Contribuições para a literatura podem ser fomentadas até por novelas globais?
Monteiro Lobato é racista? A internet contribui na formação de novos leitores? A prática da leitura em novelas de grande audiência como Avenida Brasil podem influenciar o telespectador? Essas e outras questões são respondidas pela professora titular da Unicamp de Literatura e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Marisa Lajolo, pesquisadora de literatura infanto-juvenil
O Supremo Tribunal Federal (STF) parou, no último mês, para analisar a questão levantada após a emissão de um mandado de segurança alegando preconceito na obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Sem uma conclusão pelas autoridades até o fechamento desta edição, a Revista CULT procurou a especialista no autor, Marisa Lajolo, para comentar esse e outros assuntos.
Lajolo é uma das organizadoras de “A obra Monteiro Lobato Livro a Livro – Obra infantil”, juntamente com o professor da Unesp, João Luís Ceccantini, que recebeu o Prêmio Jabuti de melhor livro do ano de não ficção em 2009.
A educadora defendeu a irrefutabilidade da liberdade de expressão e advogou a favor dos fenômenos editoriais, como a série Harry Potter, e da internet como ferramenta de leitura. Ela também elogiou a menção de obras literárias em telenovelas e disse que o único modo de transformar o Brasil num país de leitores é com educação de qualidade. Leia na entrevista a seguir, em entrevista realizada pela Revista Cult.
O livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, foi recentemente acusado de preconceito, levando o Supremo Tribunal Federal a discutir seu uso pela rede pública de ensino. Acredita que essa seja uma discussão relevante?
Marisa Lajolo: Sim, se trata de uma discussão relevante, mas não é original. Desde Platão se procura censurar livros. A legislação que o filósofo sugere para sua República, por exemplo, condena certas obras e sugere seu banimento do horizonte de crianças e jovens. Ou seja: a censura tem tradição antiga e respeitável. Particularmente no caso de Monteiro Lobato, ele é freguês de caderneta de censura. Suas obras já foram criticadas, condenadas e às vezes até queimadas em praça pública. Na primeira metade do século 20, ele foi censurado, primeiro por ser ateu, depois por discordar da política brasileira relativa ao petróleo. Agora ele é visto como racista e preconceituoso.
Os argumentos que fundamentam as atuais acusações me parecem pouco convincentes. Mas precisam ser ouvidos, e vale sim a pena discuti-los.
A chance é boa para – como sugere a Prof. Dra. Cilza Bignotto, da Universidade Federal de Ouro Preto – a organização de um “banco de leituras lobatianas”. O que pensam da questão alunos jovens que lêem Caçadas de Pedrinho? Que efeito de sentido, na formação de cidadãos, tem a frase final do livro quando Tia Nastácia, tomando o lugar de Dona Benta em um carrinho, proclama: “Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…”? Será que a questão da igualdade levantada pela própria voz de Tia Nastácia não é bem melhor do qualquer nota editorial, por melhor que esta seja?
O argumento de “liberdade de expressão” comumente sustenta referências politicamente incorretas na literatura. O que muda quando se trata de literatura infanto-juvenil? O argumento continua válido?
ML: Acho que a liberdade de expressão é inegociável. No âmbito de livros para crianças e jovens, a questão se inscreve na seleção de livros. Basta que os adultos encarregados não escolham livros que considerem inadequados para as crianças e jovens sob sua responsabilidade.
No caso de compras governamentais, é muito abrangente a lista de quesitos levados em conta nos critérios de seleção. Mas sempre uma família ou uma escola podem discordar deles. Nada, no entanto, que uma discussão não resolva. Legislar sobre o que pode ou não pode no mundo da arte e da cultura, ou o que se deve pensar do que se lê, me parece sempre muito perigoso.
Concorda com a ideia de que as leituras obrigatórias na escola são muitas vezes incompatíveis com a realidade dos jovens, visando apenas objetivos didático-pedagógicos e desestimulando o gosto da leitura?
ML: Acho que esta ideia não corresponde aos acervos hoje disponíveis nas escolas. O governo compra maciçamente excelentes livros de literatura que envia para todas as escolas.
Quais são as possíveis soluções para reverter a falta de hábito de leitura no Brasil, sobretudo no que diz respeito aos jovens?
ML: Uma educação de qualidade, sob a responsabilidade de professores bem formados e bem remunerados, é a única forma de transformar o Brasil num país de leitores.
Como avalia o vestibular, particularmente em relação às leituras obrigatórias, redação e questões de português?
ML: Há vestibulares e vestibulares. Conheço alguns excelentes, como os das universidades estaduais paulistas. Outros talvez sejam ruins. Mas não se pode nem se deve generalizar numa indiscriminada caça às bruxas.
A internet, por um lado, garante acessibilidade e independência, mas, por outro, limita-se muitas vezes a leituras rasas e breves. Qual seu papel na formação do jovem leitor?
Não gostaria de generalizar que a leitura da internet é rasa e breve. Acho que nunca se leu nem se escreveu tanto como se lê e se escreve hoje, justamente na internet. Creio que a escola e a família poderiam aproveitar bem melhor as práticas de leitura e de escrita que os meios digitais oferecem.
Na sua opinião, quais as conseqüências de fenômenos como as sagas Harry Potter e Crepúsculo?
ML: Vejo consequências muito positivas: são livros bem estruturados, de largo fôlego, bem escritos, que envolvem seus leitores. E o público leitor responde bem a eles.
O fenômeno editorial destas obras se deve em grande parte à sua adoção pelos adultos. Que fatores explicam o fato de uma obra agradar simultaneamente a crianças e adultos?
ML: Esta é exatamente a característica das boas obras: elas não atraem apenas um segmento de publico. Agradam a um amplo arco de leitores.
A novela Avenida Brasil, da TV Globo, retratou um dos protagonistas lendo clássicos como Eça de Queirós e Machado de Assis. Acredita que esse tipo de iniciativa tem algum impacto mensurável no público?
ML: Creio que atores globais são formadores de opinião. Apresentá-los em enredos de grande intensidade dramática lendo livros é uma forma de valorizar a leitura. Há algum tempo atrás um artigo de jornal relatava que a menção a certos títulos de literatura em programas de televisão de larga audiência havia ampliado consideravelmente a procura daqueles títulos.
Revista CULT