O Tempo e o Vento: Pergunte ao pó
Publicado em 16 Nov, 2010 às 22h44
A exemplo da coluna Esquecer para Lembrar, iniciada na semana anterior, Pragmatismo Político agora dedica espaço para outra forma de exercer a reflexão sadia. Em O Tempo e o Vento citamos e sugerimos leituras sem distinção de categorias, mas que de algum modo nos causam impacto. Homenageamos autores, dos eternizados pelo legado aos contemporâneos que trilham com redenção o caminho literário, filosófico e sociológico.
Da subjetividade à razão, da paixão à objetividade, mas com pretensões limitadas. Este é O Tempo e o Vento.
Por razão desconhecida, escolhi John Fante para dar o pontapé inicial. Talvez pela frequente presença dos autores americanos nas minhas mais recentes aventuras literárias. Posso antecipar que entre os americanos sempre achei apaixonante as narrativas de Fante. São textos que fazem com que o leitor se interesse em conhecer os personagens principais, além de falar da poesia. O livro é Pergunte ao pó, o melhor de Fante – evidente, esta é uma opinião pessoal – e logo abaixo você lerá o prefácio de Charles Bukowski para a obra.
Lembrem-se: literatura não tem nada de obrigatório. Qualquer literatura enfiada goela abaixo é terrível. Portanto, o critério (aqui) é todo do leitor.
Prefácio de Charles Bukowski para o livro Pergunte ao Pó
Eu era um jovem, passando fome, bebendo e tentando ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, e nada do que eu lia tinha a ver comigo ou com as ruas ou com as pessoas que me cercavam. Parecia que todo mundo estava fazendo jogos de palavras, que aqueles que não diziam quase nada eram considerados excelentes escritores. O que escreviam era uma mistura de sutileza, técnica e forma, e era lido, ensinado, ingerido e passado adiante. Era uma tramóia confortável, uma Cultura-de-Palavra muito elegante e cuidadosa. Era preciso voltar aos escritores russos pré-Revolução para se encontrar alguma aventura, alguma paixão. Havia exceções, mas estas exceções eram tão poucas que a leitura delas era feita rapidamente, e você ficava a olhar para fileiras e fileiras de livros extremamente chatos. Com séculos para se recorrer, com todas as suas vantagens, os modernos não chegavam a ser muito bons.
Eu tirava livro após livro das estantes. Por que ninguém dizia algo? Por que ninguém gritava?
Tentei outras salas na biblioteca. A seção de religião era apenas um vasto pantanal… para mim. Entrei na de filosofia. Encontrei alguns alemães amargos que me animaram por algum tempo, depois passou. O que eu precisava parecia estar ausente por toda a parte.
Tentei geologia e achei curiosa, mas, no fim, não sustentável.
Encontrei alguns livros sobre cirurgia e gostei deles: as palavras eram novas e as ilustrações maravilhosas. Apreciei e memorizei particularmente a operação do cólon.
Então larguei a cirurgia e voltei à grande sala dos escritores de romances e de contos. (Quando havia suficiente vinho barato para beber eu nunca ia à biblioteca. Uma biblioteca era um bom lugar para se estar quando não se tinha nada para comer ou beber e a senhoria estava à procura de você e do aluguel atrasado. Na biblioteca, pelo menos, você podia usar os toaletes.) Eu via um bom número de outros vagabundos ali, a maioria dormindo sobre os livros.
Eu continuava dando voltas na grande sala, tirando livros das estantes, lendo algumas linhas, algumas páginas, e depois os colocando de volta.
Então, um dia, puxei um livro e o abri, e lá estava. Fiquei parado de pé por um momento, lendo. Como um homem que encontrara outro no lixão da cidade, levei o livro para uma mesa. As linhas rolavam facilmente através da página, havia um fluxo. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por outra como ela. A própria substância de cada linha dava uma forma à página, uma sensação de algo entalhado ali. E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor entrelaçados a uma soberba simplicidade. O começo daquele livro foi um milagre arrebatador e enorme para mim.
Eu tinha um cartão da biblioteca. Tomei o livro emprestado, levei-o ao meu quarto, subi à minha cama e o li, e sabia, muito antes de terminar, que aqui estava um homem que havia desenvolvido uma maneira muito peculiar de escrever. O livro era Pergunte ao pó e o autor era John Fante. Ele se tornaria uma influência no meu modo de escrever para a vida toda. Terminei Pergunte ao pó e procurei outros livros de Fante na biblioteca. Encontrei dois: Dago Red e Espere a primavera, Bandini. Era da mesma ordem, escritos das entranhas e do coração.
Sim, fante causou um importante efeito sobre mim. Não muito depois de ler esses livros, comecei a viver com uma mulher. Era uma bêbada pior do que eu e tínhamos discussões violentas, e frequentemente eu berrava para ela: “Não me chame de filho da puta! Eu sou Bandini, Arturo Bandini!”
Fante foi meu deus e eu sabia que os deuses deviam ser deixados em paz, a gente não batia nas suas portas. No entanto, eu gostava de adivinhar onde ele teria morado em Angel’s Flight e achava possível que ainda morasse lá. Quase todo dia eu passava por lá e pensava: é esta a janela pela qual Camilla se arrastou? E é aquela a porta do hotel? É aquele o saguão? Nunca fiquei sabendo.
Trinta e nove anos depois reli Pergunte ao pó. Vale dizer, eu o reli neste ano e ele ainda está de pé, como as outras obras de Fante, mas esta é a minha favorita, porque foi minha primeira descoberta da mágica.
Por meio de outras circunstâncias, finalmente conheci o autor este ano. Existe muito mais na história de John Fante. É uma história de uma terrível sorte e de um terrível destino e de uma rara coragem natural. Algum dia será contada, mas acho que ele não quer que eu a conte aqui. Mas deixem-me dizer que o jeito de suas palavras e o jeito do seu jeito são o mesmo: forte, bom e caloroso.
E basta. Agora este livro é seu.
Charles Bukowski
05-06-1979
Pragmatismo Politico