A história, o grito e o muro
Cássio Garcia Ribeiro* e Mário Tiengo*, Pragmatismo Político
Muito se compara o que aconteceu no Brasil em 1964 com o momento que vivemos agora. Talvez coincida o clima beligerante, a preocupação das pessoas com o futuro do país, o agito político e a mídia golpista insuflando as pessoas à embarcarem em sua empreitada anti-democrática. No entanto, se falou tanto sobre riscos de um novo golpe militar, pedido por muitos, mas estamos recebendo um golpe judiciário-midiático – e essa é uma diferença e tanto.
A outra grande diferença é quem em 1964 havia o ingrediente do medo, num contexto de auge da Guerra Fria mundial, numa disputa entre países capitalistas e os que praticavam um socialismo autoritário, de modo que o pânico foi incutido e predominou na população, dando sustentação ao golpe militar – e sabemos que a tática da construção do terror é extremamente eficaz. Assim, nesse contexto bipolar, espalhou-se na sociedade brasileira a visão de que o país estaria tomando o caminho errado com Jango e suas propostas de reformas estruturais.
Agora, o recheio de tudo isso é o ódio, um ódio expansivo, histérico, agressivo, jamais visto nesse país. Um ódio que caminha lado a lado com a ignorância, a falta de leitura histórica e de contexto; que se sustenta, em parte, em parcelas da população que negam a reflexão diante de qualquer notícia apócrifa, de qualquer publicação tendenciosa ou mesmo criminosa em redes digitais e na grande mídia. O copo está transbordando, todas as frustações dos “brasileiros de bem” parecem ter sido canalizadas para um inimigo comum a ser combatido e exterminado a qualquer preço. Nesse sentido, não há espaço para o diálogo, não se admite pontos de vistas divergentes. Assim, criou-se um terreno fértil à intolerância, à impossibilidade de convívio civilizado entre os diferentes e à necessidade de resolver tais divergências na base da violência física. Tempos sombrios.
Uma segunda parte relevante da sustentação desse ódio é o forte sentimento classista da sociedade brasileira, em especial ao encontrado nas camadas médias e altas; nesse quesito, pode-se perceber como se dá a luta de classes na prática, que é a luta pelo acesso, pelas conquistas, pela inclusão e igualdade. Portanto, as políticas “populistas” e para “sustentar vagabundos” são rechaçadas de maneira enfática.
Claro que há outros componentes que não podem ser desconsiderados e influem na insatisfação da população, ou parte significativa dela, com a gestão do governo e as políticas adotadas, porém o foco deste texto é outro – a criação e manutenção de um estado de conflito e intolerância a níveis e extensão alarmantes, que não servem aos interesses do país. Além disso, para discorrer sobre governo no Brasil, precisaríamos incluir os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -, e as esferas governamentais – federal, estaduais e municipais. Considerar os órgãos públicos, a administração indireta, a política internacional, a economia mundial e diversos outros assuntos que tornariam a abordagem muito mais ampla, menos simplista e dicotômica; não aderindo à falsa batalha maniqueísta entre o bem e o mal, que fabrica vilões para criar heróis.
Alguns pontos semelhantes entre 1964 e 2016: o forte viés moralista usado como mote para se dar o bote. Estratagema também usado em outros momentos da história – o destaque é que não é preciso os acusadores possuírem moral ilibada nem provar solidamente qualquer tipo de acusação, – o inverso do previsto em nossa Constituição.
Nesse contexto, dispositivos consagrados na Constituição brasileira tais como a presunção de inocência e o direito à ampla defesa são categoricamente desconsiderados.
Tudo é aceito, pelos “homens de bem”, para que o câncer brasileiro seja extirpado.
É notório que tanto no golpe de estado impetrado em 1964, quanto o que se tenta consolidar hoje, encontra-se o elemento externo. Sabe-se, agora, a forte participação do governo dos EUA na derrubada da democracia brasileira e de tantas outras pelo mundo, naquele momento de forte disputa ideológica, estágio da história em que fincavam sua bandeira imperialista pelo mundo.
Atualmente, podemos não ter a participação direta do governo daquele país, mas os interesses, por parte das corporações multinacionais lá sediadas, no território e patrimônio brasileiros não são segredos, notadamente com relação ao pré-sal. A crise brasileira se agravou a partir da aprovação da lei de partilha. Políticos brasileiros, diretos articuladores da tentativa de golpe, comprometeram-se a facilitar a entrega da exploração do petróleo a essas empresas, como mostram os documentos já divulgados pelo WikiLeaks. Assim como não é mistério que grupos e páginas de internet pró-impeachment são treinados e financiados por essas grandes organizações, que possuem interesses em nosso país, colocando em risco, inclusive, a soberania brasileira.
Se em meados do século XX, num contexto de pós-guerra e Guerra Fria em vigor, as disputas mundiais possuíam um forte teor nacionalista, em defesa dos Estados-Nação, atualmente, em um contexto marcado pela hegemonia neoliberal e extrema liberalização dos mercados, quem dá as cartas da política global são as grandes corporações, com seus lobbies, com seus poderes cada vez maiores e mais concentrados. E, ao contrário do senso comum, tal poder não influencia apenas um partido. Como se pôde perceber na lista da Odebrecht, trata-se de um problema sistêmico.
*Cássio Garcia Ribeiro é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Mário Tiengo é especialista em Governança Pública e colaboraram para Pragmatismo Político.