FHC, que se arrastou sem nada produzir até o fim do mandato. E não havia tanto ódio no ar quanto agora.