As veias abertas do futebol latino
Após um desempenho surpreendente das seleções latino-americanas, logo vieram as comparações históricas. Não faltaram menções às supostas vinganças das colônias sobre as metrópoles, mas será que essa Copa do Mundo representou realmente uma reviravolta nessa história?
Saullo Diniz*, Pragmatismo Político
Após um desempenho surpreendente das seleções latino-americanas, logo vieram as comparações históricas. Não faltaram menções às supostas vinganças das colônias sobre as metrópoles, mas será que essa Copa do Mundo representou realmente uma reviravolta nessa história?
Mesmo que seja um destaque ou até uma surpresa, um desempenho assim na primeira fase não é novidade para as seleções da região. Em 2010, foram seis seleções classificadas para as oitavas de final, apenas uma a menos do que na edição brasileira e nessa edição houve pela primeira vez um país da América Central classificado para as quartas de final. No mais, os últimos desempenhos superam, de fato, os anteriores quando em 2006 foram quatro classificados para a “segunda fase”, em 2002 foram três e novamente quatro em 1998. As duas últimas participações na fase de grupos foram bem empolgantes, mas será que é só por isso toda essa euforia? Vamos analisar outros dados.
Dos 23 prêmios que a FIFA distribuiu aos melhores jogadores do mundo, apenas em 3 delas não houve finalista latino-americano sendo 12 vezes eleitos como melhor jogador do mundo contra 10 títulos europeus e 1 africano. Os resultados da Copa do Mundo são bem equilibrados sendo os europeus vencedores por 10 vezes e os latinos por 9, lembrando que os irmãos do velho continente faturaram as duas últimas copas o que fez com que eles tomassem a frente nesse “ranking”.
Ao analisar a história, é perceptível que o confronto é bem equilibrado entre ambos os lados, afinal, são as duas únicas regiões de extrema relevância no futebol, mas o que fez dessa Copa um grande espetáculo ao ponto de trazer a luz algumas discussões como a questão colonial foi a eliminação dos grandes colonizadores da América do século XVI (Portugal, Espanha e Inglaterra) ainda na primeira fase, principalmente quando a seleção do Chile derrotou a Espanha, de quem foi colônia, carimbando o passaporte dos espanhóis para seu país de origem: foram eliminados! Esses acontecimentos trouxeram reações nas redes sociais de diversas formas sendo a principal a hashtag que dizia “coloniza agora” fazendo uma menção a impossibilidade atual de colonização dos países americanos.
Obviamente, muitos afirmaram por brincadeira e empolgação causada pela paixão futebolística, mas, como de praxe nacionalista, muita gente levou a sério esse discurso como também foi perceptível nas redes sociais. O grande problema é que a América Latina continua sendo colônia e isso, mesmo que pareça um grande absurdo, fica exposto numa simples análise do próprio mundo do futebol.
A maior prova disso é que as seleções nacionais tem desempenhos muito bons e os times, com exceção dos brasileiros e alguns argentinos, não tem tradição nenhuma em torneios intercontinentais. Vejamos como exemplo a Costa Rica que venceu a seleção da Itália e a Grécia mostrando que, em tese, o futebol costarriquenho é/está melhor que o italiano e o grego. Quando na história do futebol algum clube da Costa Rica venceu algum clube europeu? A seleção do Chile deu um show na Espanha, mas quando um time chileno ganhou algo de peso? Algum time chileno hoje tem condições de competir com algum espanhol? Por que quando as seleções, escaladas com os melhores jogadores de cada lado, se enfrentam o jogo é equilibrado, mas quando o mesmo ocorre com os times a desigualdade técnica é gritante? Por que todos os jogadores latinos que foram finalistas do prêmio do melhor do mundo da FIFA jogavam nos grandes clubes europeus? Por que os grandes jogadores da América jogam nos times europeus e os grandes jogadores europeus não chegam nem perto de jogar nos times da América? Com esses poucos questionamentos acho que se consegue chegar a pelo menos uma noção de resposta.
Conseguimos chegar a um raciocínio que praticamente nada mudou na relação entre os dois continentes. Isso porque só foi levado em conta a questão do futebol, sem contar, por exemplo, a diferença de desempenho nas olimpíadas nem tampouco adentrar na questão econômica, o que muitos já fizeram e chegaram a conclusões que todos conhecemos. Se antes era roubado o ouro em forma de pepita, hoje, no caso futebolístico, é roubado o ouro em forma de atleta (que às vezes vale muito mais) – seja pela transferência dos jogadores para os clubes europeus ou pela mudança de nacionalidade – o que faz aumentar ainda mais a diferença entre a qualidade. É quase um novo pacto colonial. E então, vencemos ou não a colonização?
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Finalizo parafraseando o grande historiador uruguaio Eduardo Galeano quando diz logo na introdução de seu célebre e clássico livro que “Há dois lados da divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializaram-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta”.
*Saullo Diniz é graduando em Geografia pela UFRJ e colunista em Pragmatismo Político