O mito da ética e da moralidade política no Chile
Chile: santos do pau oco. Escândalos abalam o mito de um país tido como isento de corrupção. Muitos chilenos estão em choque após descobrirem que a imagem de honestidade de seu país era uma ilusão
O Chile pós-golpe quis apresentar ao mundo uma imagem sanitizada de país nórdico em plena América Latina e houve quem acreditasse, pois a Transparência Internacional deu ao país uma nota excelente no seu Índice de Percepção de Corrupção de 2014 e o pôs em 21º lugar, juntamente com o Uruguai e à frente de países como a Áustria, em 23º, e a França, em 26º (o Brasil empatou com a Itália em 69º lugar).
Essa pretensão está agora em frangalhos. Primeiro, foi o caso do filho da presidenta. Há dois anos, o politólogo Sebastián Dávalos Bachelet pediu ao Banco do Chile, parceria entre a família Luksic e o Citigroup, 10 milhões de dólares para um projeto da Caval, empresa da esposa cujo capital era de apenas 10 mil dólares. Dávalos falou com Andrónico Luksic e o crédito saiu no dia seguinte à vitória da mãe no segundo turno, em 16 de fevereiro de 2013. Dois anos depois, a Caval vendeu o terreno com 4 milhões de lucro. A revista Qué Pasa divulgou o caso e Dávalos teve de se demitir da direção sociocultural da Presidência e deixar o Partido Socialista, assim como a esposa. Michelle Bachelet disse ignorar a transação, mas sua popularidade foi atingida.
Isso é trivial, porém, em comparação com o “Pentagate” que no sábado 7 levou à prisão Carlos Eugenio Lavín e Carlos Alberto Délano, donos do grupo financeiro Penta, mais dois executivos do seu banco de investimentos, e Pablo Wagner, ex-secretário da Mineração de Sebastián Piñera celebrizado pelo resgate dos mineiros em 2010. Envolve a emissão de faturas falsas em nome de integrantes da família e colegas para sonegar impostos e contribuições ilegais para a União Democrata Independente (UDI). Esse partido foi fundado por Jaime Guzmán, assessor de Augusto Pinochet responsável por seus discursos e pelas salvaguardas da Constituição de 1980, com as quais quis tornar intocável o modelo neoliberal e o poder e a impunidade dos militares. A maioria dessas disposições foi acatada pelos governos de centro-esquerda de 1989 a 2005 e só agora Bachelet faz um esforço sério para desmontá-las.
O Grupo Penta, fundado em 1980, possui 30,8 bilhões de dólares em ativos ou cerca de 11% do PIB chileno. Segundo o procurador Carlos Gajardo, é um conglomerado com a sonegação como parte de sua cultura. “Do mais alto executivo ao menor dos faxineiros, todos submeteram faturas falsas. O Grupo Penta evoluiu como uma máquina para fraudar o Estado.” Délano, indignado, respondeu que sua empresa “é uma máquina para criar emprego, empreendimento, educação, saúde, banco, pensões, seguros e projetos imobiliários para milhares”, mas isso não o isentou de ir para o cárcere com o sócio. Ambos ficarão detidos durante os quatro meses de investigação e podem receber pena de até 15 anos de cadeia.
A investigação começou pelo fiscal da Receita Iván Álvarez, detido em setembro após mensagens anônimas alertarem para suas alterações clandestinas de arquivos sobre declarações de impostos em troca de comissões. Foram 122 os favorecidos por esse esquema, que teria permitido sonegar 4 milhões de dólares, entre eles Hugo Bravo, então principal executivo do grupo. Ao se examinarem suas contas, descobriu-se também o uso de faturas falsas para alterar a contabilidade da holding e evadir impostos. Ao ser interrogado, Bravo admitiu a participação na trama e revelou o financiamento ilegal a políticos da UDI, alguns dos quais tiveram cargos de primeiro plano na era Piñera: Ena von Baer era porta-voz da Presidência, Laurence Golborne, ministro de Minas e Energia e depois de Obras Públicas, Jovino Novoa, presidente do Senado, e Pablo Zalaquett, prefeito de Santiago. O partido garante que, se houve algum financiamento irregular, “ninguém usou recursos de campanha para benefício pessoal nem teve intenção ilícita”, e os acusados falam de “cortina de fumaça para ocultar os problemas do governo”.
Além desses e de outros nomes da direita, foi citado Andrés Velasco, economista da Concertación, ministro da Fazenda do primeiro governo Bachelet e seu rival na disputa da candidatura presidencial em 2013, antes de fundar seu partido de centro-esquerda Fuerza Pública. Segundo ele, o dinheiro recebido do Penta remunerou uma palestra profissional aos executivos do grupo, não relacionada à sua campanha política.
A isto se soma o processo centrado em Julio Ponce Lerou, controlador do grupo Soquimich (SQM) e ex-genro de Pinochet. No ano passado, foi punido por fraudes contra acionistas minoritários, principalmente fundos de pensão, por meio da manipulação de balanços. Foi multado em 70 milhões de dólares, seus executivos em mais 50 milhões e corretoras de valores em mais 30 milhões. Agora se sabe que o grupo emitiu faturas falsas para políticos da UDI e a alguns da coligação de centro-esquerda. Soma-se a isso que políticos de ambos os lados receberam como funcionários ou consultores dos grupos Luksic, Penta e SQM.
Foi um choque para muitos chilenos descobrir que a imagem de honestidade de seu país era uma ilusão. É uma oportunidade para reformar os financiamentos de campanha e Bachelet prometeu um projeto de lei em dois meses. Mas o clima é de pessimismo por problemas semelhantes aos de outros emergentes, inclusive queda do ritmo de crescimento (apenas 1,8% em 2014), inflação em alta (0,4% em fevereiro, 4,4% em 12 meses ante uma meta de 3%) e subida do dólar no câmbio local (16% desde julho). Há o risco de a crise se somar à percepção de inutilidade da política partidária e cinismo ante as instituições formada por mais de duas décadas de imobilismo e prejudicar a própria tentativa de efetuar reformas sérias.
Antonio Luiz M. C. Costa, Carta Capital