Por que votar nulo não é se anular politicamente?
O votar nulo se desdobra: se limita ao despojamento da responsabilidade pelos rumos políticos, ao mesmo tempo, que aponta um horizonte de possibilidade se responsabilizando por uma nova forma política
Douglas Rodrigues Barros*, Pragmatismo Político
No último escrutínio municipal 41% das pessoas preferiram votar nulo, branco ou se abster. A despeito da propaganda eleitoral que inutilmente insiste na importância do voto, infantilizando o cidadão, o fato é que sob qualquer ponto de vista o processo eleitoral adentrou um beco sem saída. Até agora, porém, os técnicos políticos e cientistas sociais tentam, com algum desespero, compreender a situação que demonstra, segundo eles, um desgaste político por parte dos eleitores.
Mas, podemos de fato compreender a atual situação simplesmente imputando a culpa do voto nulo pela forma de se fazer política – segundo os especialistas; o desgaste foi gerado pela forma política eleitoral – sem se ater ao conteúdo?
Agora, gregos e troianos chegam num consenso segundo o qual bastaria uma redução do número de partidos, mais tempo de campanha e maior engajamento da sociedade civil para que a “política” eleitoral voltasse a encontrar sentido. Tais respostas não são somente estéreis como se agitam por um falso problema, qual seja: colocam a ação política como imediatamente reduzida ao voto. Ademais, alguns cientistas sociais colocam a culpa da abstenção na imaturidade da população em compreender a burocracia e o Estado.
Será que maturidade não é senão a própria recusa crescente aos modelos de democracia representativa que mais e mais se reduzem a gestão econômica? Não seria a própria representatividade um engodo que se desvela pela recusa popular em não votar em mais um que “chegando lá” vai entrar no mesmo esquema? Qual desespero comum que faz direita e esquerda chegarem às mesmas conclusões? Não seria o medo de uma mudança efetiva nas formas, cujo conteúdo é inseparável, de se fazer política?
Aqui e, por todos os lados, as questões pairam longe de seu centro de gravidade. Para não se verem imiscuídos em problemas profundos, técnicos e sociólogos preferem reduzir, a recusa e a negação da população em votar, aos problemas do sistema eleitoral. Sem se ater, por um segundo sequer, nos limites da própria democracia liberal. Não é a própria representatividade que se fecha num ciclo de crises econômicas intermináveis que levam a crises políticas insustentáveis?
As mentes progressistas parecem encontrar seus limites na recusa da população em apoiar o sistema viciado e viciante; “afinal, como o voto nulo poderia resolver ou propor algo?”, perguntam os paladinos da reforma. E aqui está o cerne da questão, o não-voto é um recado claro: “quem disse que queremos propostas?” O medo inconsciente dos progressistas de esquerda junto aos conservadores de direita e extrema direita, naturalmente, é que essa recusa aponte para a dissolução do que está posto como status quo. Afinal, o não-voto é se colocar a margem dos esquemas pré-fabricados que dinamizam o modelo de exploração social. Exploração que, segundo estes, pode ser minimizada com as reformas impostas pelas propostas de emenda constitucional.
Votar na esquerda não seria, então, uma contribuição a dissolução do status quo e da exploração radical brasileira? Ora, treze anos de um governo dito de esquerda se passou e o trabalho escravo ainda é uma realidade no Brasil, os índices de assassinatos, sobretudo, dos negros, são recordes, os indígenas ainda são mortos e o monopólio da violência é totalmente do Estado. Com isso, quem pode acreditar que votar seja uma saída? Não seria exatamente uma imaturidade acreditar nesse sistema democrático representativo que tornou a violência uma instituição atuante na sociedade?
A própria democracia, nesses termos, não é a face perversa de um sistema que impõe a violência em seus diversos signos? Em primeiro lugar, é necessário compreender que não existe A Democracia, mas formas democráticas na vida política. No entanto, a maioria das análises partem do pressuposto de um modelo unívoco que se reduz a gestão do capital em sua fase totalmente financeirizada.
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Acontece, com efeito, que a consciência progressista atribui poderes soberanos a representatividade democrática. De fato, o conceito de democracia pressupõe uma sociedade dotada de sujeitos livres. No entanto, esse sentido está claramente pervertido pelas condições impostas pelo modelo de gestão da barbárie com o advento das crises econômicas globais.
Há muitas análises que visam tratar do esgotamento da forma democrática liberal, isto é, a democracia representativa. Há, pelo menos, quinze anos esse tema já é discutido em países centrais. Por isso, não se pode depositar a culpabilidade do não-voto somente ao impeachment de Dilma – é necessário antes tentar localizar as tendências locais que dialogam com as tendências globais.
Esse esgotamento com a forma não seria o resultado de uma crise de proporções novas que afetam todos os subalternos do globo? Talvez, não se tenha chegado o momento de retornar à noção de emancipação universal, e é daí que as análises deveriam começar?
Sabemos que a representatividade está desde sempre limitada ao modo de funcionamento econômico. Ela se realiza justamente nas negociações dos ajustes fiscais e na organização do Estado por meio dos cumprimentos de seus deveres obtidos com o pagamento dos investidores. Mas, sabemos também que atualmente o ressurgimento do fascismo, que encontra sua verdade no governo Temer, advém de uma contrarrevolução sem revolução. Ou seja, apesar da esquerda governista se manter nos limites da gestão, como guardiã da forma econômica, foi apeada do poder e, não obstante, desmoralizada.
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Isso pode ser um sintoma que aponta uma tendência. Pode significar que a própria forma democrática liberal está datada. Se a democracia liberal funciona para organizar a irracionalidade do racional modo de produção e reprodução econômico pode ser que ante sua grave crise ela seja ineficaz. Isso se comprova em várias passagens da história recente. Um deles: quando Tsipras se viu apunhalado pelo mercado financeiro e teve que declinar do referendo no qual a maioria dos gregos disseram não (OXI) para as receitas neoliberais.
Assim sendo, o votar nulo se desdobra: se limita ao despojamento da responsabilidade pelos rumos políticos, ao mesmo tempo, que aponta um horizonte de possibilidade se responsabilizando por uma nova forma política. Reside nessa contradição a verdade de um tempo no qual o modelo econômico impõe todas as regras para a vida política passando por cima dos sujeitos. Não me parece que haja aí qualquer sinal de conformismo senão a vontade de encerrar, de uma vez por todas, uma forma cujo cadáver já entrou em decomposição.
*Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutorando em Filosofia política e colaborou para Pragmatismo Político.