Repórteres da CartaCapital são 'atirados aos leões' em ato pró-impeachment
Organizadores do ato pró-impeachment usam carro de som para jogar multidão contra jornalistas de CartaCapital que trabalhavam na cobertura do evento. Por pouco, profissionais não foram linchados e precisaram sair do local escoltados
As manifestações de domingo em defesa do impeachment da presidente Dilma Rousseff continuam, nesta semana, ganhando as principais manchetes na imprensa, protagonizando os debates nas redes sociais e fazendo parte das conversas cotidianas no trabalho, na universidade ou dentro de casa.
Alguns aspectos dos protestos mereceram destaques para o bem e para mal. A mobilização além do esperado foi motivo de empolgação entre os organizadores das marchas. De acordo com o instituto Datafolha, só em São Paulo, cidade que registrou o maior número de pessoas no ato, 210 mil saíram às ruas. Por outro lado, o discurso de ódio, as demonstrações de intransigência e a apologia à ditadura militar marcaram negativamente os protestos.
A impossibilidade de jornalistas exercerem a sua profissão em um evento aberto, no meio da rua, é algo que precisa ser repudiado. Foi o que aconteceu com os jornalistas da revista CartaCapital que estavam domingo na avenida paulista a trabalho. Chamados de “sujos”, “corruptos” e “mentirosos”, por pouco não foram linchados. É de se lamentar que o conceito de ‘liberdade de expressão’, tão apregoado na teoria por alguns manifestantes, se dissolva por completo quando dele se mais precisa: na realidade prática.
A CartaCapital divulgou uma nota lamentando o ocorrido. Reproduzimos abaixo:
Em meio a uma manifestação integrada por pessoas sem pudor de pedir a volta da ditadura, a hostilidade à imprensa partiu justamente dos ditos liberais anti-Dilma. Foi com essa situação que a reportagem de CartaCapital se deparou neste domingo 15 de março ao ser recebida no carro de som do Movimento Brasil Livre (MBL) na avenida Paulista, em São Paulo.
Depois de reunir depoimentos mostrando a crescente pluralidade da indignação com o governo petista, a reportagem se dirigiu ao veículo onde estavam os dirigentes do MBL, na frente do Masp, para colher sua versão sobre os atos. A recepção foi amistosa, e transpareceu o receio de alguns integrantes do grupo de se pronunciarem no lugar dos líderes, Kim Kataguiri, de 19 anos, e Renan Ferreira Santos, de 31. No carro de som, o primeiro recebeu a reportagem para uma entrevista que prosseguia normalmente até alguns de seus colegas no MBL, conduzidos por Tom Martins, começarem a incitar as dezenas de milhares de pessoas contra os jornalistas. Gritos de “sujos”, “corruptos”, “mentirosos”, entre outros, partiam de uma multidão ensandecida, que impediu a saída da equipe mesmo diante da tentativa de “escolta” montada pelo MBL.
Vídeo:
Martins e seus companheiros estavam ali claramente tomados pelo sentimento de rejeição ao PT, o principal denominador comum das massas presentes nas ruas no domingo 15. Devidamente insuflada, como vem sendo nos últimos anos por políticos e jornalistas, entre outros, essa rejeição se transforma em ódio ao Partido dos Trabalhadores e a qualquer bandeira, pessoa ou instituição percebida, corretamente ou não, como ligada ao partido.
No caso de CartaCapital, esse processo ocorre por meio de uma dupla campanha, que mistura difamação e uma tentativa de tornar a publicação invisível. A primeira se realiza quando a transparência de ter um candidato, e comunicar isso ao leitor, é tratada como alinhamento incondicional. A segunda se confirma a cada vez que um editor da grande imprensa corta citações a CartaCapital em reportagens ou mesmo quando alerta seus funcionários a respeito de solidariedade excessiva nas redes sociais para com colegas da revista vítimas de arbitrariedade policial.
No caso dos indivíduos, a situação é mais grave. O sujeito enxergado como “petista”, seja por rejeitar o PSDB, por ter votado 13 eventualmente ou por apenas trabalhar em uma publicação com candidato declarado, é tratado como comprado ou cooptado e, portanto, ilegítimo. Em um estágio mais grave, o “petista” é desumanizado, transformado em inimigo, passível de ser hostilizado e empurrado enquanto trabalha. Deve ser jogado aos leões em uma situação que, sem ajuda, poderia ter um desfecho bem mais grave.
Esse processo é particularmente perturbador pois ocorre de forma concomitante às críticas, corretíssimas aliás, feitas ao vocabulário por vezes belicoso e sectário do ex-presidente Lula e do PT e também ao uso do execrável termo “PIG” por parte de certos jornalistas. Enquanto critica-se o PT, adota-se como prática de retórica um dos mais torpes métodos de alguns membros do partido.
Aos poucos, o país em que “política não se discute” se torna o país em que a discussão política é feita por métodos virulentos e antidemocráticos, uma tendência simbolizada por pedidos de divisão territorial e cancelamento do sufrágio universal, como ocorreu nas últimas eleições. Nos textos de determinados jornalistas, nas falas de alguns ativistas e nas postagens de milhões de pessoas em redes sociais está o caldo cultural da violência política que espreita o País, cada vez mais claramente.
Quanto ao MBL, a postura hostil não é exatamente uma surpresa. Em 6 de março, Kim Kataguiri postou um vídeo na página do movimento gravado, de madrugada, em frente à redação de CartaCapital. Foi uma óbvia forma de atrelar a publicação ao alvo de seus protestos, o PT, que considera ser um partido “canalha”, “totalitário” e “nêmesis da liberdade e da democracia”. Diante do incidente provocado pelos colegas, o garoto se omitiu. Renan, seu parceiro, preferiu segurar um dos jornalistas pelos dois braços e fez menção de bloquear as filmagens. Martins caiu em si ao ser lembrado de que os jornalistas eram seres humanos como ele, com famílias e problemas como os de qualquer outro. Arrependido, montou uma segunda “escolta” com outros integrantes do MBL, alguns lamentando o fato potencialmente negativo para a imagem do movimento e outros genuinamente preocupados, como o jornalista do SBT do Paraná Paulo Eduardo Martins, crítico ardoroso do PT, que liderou a “comitiva” de proteção.
O episódio, infelizmente, não foi um aprendizado para a liderança do grupo. Horas depois do fato surgiu na página do MBL uma postagem que exibia um manifestante anti-petista como tolerante e pacífico (em contraposição a um suposto petista violento), contrariando os fatos ocorridos em frente ao Masp. É um tapa na cara, que ultrapassa a barreira da desfaçatez e flerta com a cafajestagem. Para o próximo 12 de abril, o Movimento Brasil Livre já marcou um novo protesto. Quem sabe lá eles esclareçam: o Brasil que imaginam é livre para quem? E, mais importante, livre de quem?