O desabafo de um estudante transexual negro em sua formatura na UnB
O primeiro estudante transexual da Universidade de Brasília (UnB) que institucionalizou o direito ao uso do nome social se formou e, em um discurso dirigido à academia, se esforçou para fazer a instituição rever seus conceitos.
O primeiro estudante transexual da Universidade de Brasília (UnB) que institucionalizou o direito ao uso do nome social se formou e, mais uma vez, trabalha para fazer a instituição rever seus conceitos.
Marcelo Caetano Zoby, 25 anos, surpreendeu ao discursar na colação de grau do curso de ciência política, na quinta-feira (18).
Em um discurso dirigido à academia, o estudante questiona e impessoalidade da universidade e seu papel na implementação das políticas públicas.
Marcelo denuncia o estudo da raça e da sexualidade do ponto de vista branco e masculino e também questiona a marginalização da população LGBT e dos negros.
“Se a Democracia existe, ela não é para todos,
Mas hoje, saímos daqui com o poder de dizer,
É nossa a responsabilidade de combater esse genocídio.”
Em defesa à política pública que reserva vaga aos estudantes negros, na qual a UnB é pioneira, o estudante enfatizou que “cotas não são presentes”.
“Não pense que entramos aqui por favor,
Que não merecemos,
Ou que qualquer coisa aqui nos foi dada.”
Veja a íntegra do discurso:
“do alto dos seus títulos
daí de onde você vê
a universidade é pra quê?
pra caber quem?
dentro da sua sala
você se esconde pra não ver lá fora
ou pra quem tá lá fora não te ver?
o conhecimento que você produz
é pro povo ou pro cnpq?
pra sociedade ou só pra enfeitar lattes?
se quem tá dentro não vê os muros em volta
quem vê de fora não enxerga nada além da muralha
se no meio da aula você diz que eu tô todo errado
eu te digo que pra chegar até aqui
atravessei cerca de arame farpado
você escreve artigo, livro, capítulo, resumo, paper, ensaio
fala da gente
sem nem lembrar de olhar no olho da nossa gente
alcança seus índices de produtividade
no dia seguinte,
não sabe nossa cara, nosso nome, desconhece nossa identidade
nossa cor é objeto de pesquisa
nosso sexo, etnografia
nossas casas são seu campo
e seu olhar branco, macho, eurocentrado
justifica-se como metodologia
na sua nota da capes o que conta mais:
seus pontos ou nossa voz?
sua tese ou nossa história?
o que vale mais:
suas oito páginas de referência ou a nossa ancestral experiência?
e não pense que entramos aqui por favor
que não merecemos ou que qualquer coisa aqui nos foi dada
cotas não são presente
são só um pequeno pedaço do que nos devem
chegamos aqui forjados pelos que nos precederam
não se esqueçam:
nossos passos vêm de longe
se estou aqui hoje é só porque tantos outros já vieram
erguer muros não vai nos impedir de entrar
se precisar, nós vamos derrubar
tomar de assalto o que é nosso
e não queremos só um lugar à mesa
queremos interromper o jantar
e começar tudo de novo
reerguer uma universidade que seja do povo e para o povo
onde não apenas se fala sobre o outro
mas onde o outro se torna um de nós que é capaz de falar sobre si mesmo
não criem a ilusão de que tudo que se diz na academia é a verdade
mas lembrem-se: é sempre poder
inclusive, o poder de dizer o que é a verdade
como cientistas políticos termos lugar para dizer o que é a democracia
vivemos em uma, nossos professores vão dizer
Estado Democrático de Direito é o seu nome
Será mesmo?
pois vamos aos fatos:
Planaltina, Distrito Federal, 26 de Maio de 2013. Antonio Pereira de Araújo, auxiliar de serviços gerais, é detido em abordagem padrão. Conduzido à delegacia, nunca mais foi visto.
Rocinha, Rio de Janeiro, 14 de Julho de 2014. Amarildo Dias de Souza, pedreiro, limpava peixe na porta de casa quando policias que conduziam a operação “Paz Armada” o abordaram. Nunca mais foi visto.
Grajaú, São Paulo, 16 de Outubro de 2015. Yago Pedrosa Araújo, estudante de 16 anos, é parado em mais uma abordagem daquelas: padrão! 4 dias depois é encontrado morto, executado. Nunca mais foi visto vivo.
Infelizmente, a lista poderia continuar: Cláudia Ferreira da Silva, Cristian do Carmo, Rafael de Souza Paulino, Roberto de Souza Penha, Carlos Eduardo da Silva de Souza, Wilton Domingos Junior, Cleiton Correa de Souza e tantos outros.
Os mortos da democracia se acumulam
Já não se escondem mais nos porões
Mas ficam expostos, em plena luz do dia
Nas vielas de uma quebrada qualquer
Se a Democracia existe, ela não é para todos
Mas hoje, saímos daqui com o poder de dizer
É nossa a responsabilidade de combater esse genocídio
Um genocídio que começa aqui dentro
Quando são brancos todos os nossos professores
Quando é branca e masculina toda a nossa bibliografia
Se a ciência pensa que tem todas as verdades
Digo-lhe agora que não
Que não sabe o que é caminhar com a cabeça na mira de uma HK
Que não sabe o que é ter o corpo vendido por séculos
Ter a mente diminuída, ver todo um povo destruído
Essa ciência que trabalha com hipóteses
E esquece que o que chama de objeto é feito da carne viva
Ainda aguardamos pelo dia
Em que o preto estará no rosto
Mais do que nas becas
Em que as travestis estarão na escola
Mais do que na esquina
Se esse dia não chega, a gente toma!
Nada nunca foi dado, porque agora seria?
mas ainda vai chegar o dia
Em que outros tantos como eu
Estarão aqui e poderão dizer
Tudo nosso, nada deles!”
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Grasielle Castro, Huffpost