As lições que ficam do linchamento de Elika Takimoto
A professora e escritora Elika Takimoto abandonou o facebook após ser alvo de linchamento orquestrado. Patrulhas de esquerda “descobriram”, por um post, que ela era um monstro racista e preconceituoso que precisava levar uma correção
Wilson Gomes, via Facebook
Elika Takimoto. O nome dela te diz alguma coisa? É escritora, já ganhou prêmio literário, tem um blog, escreve lindamente. Elika é também professora. De Física. Recentemente deve ter chamado a sua atenção como “a professora que viralizou um post” sobre as políticas de Lula de inclusão social, a ponto de o presidente ligar para ela pessoalmente para agradecer. Lembrou?
O perfil não está mais no Facebook. É a mais nova vítima de linchamento das patrulhas de esquerda que “descobriram”, por um post, que ela era um monstro racista e preconceituoso que precisava levar uma correção. Não aguentou. Agora mesmo, na minha timeline, há alguns justiceiros e justiceiras gabando-se de ter dito umas verdades à racista, classista e monstruosa Elika.
Elika Takimoto é de esquerda a não mais poder. Fazia constar isso na sua apresentação espirituosa. É progressista, liberal, esclarecida, segue à risca o manual das causas legais e das posições construtivas. Mas escreveu um looongo post, no modelo “história de superação”, narrando o percurso pedagógico do primeiro grupo de cotistas em uma turma de alunos dela, do estranhamento e choque inicial até a integração e o triunfo final, resultado de cooperação, solidariedade, compartilhamento de oportunidades, sensibilidade ao outro.
Essas coisas de esquerda. Mas eis que uma patrulheira da esquerda “descobriu”, na parte da narrativa em que se descrevia o estranhamento, que Elika era, na verdade, racista e cultivava o preconceito de classes em nível “monster”. Não sei se leu o resto. Logo vieram muitos outros, daqueles que não admitem vacilo no seu turno de guarda, para denunciar à sociedade e ao mundo que uma pessoa ruim havia sido detectada. O resto é a história dos linchamentos digitais a que já estamos acostumados.
Linchamento é diferente de outras formas de ataque. Ataca-se por diferentes razões, mas o linchamento é sempre baseado em valores morais. Chama-se linchamento quando quem ataca se baseia na premissa de que é moralmente superior a quem está sendo justiçado. Todo linchador é um moralista que justifica o exercício da violência, ainda mais da violência covarde de muitos contra um, em termos morais. Quanto maior a convicção nos próprios valores, quanto maior a certeza de que a posição detestada não vale nada, mais feroz e consistente é o ataque. Por isso mesmo é que feministas e antirracistas são dos grupos que mais praticam linchamentos digitais: tenho uma coleção de casos destes; Takimoto, infelizmente, é só mais um episódio que vai para os meus arquivos.
Elika tem 10 mil publicações que evidenciam o que ela é e em que ela acredita. Mas, como me disse um sujeito esta semana aqui, “não tenho obrigação de ler o que você já escreveu”. Certo. Mas tem o direito de inferir de uma única sentença que ali há um racista, um machista, um monstro moral que precisa levar uma correção? E o critério para o assombro ético é autorreferente, claro: se aquela frase ou aquela foto não caiu bem ao paladar do patrulheiro, então uma monstruosidade foi detectada e o espancamento precisa acontecer. Não importa se o problema é que o patrulheiro é burrinho, pouco dado a sutilezas e paradoxos ou um fanático e dogmático.
Por sinal, ninguém mais se perguntou se a experiência descrita por Elika é verdadeira ou não (e a realidade, infelizmente, nem sempre entrega o que a gente gosta), nem se a interpretação de Elika sobre os cotistas no início do semestre era verdadeira ou não (opiniões de que discordamos não são necessariamente falsas). Ao patrulheiro não cabe hesitar, o patrulheiro não pode se permitir mudar de ideia. Ao patrulheiro cabe tocar a corneta e avisar que aquela pessoa, naquele lugar, está violando os nossos valores. E se está violando os nossos valores, só pode ser porque não presta. Em alguns segundos, do julgamento da frase saltamos para o julgamento do caráter de quem a escreveu. Do julgamento à execução da sentença é só questão de juntar gente. E pronto. Ufa! Agora o mundo está seguro de novo.
Fui religioso por bastante tempo. Ainda o sou, a meu modo. Mas depois de ver tanta crueldade praticada por gente de fé, cheguei à conclusão de que prefiro pessoas boas a pessoas religiosas. Se as religiosas forem também boas, tudo bem, mas não é a a fé o meu critério para julgamento de caráter nem para a escolha dos meus companheiros de caminho. Hoje tenho a mesma convicção com relação à religião civil na sua clivagem ideológica: sempre preferi pessoas boas a pessoas de esquerda. Ser de esquerda, como ser cristão, não faz de ninguém uma boa pessoa. Coração e caráter são outras coisas. E se você é de esquerda e se entrega a linchamentos, meu amigo, para mim você não presta. Não importa o quanto você esteja convencido de ser moralmente superior ao linchado, você simplesmente não presta. É simples assim.